sexta-feira, 1 de março de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXVI)

Capítulo LXXVI

Razões para o Socorro às Santas Almas - A Controvérsia entre o Irmão Bento e o Irmão Bertrand

Quando exaltamos tanto os méritos da oração pelos falecidos, não concluímos de forma alguma que outras boas obras devam ser omitidas, pois todas as outras boas obras devem ser exercidas de acordo com o tempo, o lugar e as circunstâncias. A única intenção que tínhamos em vista era dar uma ideia correta da misericórdia para com os falecidos e inspirar nos outros o desejo de a praticarem. Além disso, as obras espirituais de misericórdia, que têm por objetivo a salvação das almas, são todas de igual excelência, e é apenas em certos aspectos que podemos colocar a assistência aos mortos acima do zelo pela conversão dos pecadores.

Nas Crônicas dos Frades Pregadores (cf Rossign., Merv. I), conta-se que surgiu uma controvérsia bastante intensa entre dois religiosos dessa Ordem, o Irmão Bento e o Irmão Bertrand, a propósito dos sufrágios pelos defuntos. O motivo foi o seguinte: O Irmão Bertrand celebrava frequentemente a Santa Missa pelos pecadores e rezava continuamente pela sua conversão, impondo a si mesmo as mais severas penitências; mas raramente era visto a rezar a missa de exéquias pelos defuntos. 

O Irmão Bento, que tinha grande devoção pelas almas do Purgatório, tendo notado esta conduta, perguntou-lhe porque agia assim. 'Por que' - respondeu ele - 'as almas do Purgatório estão seguras da sua salvação, enquanto os pecadores estão continuamente expostos ao perigo de cair no inferno. Que condição mais deplorável do que a de uma alma em estado de pecado mortal? Ela está em inimizade com Deus, presa nas correntes do demônio, suspensa sobre o abismo do inferno pelo frágil fio da vida, que pode romper-se a qualquer momento. O pecador caminha no caminho da perdição; se continuar a avançar, cairá no abismo eterno. Devemos, portanto, ir em seu auxílio e preservá-lo desta que é a maior das desgraças, trabalhando pela sua conversão. Aliás, não foi para salvar os pecadores que o Filho de Deus veio à terra e morreu numa cruz? São Dênis assegura-nos também que a mais divina de todas as coisas divinas é trabalhar com Deus para a salvação das almas. No que diz respeito às almas do Purgatório, elas estão seguras, a sua salvação eterna está assegurada. Sofrem, são vítimas de grandes tormentos, mas não têm nada a temer do inferno, e os seus sofrimentos terão um fim. As dívidas que contraíram diminuem todos os dias e em breve gozarão da luz eterna; enquanto os pecadores são continuamente ameaçados com a condenação, a mais terrível desgraça que pode acontecer a uma das criaturas de Deus'.

'Tudo o que disseste é verdade' - respondeu o Irmão Bento - 'mas há uma outra consideração a fazer. Os pecadores são escravos de Satanás, por sua própria vontade. Seu jugo é de sua própria escolha, eles poderiam quebrar suas correntes se quisessem; enquanto as pobres almas no Purgatório podem apenas suspirar e implorar a assistência dos vivos. A eles é impossível romper os grilhões que as prendem às chamas torturantes. Suponhamos que encontrásseis dois mendigos, um doente, aleijado e desamparado, absolutamente incapaz de ganhar o seu sustento; o outro, ao contrário, embora em grande aflição, jovem e vigoroso; qual dos dois mereceria a maior parte da vossa esmola?' 'Certamente o que não podia trabalhar' - respondeu o Irmão Bertrand.

'Pois bem, meu caro padre - continuou o Irmão Bento - 'é exatamente o que se passa com os pecadores e as almas santas. Elas não mais podem ajudar a si próprias. O tempo da oração, da confissão e das boas obras já passou para elas; só nós podemos aliviá-las. É verdade que mereceram estes sofrimentos como castigo pelos seus pecados, mas agora lamentam e detestam esses pecados. Eles estão na graça e amizade de Deus; enquanto os pecadores são agora os seus inimigos. É certo que devemos rezar pela sua conversão, mas sem prejuízo do que devemos às almas sofredoras, tão caras ao coração de Jesus. Tenhamos compaixão dos pecadores, mas não nos esqueçamos de que eles têm todos os meios de salvação à sua disposição; devem romper os laços do pecado e fugir do perigo de condenação que os ameaça. Não parece evidente que as almas sofredoras têm mais necessidade e merecem uma parte maior da nossa caridade?'

Apesar da força desses argumentos, o Irmão Bertrand persistiu em sua opinião inicial. Então, na noite seguinte, ele vivenciou a aparição de uma alma do Purgatório, que o fez experimentar, por um curto espaço de tempo, a dor que ela mesma suportava. Esse sofrimento era tão atroz que parecia impossível suportá-lo. Então, como diz Isaías, a tortura deu-lhe o entendimento: vexatio intellectum dabit (Is 28,19) e convenceu-se de que devia fazer mais pelas almas sofredoras. Na manhã seguinte, cheio de compaixão, subiu os degraus do altar, vestido de preto, e ofereceu o Santo Sacrifício pelas almas dos falecidos.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.