Pai:
Eis-me de volta aqui, depois de tanto tempo. Fiz das minhas andanças memórias de apostolado e, se tardei nessa parada amena, não foi por falta dos muitos passos encaminhados. Tenho ido a tantos lugares, tenho visto tantas coisas... Meu coração experimenta, no caos e reverberação do mundo, a Vossa santa presença em tantas coisas e pessoas! Almas que lhe são muito queridas e que produzem frutos cem por um. F. certamente é uma delas, e como me deleito em acompanhar a caminhada dela até os patamares maiores da graça! Vou recordar-Vos um fato singular dela que acabei de escrever em detalhes no Livro da Vida.
Semana passada, o pobre homem estava deitado no chão, junto ao ponto de parada do ônibus do seu trajeto diário. Bêbado, quase inconsciente, balbuciando palavras sem sentido... A carteira jogada do lado do corpo, a camisa semi-aberta, os pés calçados apenas por meias... não é que lhe tinham roubado os tênis, presente recente de uma de suas filhas mais velhas? Ele havia gostado daqueles tênis confortáveis, nunca tivera nada igual para colocar nos pés. E agora, andava noite e dia calçado com eles e, quase sempre, orgulhoso de ter algo que pudesse ser realmente e incomensuravelmente seu.
F. tivera um dia difícil para entregar todas as suas encomendas. Faltavam ainda umas três entregas para fazer e a tarde avançava rapidamente, como se o tempo tivesse mais asas do que deveria ter. Mas ao ver o homem estendido no chão sem sapatos, os cabelos brancos em desalinho e sob o olhar indiferente da meia dúzia de pessoas que estavam na parada e viviam no mundo apenas para esperar o próximo ônibus, parou o mundo porque precisava descer.
Como a samaritana dos dias atuais, fez o homem assentar encostado à mureta de concreto do ponto de ônibus, numa posição razoavelmente cômoda. Recolheu a carteira - com um único documento de identificação e nenhum dinheiro. Certamente quem lhe roubou os tênis havia surrupiado também o dinheiro da carteira. F. invocou o anjo da guarda, interpelou os presentes, chamou um vizinho e tanto fez que conseguiu o telefone da filha mais velha do senhor caído na rua. E ligou para ela e descreveu a situação e identificou o local e ficou à espera.
E dois ônibus passaram e pessoas foram embora vivendo de ônibus que passam de meia em meia hora. A filha mais velha chegou num carro de um conhecido, lamentou a situação do pai e os tênis roubados e a história acaba aqui, com um final que se pode dizer feliz para alguns. F. arrumou então as suas coisas, que viraram entregas para amanhã. Um dia ela saberá quantas graças e bênçãos Vossas Mãos Divinas derramaram sobre ela naquele dia... e talvez entenda como o tempo dos homens e mulheres deste mundo que têm os olhos voltados para o Céu não se medem em horas.
Feliz é o homem que tem o Senhor como única esperança! Com a vossa bênção, R.
('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).