Carta Encíclica HAERENT ANIMO [04 de agosto de 1908]
Papa Pio X (1903 - 1914)
exortação ao clero católico
Preâmbulo
1. Trazemos profundamente gravadas em nossa almas as palavras tremendas do apóstolo dos gentios ao se dirigir aos hebreus (13, 17), lembrando-lhes o dever da obediência aos superiores, e dizendo-lhes com todo o peso de sua autoridade: Ipsi enim pervigilant quasi rationem pro animabus vestris reddituri. Este aviso, não há dúvida, dirige-se a quantos tenham na Igreja autoridade mas, de modo particular, a nós, que, não obstante a nossa insuficiência, fomos chamados por Deus para ocupar o primeiro lugar na hierarquia eclesiástica. Eis porque, noite e dia preocupado com a nossa responsabilidade, temos sempre nosso pensamento e esforços voltados para tudo o que possa garantir, salvaguardar e favorecer o progresso do rebanho do Senhor. Uma coisa sobremaneira nos preocupa: ter, nas Ordens Sagradas, homens que estejam perfeitamente à altura desta missão. Pois estamos convencidos de que isso, sobretudo, nos dá motivos para as melhores e mais confiantes esperanças para o bem da Religião. Eis por que, desde nossa elevação ao Soberano Pontificado, embora bem patentes nos fossem os grandes méritos do clero considerado em geral, julgamos nosso dever exortar instantemente aos nossos veneráveis Irmãos, os Bispos do Orbe Católico, para que empreguem todos os seus cuidados e máxima solicitude em formar o Cristo naqueles que têm por missão formar também o Cristo nos outros. Bem conhecemos a solicitude com que muitos Antístites têm desempenhado essa missão. Sabemos com que vigilância e zelo procuram assiduamente formar o clero na virtude. E queremos não só louvá-los, como também publicamente agradecer-lhes.
2. Felicitamo-nos, é certo, vendo que numerosos padres, inflamados, pelo zelo de seus bispos, de um santo ardor, fazem em si reviver ou crescer a graça de Deus que receberam no dia da ordenação sacerdotal. Todavia, temos ainda a lamentar que alguns outros, em países diversos, não procedam como deviam, de modo a oferecer ao povo cristão, que os contempla como num espelho, o modelo de vida a praticar e um exemplo a seguir. A estes, sobretudo, queremos, por esta carta, abrir nosso coração, que como um coração de pai, à vista do filho doente, palpita de um amor angustiado. E inspirado por este amor, juntamos as nossas exortações às dos bispos. E se elas têm por fim principal trazer a melhores sentimentos os transviados e os tíbios, desejamos todavia que sejam um incentivo também para os outros. Mostramos o caminho que deve cada um esforçar-se por seguir com ardor sempre maior, para que seja, em verdade, segundo a bela expressão do Apóstolo, um homo Dei (1 Tm 6, 11) e corresponda às legítimas esperanças da Igreja.
3. Nada diremos que vos não seja conhecido ou que seja novidade para alguém. Diremos o que é preciso lembrar a todos. E Deus nos dá esperança de que a nossa palavra não deixará de produzir frutos abundantes. E vos rogamos então insistentemente: Renovamini spiritu menus vestrae, et indulte novum hominem qui secundum Deum creatus est in justitia, et sanctitate veritatis (Ef 4, 23-24). A realização deste voto é o mais belo e o mais agradável presente que possais nos oferecer neste quinquagésimo aniversário de nosso sacerdócio. Quanto a nós, quando recordamos sob o olhar de Deus, in animo contato et spiritu humilitatis (Dn 3, 39), os anos já passados de nosso sacerdócio, parece-nos que a dor de aí encontrar o que é muito humano o expiaremos, de certo modo, fazendo por nossas advertências e conselhos, ut ambuletis digne Deo per omnia placentes (Cl 1, 10). Com esta exortação não defendemos tão só vossos interesses. Defendemos também os interesses comuns das nações católicas, porque estes não se separam daquelas. Com efeito. É tal a condição do padre que não pode ser ele bom ou mau só para si. Ao invés, o seu procedimento e maneira de viver são para o povo de importância capital. Que grande dom e precioso é um padre verdadeiramente bom!
I. SANTIDADE DO PADRE
Necessidade da Santidade Sacerdotal
4. Começamos, pois, a nossa exortação, filhos caríssimos, por vos excitar à santidade de vida que requer a vossa dignidade. Efetivamente, quem exerce o sacerdócio, não para si o exerce, mas para os outros também: Omnis namque Pontifex ex hominibus assumptus pro hominibus constituitur in iis quae sunt ad Deum (Hb 5, 1). O próprio Jesus Cristo manifestou o mesmo pensamento quando, para dar a entender em que consiste a ação sacerdotal, comparava os padres ao sal e à luz. O padre é, portanto, a luz do mundo e o sal da terra. Ninguém, sem dúvida, ignora que o padre desempenha a sua missão sobretudo quando prega a verdade cristã. Porém, este mistério não se torna quase inútil, quando ele não apoia com o exemplo o que ensina de viva voz? Os que o escutam poderão dizer injuriosamente, é verdade, mas não de todo sem razão: Confitentur se nosse Deum, factis autem negant (Tt 1, 16). E depois acabariam recusando os ensinamentos do padre, cujas luzes seriam para eles de nenhum proveito. Eis porque o próprio Cristo, feito modelo dos padres, ensinou primeiro com o exemplo e depois com a palavra: Coepit Jesus facere et docere (At 1, 1).
5. O padre, que não faz caso da santidade de vida, também não poderá ser, de maneira alguma, o sal da terra. É impossível que o que está corrompido e contaminado seja fator de conservação. Onde falta a santidade, inevitavelmente se introduz a corrupção. Eis por que, insistindo na comparação, Cristo chama a tais padres sal infatuatum, quod ad nihilum valet ultra nisi ut mittatur foras, e desde então: Conculcetur ab hominibus (Mt 5, 13).
6. Tanto mais patentes e mais certas são estas verdades, quando desempenhamos as funções sacerdotais, não em nosso nome, mas em nome de Jesus Cristo. Diz o Apóstolo: Sic nos existimet homo ut ministros Christi, et dispensatores mysteriorum Dei (1 Cor 4, 1), pro Christo ergo legatione fungimur (2 Cor 5, 20). E é por isto, justamente, que o próprio Cristo nos coloca entre os seus amigos e não entre os seus servos: Jam non dicam vos servos... Vos autem dixi amicos, quia omnia quaecumque audivi a Patre meo, nota feci vobis... Elegi vos et posui vos ut eatis et fructum afferatis (Jo 15, 15-16). Havemos, portanto, de desempenhar o papel de Cristo. A missão que nos deu, temos de cumpri-la, levando em conta o fim que Ele nos propôs. E como é próprio de uma verdadeira amizade estarem de acordo os amigos no querer ou não querer uma coisa, estamos obrigados, como amigos, a pôr de acordo o nosso modo de sentir com o de Jesus Cristo, que é sanctus, innocens, impollutus (Hb 7, 26). Já que por ele fomos enviados, devemos conquistar o espírito dos homens à sua doutrina e à sua lei. E é claro que devemos começar por nós mesmos, observando-as primeiro. Já que participamos do poder de Cristo para livrar as almas dos laços do pecado, tudo devemos fazer para nos preservarmos do pecado. Porém, acima de tudo como ministros do sacrifício por excelência, perpetuamente renovado pela salvação do mundo, devemos pôr-nos no estado de espírito com que o próprio Cristo, Hóstia Imaculada, se ofereceu a Deus no altar da cruz. Porque, se outrora, quando tudo eram apenas aparências e figuras, se exigia tão grande santidade dos padres, qual não será hoje nossa obrigação quando a vítima é Cristo! Poderá ser puro demais quem oferece um tal sacrifício? Não seria preciso que fosse mais imaculada que o raio de sol a mão que divide esta carne, a boca que se enche deste fogo espiritual, a língua que se enrubesce de um sangue tão tremendo? (S. Joan. Chrisost., Hom. LXXXII in Mt, n. 5).
7. Com muita razão, São Carlos Borromeu insistia muito neste ponto nas alocuções ao seu clero: 'Se nos lembrássemos, caríssimos irmãos, de tudo quanto Deus Nosso Senhor depositou de grande e de santo em nossas mãos, que força não teria este pensamento para nos levar a uma vida bem digna e verdadeiramente eclesiástica! Haverá alguma coisa que não tenha o Senhor depositado em nossas mãos depois que nelas depositou seu Filho único, coeterno, igual a Ele? Pôs em minhas mãos todos os tesouros, os seus sacramentos e suas graças. Colocou as almas, o que Ele tem de mais caro, as almas que no seu Amor as preferiu à sua própria vida e as remiu com o seu sangue. Pôs na minha mão o céu com o poder de abri-lo ou de fechá-lo aos outros. Poderia eu ser tão ingrato e, depois de tantos favores e de tanto amor, pecar contra Ele? Hei de lhe faltar com o respeito? Manchar um corpo que é dele? Desonrar esta dignidade, esta vida consagrada ao seu serviço?'
8. Esta santidade de vida, sobre a qual ainda é bom insistir, é objeto de grandes e incessantes preocupações da parte da Igreja. Uma ideia presidiu à instituição dos seminários: os que aí se educam, para ingressarem nas fileiras do clero, não há dúvida, hão de ser instruídos nas letras e nas ciências, mas é mister que sejam ao mesmo tempo bem formados, desde os mais tenros anos, em tudo quanto diz respeito à piedade. E a Igreja, com solicitude maternal, aproveita depois a ocasião em que faz os candidatos subir degrau por degrau, e em largos intervalos, para então prodigalizar em cada etapa as exortações à santidade. É tão doce recordá-las! Desde que nos alistamos na milícia sagrada, quis ela que tomássemos este compromisso formal: Dominus pars hereditatis meae et calicis mei, tu es qui restitues hereditatem meam mihi (Sl 15, 5). Por estas palavras, diz São Jerônimo, o clérigo é adversário de que todo aquele que é a parte do Senhor ou de quem o Senhor é a herança, deve ser tal que possua o Senhor e seja possuído por Ele (Ep. III, ad Nepotianum, n. 5).
9. No momento em que nos eleva ao subdiaconato, que linguagem tão grave é a que nos dirige! Iterum atque iterum considerare debetis attente quod onus hodie ultro appetitis... quod si hunc ordinem susceperitis, amplius non licebit a proposito resilire, sed Deo... perpetuo famulari et castitatem, illo adjuvante, servare oportebit. E para terminar: Si usque nunc fuistis tardi ad Ecclesiam, amodo debetis esse assidui; si usque nunc somnolenti, amodo vigiles... Si usque nunc inhonesti, amodo casti... videte cujus ministerium vobis traditur! Depois, na ocasião em que recebemos o diaconato, a Igreja eleva a Deus por nós esta oração pela boca do bispo: Abundet in eis totius forma virtutis, auctoritas modesta, pudor constans, innocentiae puritas, et spiritualis observantia disciplinae. In moribus eorum praecepta tua futgeant, ut suae castitatis exemplo imitationem sanctam plebs acquirat. O que, porém, mais nos comove ainda são as advertências que ela nos dirige no momento em que nos confere a ordenação sacerdotal: Cum magno timore ad tantum gradum ascendendum est, ac providendum ut caelestis sapientia, probi mores et diuturna justitiae observatio ad id electos commendet... Sit odor vitae vestrae delectamentum Ecclesiae Christi, ut praedicatione ac exemplo aedificetis domum, idest familiam Dei. De todas estas lembranças a mais premente está nesta gravíssima recomendação: Imitamini quod tractatis - a que corresponde o preceito de São Paulo - ut exhibeamus omnem hominem perfectum in Christo Jesu.
10. Tal é o pensamento da Igreja sobre a vida do padre. E ninguém poderia se admirar da unanimidade dos santos Padres e Doutores todos, quando ensinam sobre este ponto uma doutrina que talvez alguns queiram tachar de exagerada. Entretanto, se a examinarmos seriamente, veremos que nada existe de mais verdadeiro nem de mais justo. Eis em resumo o seu pensamento: entre o padre e um homem honesto qualquer, deve haver tanta diferença como do céu para a terra. E o padre deve ter cuidado para que a sua virtude seja isenta de toda censura, não só em matéria grave, como também em matéria leve. O Concilio de Trento nada mais faz senão recordar o julgamento destas autoridades tão veneráveis, quando adverte os clérigos a que fujam até das mais leves faltas, levia etiam delida, quae in ipsis maxima essent (Sess. XXII, de reform. c. I). E se, com efeito, não são, em si, graves, há de se levar em conta a qualidade de quem as comete, pois a eles, bem mais do que aos edifícios de nossos templos, se aplica esta palavra: Domum tuam decet sanctitudo (Sl 92, 5).
Exigências da Santidade Sacerdotal
11. Examinemos, pois, em que consiste esta santidade, cuja falta no padre seria a maior desgraça. A ignorância ou erro nesta matéria seria gravemente perigoso. Há os que pensam e até ensinam que o mérito do padre está em se dedicar inteiramente ao serviço do próximo. E, por isto, não dão importância às virtudes que contribuem para a santificação pessoal, que chamam por isto mesmo virtudes passivas. E julgam que devem consagrar todas as suas forças e todo zelo em cultivar e praticar as virtudes ativas. Esta doutrina é singularmente errônea e perniciosa. É dela que nosso predecessor de feliz memória escreveu com muita sabedoria: 'Pretender que as virtudes cristãs variem com as épocas é esquecer as palavras do Apóstolo: Quos praescivit et praedestinavit conformes fieri imaginis Filii sui (Rm 8, 29). O mestre e modelo de toda santidade é Cristo. E quem quiser entrar na mansão dos bem-aventurados, por ele se deve regular. Ora, Cristo não muda no decorrer dos séculos. É o mesmo ontem e hoje, heri et hodie; ipse et in saecula (Hb 13, 8). Aos homens de todas as idades dirige-se esta palavra: Discite a me quia mitis sum et humilis corde. Por nós e para todos os tempos Cristo se mostrou obediente até à morte: factus obediens usque ad mortem (Fp 2, 8). Vale para todos os tempos a sentença do Apóstolo: Qui sunt Christi, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis (Gl 5, 24)' [Epist. Testem benevolentiae, ao arcebispo de Baltimore, 22 de Janeiro de 1899].
12. Tais ensinamentos, não há dúvida, dirigem-se a todos os fiéis, mas imediatamente aos padres. A eles se aplica especialmente o que o nosso predecessor, no seu zelo apostólico, acrescentava: 'Prouvera a Deus, tivéssemos agora maior número de homens fiéis à prática das virtudes, à imitação dos santos dos séculos passados. E pela humanidade, obediência e abstinência, fossem todos poderosos em obras e em palavras para maior proveito da religião e da civilização'. Convém notar aqui que este pontífice tão prudente fez, e com direito, menção especial da renúncia, que, na linguagem evangélica, se chama abnegação de si mesmo. Porque, sobretudo nesta virtude, caríssimos, é que estão a força, o poder e a eficácia de todo ministério sacerdotal. E do negligenciá-la provém tudo o que no modo de proceder do padre costuma ofender os olhos e as almas dos fiéis. Com efeito, se há padres que não se envergonham de trabalhar com as vistas só no interesse e no lucro; que se metem em negócios seculares e procuram ser os primeiros sempre, desprezando os outros; que se apegam à carne e ao sangue e querem agradar aos homens e contam com as palavras persuasivas da sabedoria humana; é porque se esqueceram do preceito de Cristo e recusaram a condição por Ele imposta: si quis vult post me venire abneget semetipsum (Mt 16, 24).
13. Embora já tivéssemos insistido muito nas exortações precedentes, ainda o fazemos para vos dizer que, afinal de contas, o padre não só por ele tem a obrigação de levar uma vida santa, mas porque é o operário que Cristo veio contratar para a sua vinha: exiit conducere in vineam suam (Mt 20, 1). A ele cabe arrancar a má erva, semear a que é útil e vigiar para que o homem inimigo não venha semear o joio e a má semente. Por isto deve o padre ter cuidado para que o zelo mal-entendido da sua perfeição interior não o leve a omitir os deveres do ministério em serviço do próximo. E assim sendo, como pastor por exemplo, deve pregar a palavra de Deus, ouvir confissões, assistir os enfermos, sobretudo os moribundos, dar instrução religiosa aos ignorantes, consolar os aflitos, reconduzir ao rebanho as ovelhas desgarradas, enfim, imitar em tudo a Cristo, qui pertransiit benefaciendo et sanando omnes oppressos a diabolo (At 10, 38).
14. E isto fazendo, tenha sempre em mente a grave advertência de São Paulo: neque qui plantai est aliquid neque qui rigat; sed qui incrementam dat, Deus (1 Cor 3, 7). Pode acontecer que tenhamos de semear entre lágrimas. Que sejamos obrigados a dispender um trabalho enorme, para garantir o que semeamos. A germinação, entretanto, e a produção da colheita esperada só dependem de Deus e do auxílio onipotente. Outra consideração de grande importância: os homens não passam de instrumentos de que Deus se serve para a salvação das almas. É preciso, então, que sejam eles aptos para que Deus os possa manejar. E por que há de ser assim? Poderá alguém pensar que nossas qualidades naturais ou adquiridas fazem com que Deus seja levado a aproveitar o nosso concurso para a extensão da sua glória? Absolutamente! Quae stulta sunt mundi elegit Deus ut confundat sapientes: et infirma mundi elegit Deus ut confundat fortia: et ignobilia mundi, et contemptibilia elegit Deus, et ea quae non sunt, ut ea quae sunt destrueret (1 Cor 1, 27-28).
15. Só uma coisa, na verdade, é capaz de realizar a união do homem com Deus; só uma coisa faz o homem agradável a Deus e o torna ministro menos indigno da sua misericórdia: a santidade de vida e de costumes. Se faltar ao padre esta santidade, que outra coisa não é senão a ciência supereminente de Jesus Cristo, falta-lhe tudo. Porque, sem a santidade, a própria ciência (e envidamos esforços para desenvolvê-la entre o clero), as habilidades e talentos, por mais úteis que possam ser à Igreja e aos indivíduos, quase sempre têm sido uma fonte de lamentáveis prejuízos. Ao contrário, suponhamos um homem profundamente santo. Fosse o último de todos. Quantas obras maravilhosas não pode empreender e realizar para a salvação do povo de Deus! Testemunhos não faltam e muitos neste ponto, e em todos os tempos. Prova brilhante a temos e não longe de nós, em João Batista Vianney, esse modelo de pastor de almas a quem tivemos a felicidade de conferir as honras da beatificação. Unicamente a santidade nos pode fazer tais como o exige a nossa vocação, isto é, homens crucificados para o mundo e para os quais o mundo está crucificado; homens, cujo modo de proceder se inspira numa vida nova, e que, segundo o conselho do Apóstolo, se mostram verdadeiros ministros de Deus in laboribus, in vigiliis, in jejuniis, in castitate, in scientia, in longanimitate, in suavitate, in Spiritu Sancto, in caritate non fida, in verbo veritatis (2 Cor 6, 5-), homens que só aspiram aos bens celestes e trabalham com todas as forças para conduzir os outros aos mesmos.
II. MEIOS DE ADQUIRIR A SANTIDADE
Oração
16. Ninguém o ignora, a santidade de vida é fruto de nossa vontade, enquanto a esta a graça divina ajuda e fortifica. Eis por que Deus providencia para que jamais nos falte o auxílio da graça, com a condição de a querermos. Este auxílio, antes de tudo, o asseguramos pela nossa aplicação à oração. Entre a oração e a santidade é tão necessária a dependência, que uma não pode existir, de maneira alguma, sem a outra. São João Crisóstomo diz e com uma verdade absoluta: 'a meu ver, é simplesmente impossível viver na virtude sem o auxílio da oração' (De Precatione, orat. I). Santo Agostinho com muita penetração conclui: 'A ciência da virtude é a ciência da oração: Vere novit recte vivere qui recte novit orare (Hom. IV ex 50). Estes ensinamentos, o próprio Cristo no-los inculcou firmemente por exortações frequentes e sobretudo pelo exemplo. Com efeito, para orar retirava-se no deserto ou subia as montanhas. Passava as noites todo absorvido na oração. Ia ao templo frequentemente.
E ainda mesmo em presença das multidões que se acotovelavam em torno dele, orava publicamente com os olhos levantados para o céu. Finalmente, pregado na cruz e já nas
dores da morte, dirigiu ainda, com soluços e lágrimas, súplicas ao Pai.
17. Estejamos absolutamente certos de que o padre que quiser ser fiel à dignidade
do seu meio e da sua missão, deve ter em grande estima a oração e nela se aplicar! Muitas
vezes, no entanto, é de lamentar-se que rezem mais por hábito que com fervor e recitem
com tanto relaxamento o ofício nas horas de obrigação ou se contentem apenas com
algumas breves orações, sem que mais pensem em consagrar a Deus outro momento do
dia em piedosas orações. O padre, mais ainda que qualquer outro, deve obedecer ao preceito
de Cristo: Oportet semper orare (Lc 18, 1), preceito que São Paulo instantemente
recomendava: Orationi instate vigilantes in ea in gratiarum actione (Cl 4, 2); sine
intermissione orate (1 Tes 5, 17). E para a alma que deseja a sua própria santificação e a
salvação do próximo, quantas ocasiões durante o dia precisa para se elevar a Deus. As angústias
íntimas, a violência e obstinação das tentações, a falta de virtude, o insucesso ou a esterilidade
das obras, os pecados e negligências sem número, enfim, o temor dos juízos de Deus, tudo,
tudo, nos excita vivamente a chorar na presença do Senhor, e, depois de obtido o socorro
divino, enriquecermo-nos com os méritos tão fáceis. E não só por nossa causa devemos
chorar. Em face deste dilúvio de crimes que dia a dia se espalha e se estende por toda parte,
a nós, sobretudo, cabe implorar e obter a divina clemência. A nós importa rogar
instantemente a Cristo que, na sua imensa bondade, nos prodigalize todas as suas graças
no Admirável Sacramento: Parce, Domine, parce populo tuo!
18. De grande importância é reservar cada dia um tempo determinado para a
meditação das verdades eternas. Nenhum padre poderá se dispensar disto sem incorrer na
grave censura de negligente e sem prejuízo para sua alma. O Abade São Bernardo,
escrevendo ao Papa Eugênio III, que fora seu discípulo e veio a ser Pontífice de Roma, o
advertia franca e insistentemente que nunca poderia deixar passar um dia sem meditar as
coisas divinas, fossem quais fossem a multiplicidade e importância das ocupações inerentes
ao supremo apostolado. E justificava esta recomendação enumerando com muita sabedoria
as vantagens deste exercício: 'A meditação purifica a fonte donde jorra, isto é, o espírito.
Regula as afeições, dirige os atos, corrige os exageros, governa os costumes, põe
honestidade e ordem na vida: enfim, ela dá a ciência das coisas divinas e também das coisas
humanas. Determina ela o que é confuso, coíbe o que está relaxado, ajunta o que está
disperso, perscruta o oculto, procura o que é verdadeiro, examina o que se parece com a
verdade, descobre o que é disfarçado e enganador. Prevê e regula o que se há de fazer,
reconsidera o que está feito, a fim de que nada fique no espírito que não seja corrigido ou
tenha necessidade de correção. Ela é que nos dias maus pressente a adversidade e a torna
facilmente suportável, quando é mister sofrê-la. São dois bens dos quais o primeiro pertence
à força, outro à prudência' (De Consid., 1. 1, c. 7). Estes serviços que a meditação está
destinada a nos prestar, nos servem de lição e aviso: mostram-nos quanto ela nos é, sobre
todos os pontos de vista, não só útil, para a salvação, mas até necessária.
19. Porque, embora sejam veneráveis e augustas as funções do sacerdócio,
acontece, entretanto, que ao exercê-las os que as desempenham vão perdendo, com o
tempo, algo daquele religioso respeito que elas exigem. E a diminuição gradual de seu fervor
os coloca facilmente no plano inclinado da tibieza e no desgosto das coisas mais santas. E
a isto ajuntai a necessidade que tem o padre de passar a vida, por assim dizer, no meio de
uma sociedade má (in medio nationis pravae); de sorte que, muitas vezes, até exercendo a caridade pastoral, há de temer as insídias ocultas da infernal serpente. É para se admirar
que até almas religiosas se manchem ao contato com a poeira do mundo? Daí a grave
necessidade que tem o padre de, cada dia, voltar à contemplação das verdades eternas, a
fim de que, por esta renovação constante de vigor, fortifique o espírito e a vontade contra as
seduções do mundo.
20. E além do mais, é mister que tenha o padre uma certa facilidade para se elevar e
tender para as coisas do céu, porque é seu dever rigoroso prová-las para as ensinar e
inculcar aos outros. E de tal modo deve colocar a sua vida acima dos interesses humanos,
que todas as obras do seu santo ministério se façam segundo Deus e sob a inspiração e
direção da fé. Ora, o que sobretudo estabelece e sustenta o padre neste estado de alma,
nesta união, por assim dizer, natural com Deus, é a prática tutelar da meditação cotidiana.
Para todo homem que reflete, é isto de tal modo evidente que inútil é insistir mais.
21. Para se achar a lamentável confirmação destas verdades, certamente basta
observar a vida dos padres que pouca importância dão ou se aborrecem da meditação das
coisas eternas. Vede: são homens nos quais o sensus Christi, este preciosíssimo bem, já
quase desapareceu. Sempre voltados para as coisas da terra, seguem as suas vaidades,
andam à cata de frivolidades, são espíritos superficiais. Desempenham as funções sagradas
com relaxamento, com frieza e até mesmo indignamente. Quando acabaram outrora de
receber a unção sacerdotal, preparavam-se cuidadosamente para a recitação do Ofício
Divino. Não queriam parecer estes homens que tentam a Deus. Escolhiam para a oração o
tempo mais propício e o lugar mais recolhido. Procuravam penetrar o sentido das palavras
divinas. Com o salmista, louvavam, gemiam, alegravam-se e expandiam sua alma na
oração. Como eles mudaram depois disto! Ademais, quase nada conservam daquela
piedade viva que lhes inspiravam os mistérios divinos. Como os tabernáculos outrora lhe
eram queridos! Era uma festa para seus corações acharem-se à mesa do Senhor e a ele
atraírem um número cada vez maior de almas piedosas. Antes da missa, como sentiam
necessidade de pureza! Que orações não lhes saíam da alma fervorosa! Durante a
celebração da missa, que respeito na observância integral destas belas e augustas
cerimônias! Que expansões afetuosas na ação de graças! E como no povo felizmente se
difundia o bom odor de Cristo! Rememoramini, recordai-vos, filhos
diletos, rememoramini... pristinos dies! (Hb 10, 32). Então, a vossa alma se abrasava,
nutrida com o ardor da santa meditação.
22. Os que sentem muito pesado este recogitare corde (Jr 12, 11) ou o negligenciam,
já não podem mais dissimular a pobreza que disto resulta para a sua alma. Costumam se
desculpar, pretextando que se lançaram sem reserva no turbilhão do ministério, a fim de
prestarem toda espécie de serviços ao próximo. Erro lamentável! Pela falta do hábito de
conversar com Deus, quando eles falam de Deus aos homens ou lhes dão conselhos para
a prática da vida cristã, falta-lhes o sopro divino, e a palavra evangélica neles parece quase
morta. Sua voz tão elogiada, por mais habilidade e eloquência que tenha, não será jamais
esta voz do Bom Pastor que as ovelhas escutam com proveito. Ressoa e se perde no vácuo.
E muitas vezes é um mau exemplo que importa em desdouro para a religião e detrimento
para os bons. E isto vale também para os outros campos da sua atividade. Aqui, também,
nenhum resultado sério, durável, porque falta o orvalho celeste, que só a oração do que se
humilha, oratio humiliantis se (Ecli 25, 2) atrai com abundância.
23. E aqui não podemos deixar de lamentar amargamente os que, levados por
novidades perniciosas, ousam sustentar uma opinião oposta à nossa, considerando como
perdido o tempo consagrado à oração e à meditação. Cegueira funesta! Prouvera Deus se
examinassem eles seriamente e com lealdade, e reconhecessem afinal até onde chegarão
com esta negligência e desprezo da oração, porque daí é que procedem o orgulho e a
obstinação, daí estes frutos amargos que nosso coração paterno nem quer lembrar e até
quisera absolutamente esquecer. Queira Deus ouvir os nossos votos e lançar sobre os
transviados um olhar misericordioso e neles difundir com abundância o espírito da graça e
da oração, para que chorem os seus erros, e voltem ao caminho que cometeram o erro de
abandonar, e nele andem com mais prudência! Como outrora o Apóstolo (Fp 1, 8), também
nós tomamos Deus por testemunha do quanto os amamos no Coração de Jesus Cristo!
24. Neles, portanto, e em todos vós, filhos caríssimos, fique profundamente gravada
a nossa exortação, que outra não é senão a de Nosso Senhor Jesus Cristo: Videte, vigilate
et orate (Mc 13, 83). Que cada um empregue todo o seu esforço e todo zelo em meditar
piedosamente e, com grande confiança, repita muitas vezes: Domine, doce nos orare (Lc 11,
1). Há uma razão especial e de grande importância, que nos deve levar à meditação: é o
grande poder de conselho e de virtude que nela encontramos e que nos é tão útil para a boa
direção das almas, obra de todas a mais difícil. Vem a propósito, e merece bem ser
lembrada aqui, essa alocução pastoral de São Carlos: 'Compreendei, meus irmãos, que nada
é tão necessário aos eclesiásticos como a oração mental. Deve ela preceder, acompanhar
e seguir a todas as nossas ações. Psallam - diz o Profeta - et intelligam (Sl 100, 2). Cantarei
e entenderei. Administrais os sacramentos? Meditai no que estais fazendo. Celebrais a
Missa? Meditai no que ofereceis. Recitais o Ofício? Meditai no que dizeis e a quem falais.
Dirigis as almas? Pensai no sangue que as purificou' (Ex orationib. ad clerum). É, pois, com
muita razão que a Igreja nos convida a repetir muitas vezes estes pensamentos de
Davi: Beatas vir qui in lege Domini meditatur; voluntas ejus permanet die ac nocte; omnia
quaecumque faciet semper prosperabuntur. Acrescentamos, para excitar o nosso zelo, um
derradeiro motivo e que vale bem por todos os demais. Se o padre é chamado um outro
Cristo, e o é verdadeiramente em virtude do poder que lhe é comunicado, não deve, pois,
em todo o seu modo de proceder ser e parecer conforme ao seu modelo? Summum igitur
studium nostrum sit in vita Jesu Christi meditari (Imit. de Cr., I, 1).
Leitura Espiritual
25. Há de juntar o padre à meditação cotidiana das coisas divinas a leitura dos livros
piedosos, sobretudo dos que foram divinamente inspirados. É o que São Paulo ordenava a
Timóteo: Attende lectioni (1 Tm 4, 13). Assim também São Jerônimo instruía a Nepociano
sobre a vida sacerdotal e lhe inculcava: 'Nunca deixes a leitura dos Livros Santos'. E dava a
seguinte razão: 'Aprende o que deves ensinar, adquire a verdadeira doutrina que tem sido
ensinada, para que estejas em condições de exortar segundo a sã doutrina e refutar os que
a contradizem'. Quanto aproveitam, em verdade, os padres constantemente fiéis a esta
prática! Com que sabor pregam o Cristo! Em vez de lisonjas ao espírito e adulações ao
coração dos seus ouvintes, como os arrastam a se tornarem melhores e os fazem levantar
os desejos para as coisas do céu!
26. E por um outro motivo, ainda, caros filhos, para vosso interesse pessoal, o
preceito do mesmo São Jerônimo: Semper in manu tua sacra sit lectio pode vos ser de resultados fecundos. Quem não sabe a influência enorme, que, sobre o espírito de um
amigo, exerce uma voz amiga que o adverte francamente, o ajuda e aconselha, o repreende,
o levanta e o afasta do erro? Beatus qui invenit amicum verum (Ecli 25, 12)... qui autem
invenit illum, invenit thesaurum (Ib 6, 14). Ora, devemos pôr os livros piedosos no número
dos nossos amigos verdadeiramente fiéis, porque nos chamam eles severamente ao
cumprimento de nossos deveres e das prescrições da verdadeira disciplina. Despertam no
coração as vozes do céu já adormecidas. Sacodem o torpor de nossas boas resoluções.
Não nos deixam adormecer numa tranquilidade enganadora. Reprovam nossas afeições
secretas quando são elas pouco recomendáveis. Descobrem aos imprudentes os perigos
que os esperam muitas vezes. Prestam-nos todos estes bons ofícios e com uma tão discreta
benevolência, que não somente amigos, mas ainda vêm a ser os melhores dentre os
melhores amigos. Temo-los quando os quisermos, sempre ao nosso lado, prontos a cada
momento para nos ajudarem nas necessidades de nossas almas. Deles a voz nunca é dura,
os conselhos sempre desinteressados, e a palavra nunca tímida ou mentirosa.
27. Inúmeros e notáveis exemplos demonstram a eficácia muito salutar dos livros
piedosos. Entretanto ela aparece sobremaneira no exemplo da conversão de Santo
Agostinho, porque foi para ele o ponto de partida dos seus méritos imensos na Igreja: 'Toma
e lê, toma e lê. Eu tomei (as Epístolas do Apóstolo São Paulo) abri e li em silêncio...
Dissiparam-se todas as trevas de minhas dúvidas, como se a luz que dá a paz invadisse o
meu espírito' (Conf. L. VIII, c. 12). Ao contrário, porém, ai! frequentemente em nossos dias,
quantos membros do clero se deixam pouco a pouco invadir pelas trevas da dúvida e
seguem os caminhos perversos do século! A causa é sobretudo esta: preferem aos livros
piedosos e divinos toda sorte de outros livros, e uma multidão de jornais que espalham em
profusão o erro subtil e a corrupção. Vigiai-vos, filhos caríssimos. Não vos fieis na vossa
idade adulta ou avançada. Não abuseis, com a esperança ilusória de que podereis servir
melhor ao bem comum. Ficai nos limites traçados pelas leis da Igreja ou reconhecidos pela
prudência e amor que deveis a vós mesmos. Porque, quem já uma vez deixou o seu espírito
se impregnar destes venenos, raramente escapará das consequências desastrosas do mal,
cujo germe a ele já se incorporou.
Exame de Consciência
28. Ainda mais. O padre tirará maior proveito das leituras piedosas e da meditação
das coisas celestes, se procurar seriamente descobrir até que ponto faz ele passar à prática
da vida as suas leituras e meditações. Nada melhor, a esse respeito, que o conselho de São João Crisóstomo, principalmente aos padres: 'Cada dia, ao se aproximar a noite, antes que
chegue o sono, faze o exame da tua consciência, pede que te preste contas e, se tiveste
maus desejos durante o dia, fere-os, arranca-os e faze deles penitência' (Expos, in Ps 4, n.
8). Este exercício é muito oportuno e fecundo para a virtude cristã. Os mais sábios mestres
da vida espiritual o provam excelentemente e com as melhores razões e com suas
exortações. Há na regra de São Bernardo uma passagem que nos comprazemos em citar:
Como um investigador diligente da pureza da alma, submete tua vida a um exame
cotidiano; indaga com cuidado no que ganhaste ou no que perdeste; aplica-te em
conhecer-te a ti mesmo; põe sob teus olhos todas as tuas faltas; coloca-te em face de ti
mesmo como em face de outrem e, neste estado, bate no teu peito (Meditationes piissimae,
c. V, De quotidiano sui ipsius examine).
29. Seria uma vergonha, se, na verdade, neste ponto se verificasse a palavra de
Cristo: os filhos do século são mais prudentes que os filhos da luz: Filii hujus saeculi,
prudentiores filii lucis (Lc 16, 8). Vede, pois, com que dedicação se ocupam eles dos seus
negócios. Como dão balanço em suas despesas e receitas! Com que atenção, com que rigor
fazem suas contas! Como se afligem com as perdas e tratam vivamente de repará-las!
Quanto a nós, que, talvez, nos abrasamos no desejo de chegar às honras, aumentar nosso
patrimônio, alcançar unicamente o renome e a glória pela nossa ciência, tratamos com
moleza e desgosto o mais importante e o mais difícil de todos os negócios, isto é: a aquisição
da santidade. Apenas de tempos em tempos nos recolhemos para examinar a nossa alma,
e esta é quase como uma terra inculta, como a vinha do preguiçoso da qual está escrito: Per
agrum hominis pigri transivi, et per vineam viri stulti; et ecce totam repleverant urticae et
operierunt superficiem ejus spinae; et maceria lapidum destructa erat (Pv 24, 30-31).
30. Esta situação se agrava pelo fato de que os maus exemplos, que põem sempre
em perigo a própria virtude do padre, vão se multiplicando em torno dele; de sorte que deve
ele redobrar cada dia a vigilância e os generosos esforços. Ora, está provado pela
experiência que todo aquele que se entrega frequentemente a um exame severo dos seus
pensamentos, das suas palavras e ações, tem mais força para detestar e fugir do mal, e ao
mesmo tempo mais zelo e ardor para fazer o bem. Outro fato de experiência é este: quem
recusa comparecer diante deste tribunal, onde a justiça se assenta como juiz e onde a
consciência ao mesmo tempo é acusada e a acusadora, se expõe geralmente a
inconveniências e danos. Em vão procurais nele a circunspecção, tão apreciada num cristão
e que lhe faz evitar as mais pequeninas faltas; a delicadeza de alma que convém de modo
todo particular ao padre, e que se assusta com a mais leve ofensa de Deus. Ainda mais.
Esta incúria, este abandono de si mesmo, vem a tal ponto se agravar que lhe faz até mesmo
negligenciar o Sacramento da Penitência, pelo qual Cristo, da maneira mais eficaz, supriu,
na sua misericórdia insigne, a fraqueza humana.
31. Não se poderia negar e é para deplorar amargamente: Não é raro que um homem
encontre acentos inflamados para afastar os outros do pecado, e não tema, entretanto, para
si coisa semelhante, e se endureça nas suas faltas. Exorta os outros a que não se demorem
em se purificar pelo rito sacramental das manchas da alma, enquanto ele mesmo neste ponto
é de uma tal indolência, que espera meses inteiros para o fazer. Derrama óleo e vinho
salutares nas chagas de outros, e fica ele mesmo ferido à margem do caminho sem se
preocupar em fazer um apelo à mão de um confrade que o socorra e que está, por assim
dizer, ao seu lado! Ai como daí já resultaram e ainda hoje resultam, aqui e acolá,
indignidades diante de Deus e da Igreja, males para o povo cristão e o sacerdócio!
32. E nós, caríssimos filhos, ao pensar, por dever de consciência, nestas coisas tão
tristes, temos a alma toda cheia de amargura e nossa voz se expande gemendo. Infeliz do
padre que desconhece a sua posição e que mancha por suas infidelidades o nome do Deus
Santo, a quem ele deve ser consagrado! Nada mais triste que a corrupção dos melhores: 'Sublime é a dignidade dos padres, mas profunda é a sua queda, se pecam; alegramo-nos
com a sua elevação, mas trememos pela sua queda. Há menos alegria por ter sido elevado,
que tristeza por ter caído das alturas' (S. Hierom. in Ezech., 1. XXIII, c. 44, v. 30). Infeliz,
pois, do padre que, esquecido de si mesmo, perde o zelo da oração, despreza o alimento
das leituras piedosas, que jamais se volta para si mesmo para escutar a voz acusadora da
sua consciência! Nem as feridas de sua alma que se vão envenenando, nem os gemidos da Madre Igreja, tocarão o desgraçado, até que o firam estas ameaças terríveis: Excaeca cor
populi hujus et aures ejus aggrava; et oculos ejus claude: ne forte videat oculis suis, et
auribus suis audiat et corde suo intelligat, et convertatur, et sanem eum (Is 6, 10).
33. Que o Deus rico em misericórdia afaste de vós, filhos caríssimos, este augúrio
triste. Sim, o pedimos a este Deus que vê o nosso coração e que o sabe isento de amargura
para quem quer que seja, mas cheio de um amor de pastor e de pai para com todos. Quae
est enim nostra spes, aut gaudium, aut corona gloriae? nonne vos ante Dominum nostrum
Jesum Christum? (1 Tes 2, 19).
34. Mas todos, onde quer que estejais, vedes que dias maus a Igreja deve hoje viver
por um oculto desígnio de Deus! Considerai e meditai como é santo o dever a que estais
obrigados, pois, honrados com tão alta dignidade, deveis esforçar-vos para estar sempre
com a Igreja e assisti-la nas suas provações e sofrimentos. O clero, hoje mais do que nunca,
tem necessidade de uma virtude não medíocre, de uma virtude absolutamente exemplar,
ardente, ativa, inteiramente disposta, enfim, a fazer grandes coisas e a sofrer muito por
Cristo. E nada há que peçamos tanto a Deus e que desejemos com mais ardor a todos e a
cada um de vós.
35. Em vós, portanto, brilhe com resplendor inalterável a castidade, que é mais belo
ornamento de nossa ordem sacerdotal. Pela beleza desta virtude, o padre se torna
semelhante aos anjos e aparece também mais digno da veneração do povo cristão e produz
frutos santos em maior abundância. Fortifique-se e sempre se desenvolva entre os padres
o respeito e obediência que prometeram solenemente àqueles que o Espírito Santo
estabeleceu para governar a Igreja. Sobretudo, que de coração e de espírito se apeguem
pelos laços de fidelidade, cada dia mais estreitados, às obrigações de respeito e de
submissão que, com toda justiça, se devem à Santa Sé Apostólica. Reine em todos vós
uma caridade que não busca os próprios interesses, a fim de que reprimais os aguilhões da
inveja, a ambição e a cobiça que seduzem os homens. Vossos esforços, numa fraterna
emulação, sejam para o acréscimo da glória divina.
36. A grande multidão dos doentes, cegos, coxos, paralíticos, multidão tão infeliz,
espera o benefício de vossa caridade. Esperam-nos sobretudo estas legiões da juventude,
esperança querida da sociedade e da religião, hoje assediada por todos os lados pela
corrupção e a mentira. Aplicai-vos com ardor não só a ensinar o catecismo. Mas, de novo,
instantemente e mais do que nunca vo-lo recomendamos, procurai merecer de todos a
confiança por todos os meios que vos sugerirem o vosso zelo e a vossa prudência. Assistir,
proteger, curar, pacificar; em tudo isto não tenhais outro desejo, outra sede, senão ganhar
ou conservar as almas para Jesus Cristo. Oh! com que ardor, com que atividade e com que
audácia os inimigos trabalham e se agitam para perdição de uma imensa multidão de almas!
37. Sobretudo é por esta caridade tão grande que a Igreja Católica goza de renome e
se gloria de seu clero. Este clero anuncia a paz cristã, leva a civilização aos povos selvagens.
Por seu apostolado laborioso, não raro fecundado com a efusão de sangue, se estende cada
vez o reinado de Cristo entre estes e a fé cristã brilha e resplandece em novos triunfos. E,
caríssimos filhos, se aos serviços prestados pela vossa caridade correspondem com a
inveja, a injúria e a calúnia, como acontece muitas vezes, não vos deixeis abater pela
tristeza, não vos canseis de fazer o bem (2 Tes 2, 13). Tende diante dos olhos estas
falanges de homens tão notáveis pelo seu número como pelos méritos, e que, à imitação dos apóstolos, no meio dos mais cruéis opróbrios suportados pelo nome de Cristo, ibant
gaudentes, maledicti benedicebant, porque somos nós filhos e irmãos dos santos cujos
nomes resplandecem no livro da vida e dos quais celebra a Igreja os méritos: non inferamus
crimen gloriae nostrae (1 Mac 9, 10).
III. MEIOS DE RENOVAÇÃO ESPIRITUAL
38. Quando o espírito da graça sacerdotal for renovado e desenvolvido em todos os
membros do clero, as outras reformas, sejam quais forem, que projetamos, serão, com o
auxílio de Deus, muito mais eficazes. Por isto pareceu-nos bem acrescentar ao que já
dissemos atrás alguns conselhos práticos sobre os meios de conservar e sustentar esta
graça.
Retiro Anual
39. Em primeiro lugar, há um exercício conhecido e recomendado por todos, mas que
nem todos igualmente praticam: é o retiro, durante o qual a alma se entrega aos exercícios
chamados espirituais. Deve ser feito quanto possível cada ano ou privadamente ou, o que
seria preferível, em comum. Este segundo modo ordinariamente é mais fecundo em
resultados. Tudo, segundo as prescrições episcopais. Nós mesmos já fizemos sentir as
vantagens desta prática quando tomamos, na mesma ordem de ideias, certas decisões
relativas à disciplina do clero romano.
Retiro Mensal
40. Não será de menor proveito para as almas, que um retiro deste gênero se faça
cada mês durante algumas horas, em particular ou em comum. Sentimo-nos felizes em
atestar que este uso já foi introduzido em diversos lugares pela iniciativa dos bispos, e que,
muitas vezes, este mesmo exercício foi presidido por eles.
Associações Sacerdotais
41. Temos também em mente recomendar as associações em que os padres, como
é conveniente a irmãos, se unam por laços particularmente bem estreitos, com a aprovação
e sob a direção da autoridade episcopal. Convém, certamente, que se agrupem em
associações, já para se garantirem mutuamente os recursos na desgraça, já para a defesa
da integridade da sua honra e das suas funções contra os artifícios do inimigo, já por
qualquer outra razão semelhante. Entretanto, importa bem mais que se associem, tendo em
vista o desenvolvimento e cultura da ciência sagrada, visando sobretudo aplicar-se com um
fervor cada vez maior aos deveres da sua santa vocação, e melhor trabalhar pela salvação
das almas, pondo em comum ideias e esforços. Os anais da Igreja atestam que nas épocas
em que os padres daqui e dali viviam em comum, este gênero de associações foi mais
fecundo e de mais felizes resultados. Por que não se poderia restabelecer em nossos dias
algo de semelhante, levando em conta a diversidade dos países e das funções? Não se terá
pois o direito de esperar para a felicidade da Igreja as mesmas vantagens de outrora?
42. Efetivamente não faltam associações deste gênero, munidas da aprovação dos
bispos. São tanto mais úteis quanto nelas se entra logo no começo do sacerdócio. Nós
mesmos, no tempo de nosso episcopado, encorajamos uma delas que a experiência nos
mostrou ser de muita vantagem, e ainda agora continuaremos a cercá-la bem como todas as outras
semelhantes de toda nossa benevolência. Estes esteios da piedade sacerdotal e outros
do mesmo gênero que uma prudência esclarecida sugerir aos bispos, segundo as
circunstâncias, apreciai-as, filhos caríssimos, e utilizai-as de tal maneira que, cada vez
mais, digne ambuletis vocatione qua vocati estis (Ef 4,1). Honrareis o vosso ministério e
cumprireis a vontade de Deus, que é a vossa santificação.
CONCLUSÃO
43. Tal é, efetivamente, o objeto dos nossos pensamentos e solicitudes. E eis por que,
com os olhos levantados para o céu, renovamos muitas vezes por todo o clero a mesma
súplica de Jesus Cristo: Pai Santo, santificai-os: Pater Sancte, sanctifica eos (Jo 17, 11-17).
Alegramo-nos ao pensar que um grande número de fiéis, de todas as condições, se
preocupam vivamente com o vosso bem e o da Igreja e se unem a nós nesta oração. E
também grato nos é saber que há muitas almas generosas, não somente nos claustros, mas
ainda mesmo na vida do século, que, nesta mesma intenção, não cessam de se oferecer a
Deus como vítimas santas. Que o Altíssimo aceite como um perfume suave as suas orações
puras e sublimes e não deixe de ouvir as nossas mais humildes súplicas. Que, na sua
bondade e Providência, venha em nosso auxílio, nós o pedimos e, que do Coração
Sacratíssimo de seu Amado Filho, venham sobre todo o clero tesouros de graças, de
caridade e de todas as virtudes.
44. Enfim, muito grato nos é, caros filhos, exprimir-vos de todo coração nosso
reconhecimento pelos votos de felicidade que nos oferecestes no ardor de vossa piedade
filial, pelo quinquagésimo aniversário de nosso sacerdócio, votos que, retribuindo, também
por vós os formulamos. Queremos confiá-los à Augusta Virgem Maria, Rainha dos
Apóstolos, para que se realizem com maior plenitude. Ela, na verdade, mostrou, pelo
exemplo aos apóstolos, as felizes primícias do sacerdócio, e como deviam perseverar
unânimes na oração até que fossem revestidos da virtude do Alto, E esta virtude certamente ela lhes obteve por suas orações em maior abundância. E ao mesmo tempo a incrementou
e fortificou por seus conselhos, a fim de assegurar maior fecundidade aos seus trabalhos. E, finalmente, desejamos, filhos caríssimos, que a paz de Cristo reine em vossos corações
com a alegria do Espírito Santo. E com estes votos vos damos a todos, de todo coração, a bênção apostólica.