sábado, 16 de março de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXVII)

 

Capítulo LXXVII

Razões para o Socorro às Santas Almas - Socorro às Almas dos Nossos Parentes Falecidos - Cimon de Atenas e o seu Pai na Prisão - São João de Deus e o Socorro aos Doentes de um Incêndio

Se somos obrigados a socorrer as santas almas pela extrema necessidade em que se encontram, quanto maior não se torna este motivo quando nos lembramos de que estas almas estão unidas a nós pelos laços mais sagrados, os laços de sangue, pelo Sangue de Jesus Cristo, e pelos laços da carne e do sangue humanos, de onde fomos gerados segundo a carne?

Sim, há no Purgatório almas unidas a nós pelos mais íntimos laços de família. Pode ser um pai ou uma mãe que, padecendo aqueles horríveis tormentos, estendem os braços em súplica para mim. O que não faríamos pelo nosso pai ou pela nossa mãe, se soubéssemos que estão a penar em algum calabouço tremendo? Um antigo ateniense, o célebre Cimon, teve o desgosto de ver o seu pai preso por credores sem coração, que ele não podia satisfazer. O pior é que não conseguiu reunir uma soma suficiente para efetuar o resgate do seu pai e o seu velho pai morreu na prisão. Cimon apressou-se a ir à prisão e pediu que lhe dessem, pelo menos, o corpo do seu pai para que o pudesse enterrar. Isso também lhe foi recusado, sob o pretexto de que, não tendo com que pagar as suas dívidas, não podia tê-lo libertado. 'Permitam-me primeiro enterrar meu pai' - gritou Cimon - ''e depois voltarei e tomarei o seu lugar na prisão'.

Admiramos este ato de piedade filial, mas não temos também o dever de o imitar? Não temos também, porventura, um pai ou uma mãe no Purgatório? Não somos obrigados a libertá-los à custa dos maiores sacrifícios? Mais afortunados do que Cimon, temos com que pagar as suas dívidas; não precisamos de tomar o seu lugar; pelo contrário, libertá-los é lutar pelo nosso próprio resgate.

Admiremos também a caridade de São João de Deus, que enfrentou a fúria das chamas para salvar os pobres doentes durante uma conflagração. Este grande servo de Deus morreu em Granada, no ano de 1550, ajoelhado diante de uma imagem de Jesus Crucificado, que ele abraçou e continuou a manter apertada nos seus braços, mesmo depois de ter entregado a sua alma a Deus. Filho de pais muito pobres e obrigado a sustentar-se com o pastoreio de rebanhos, era rico em fé e confiança em Deus. Tinha grande prazer na oração e na escuta da Palavra de Deus; este foi o fundamento da grande santidade que depois alcançou.

Um sermão do Venerável Padre João d'Ávila, Apóstolo da Andaluzia, impressionou-o de tal modo que resolveu consagrar toda a sua vida ao serviço dos pobres doentes. Sem outro recurso que não fosse a caridade e a confiança em Deus, conseguiu comprar uma casa, na qual reuniu todos os doentes pobres e abandonados, para lhes dar alimento para a alma e para o corpo. Este asilo depressa se transformou no Hospital Real de Granada, um estabelecimento imenso, cheio de uma multidão de idosos e doentes. Um dia, tendo deflagrado um incêndio no hospital, muitos dos doentes correram o risco de morrer de uma morte horrível. Estavam rodeados de chamas por todos os lados, de tal modo que era impossível alguém tentar salvá-los. Proferiam os gritos mais angustiantes, chamando o Céu e a Terra em seu auxílio. 

João, diante disso, inflama-se de caridade, precipita-se no fogo, luta através das chamas e do fumo até chegar aos leitos dos doentes; depois, erguendo-os sobre os ombros, carrega essas infelizes criaturas, uma após outra, para um lugar seguro. Obrigado a atravessar essa imensa fornalha, trabalhando no calor do fogo durante meia hora inteira, o santo não sofreu o menor ferimento; as chamas respeitaram sua pessoa, suas roupas e até mesmo o menor fio de cabelo de sua cabeça. Deus proveu tal milagre mostrando quanto era agradável a Ele a caridade do seu servo. E aqueles que salvam, não o corpo, mas as almas das chamas do Purgatório, a sua obra é menos agradável a Deus? As necessidades, os gritos e os gemidos dessas almas são menos tocantes para um coração de fé? Será mais difícil socorrê-las? Será necessário lançarmos por entre as chamas para as salvar?

Certamente, temos todas as facilidades ao nosso alcance para socorrê-las e Deus não exige para isso grandes esforços de nossa parte. No entanto, a caridade das almas fervorosas leva-as, por vezes, a fazer os sacrifícios mais heróicos e até mesmo a compartilhar os tormentos dos seus irmãos do Purgatório.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.