Introdução
A mortificação cristã tem por fim neutralizar as influências malignas que o pecado original ainda exerce nas nossas almas, inclusive depois que o batismo as regenerou. Nossa regeneração em Cristo, ainda que tenha anulado completamente o pecado em nós, nos deixa sem embargo muito longe da retidão e da paz originais. O Concílio de Trento reconhece que a concupiscência, ou seja, o triplo apetite da carne, dos olhos e do orgulho, se deixa sentir em nós, mesmo depois do batismo, a fim de excitar-nos às gloriosas lutas da vida cristã.
A Escritura logo chama esta tripla concupiscência de 'homem velho' em oposição ao 'homem novo que é Jesus que vive em nós e nós mesmos que vivemos em Jesus, como 'carne' ou 'natureza caída', oposta ao 'espírito' ou 'natureza regenerada' pela graça sobrenatural. Este velho homem ou esta carne, ou seja, o homem inteiro, com sua dupla vida moral e física, deve ser, não digo aniquilado, porque é coisa impossível enquanto dure a vida presente, mas sim mortificado, ou seja, reduzido praticamente à impotência, à inércia e à esterilidade de um morto; há que impedir-lhe que dê seu fruto, que é o pecado, e anular sua ação em toda a nossa vida moral.
A mortificação cristã deve, portanto, abraçar o homem inteiro, estender-se a todas as esferas de atividade nas quais a natureza é capaz de mover-se. Tal é o objeto da virtude de mortificação. Vamos indicar sua prática, recorrendo sucessivamente às manifestações múltiplas de atividade em que se traduz em nós:
i) A atividade orgânica ou a vida corporal;
ii) A atividade sensível, que se exerce seja sob a forma do conhecimento sensível pelos sentidos exteriores ou pela imaginação, seja sob a forma de apetite sensível ou de paixão;
iii) A atividade racional e livre, princípio dos pensamentos e dos juízos, e das determinações da nossa vontade;
iv) Consideraremos a manifestação exterior da vida da alma, ou as ações exteriores;
v) E, finalmente, o intercâmbio das relações com o próximo.
A. Mortificação do Corpo
1. Limite-se, tanto quanto possa, em matéria de alimentos, ao estritamente necessário. Medite estas palavras que Santo Agostinho dirigia a Deus: 'Tu me ensinaste a considerar os alimentos como remédios. E quem é, Senhor, que não se deixa arrastar às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, é de fato grande, e deve engrandecer teu nome';
2. Rogue a Deus com frequência, rogue a cada dia que lhe impeça, com sua graça, de transpassar os limites da necessidade, ou deixar-se levar pelo atrativo do prazer;
3. Não coma nada entre as refeições, a menos que haja alguma necessidade ou razões de conveniência;
4. Pratique a abstinência e o jejum, mas os pratique somente sob obediência e com discrição;
5. Não é proibido experimentar satisfação corporal, mas o faça com intenção pura, bendizendo a Deus;
6. Regule o sono, evitando nisto toda relaxação ou moleza, sobretudo pela manhã. Se puder, fixe uma hora para se deitar e levantar, e se obrigue a ela energicamente;
7. Em geral, não descanse senão na medida do necessário; entregue-se generosamente ao trabalho, e não meça esforços e penas. Tenha cuidado para não extenuar o corpo, mas guarde-se também de agradá-lo: quando sentir que ele está disposto a rebelar-se, por pouco que seja, trate-o como a um escravo;
8. Se sente alguma ligeira indisposição, evite irritar-se com os demais por seu mau humor; deixe aos seus irmãos o cuidado de queixar-se; pelo que lhe cabe, seja paciente e mudo como o divino Cordeiro que levou verdadeiramente todas as nossas enfermidades;
9. Guarde-se de pedir uma dispensa ou revogação da ordem do dia pelo mínimo mal-estar: 'Há de se fugir como da peste de toda dispensa em matéria de regras', escrevia São João Berchmans;
10. Receba docilmente, e suporte com humildade, paciência e perseverança a penosa mortificação que se chama doença.
(Cardeal Mercier)