segunda-feira, 9 de outubro de 2017

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XVIII)

Há muitos anos, num reino distante, vivia um rei muito poderoso e cujo reinado se estendia muito além do alcance de sua visão. Este rei tinha quatro esposas*.

A quarta esposa era, de longe, quem o rei amava mais. Ela era de uma beleza singular e para ela o rei devotava a maior parte do seu tempo, cobrindo-a e cercando-a com as túnicas mais valiosas, as jóias mais resplendentes e as iguarias mais tentadoras. Para ela, dirigiu sempre o que podia ter mais do que tudo, e para ela destinava nada além do que existia de melhor.

O rei amava muito também a sua terceira esposa. Ela era a mais deslumbrante de todas e o rei ficava eufórico quando a ostentava junto consigo, nas cerimônias oficiais ou em viagens a outros reinos. Mas o rei tinha um certo ciúme desta esposa e, assim, a cobria de agrados e cuidados no temor de que pudesse vir a perdê-la.

Em relação à segunda esposa, o rei a amava de uma forma muito terna e especial. Não era a mais bela e nem a mais deslumbrante das esposas, mas nenhuma delas se equiparava a esta em termos de uma ouvinte interessada, confidente extremada, sincera amizade. Em todos os momentos conturbados, em todas as decisões difíceis, era à segunda esposa quem o rei devotava toda atenção e zelo afetivo.

O rei convivia com a primeira esposa, mas seria forçoso demais dizer que ele a amava. Ela não tinha a beleza, nem o esplendor, nem o discernimento das demais esposas. É verdade que ela estava sempre presente, e que nunca pleiteara coisa alguma para si. Mas essa humildade e esse escondimento não agradavam o rei, pois estes definitivamente não combinavam com as suas regalias de honras e poder. A quarta esposa era apenas formal, e o rei não lhe dava atenção maior do que saber que ela existia e que convivia com as suas demais esposas.

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Chegando à velhice, coberto de honrarias e louvores, o rei veio a adoecer gravemente de uma doença desconhecida e muito contagiosa. A certeza da morte iminente se apoderou dele e, com maior temor ainda, se defrontava com a ideia de morrer daí a pouco e sozinho. Que lhe adiantava agora tantos reinos e súditos, posses e domínios? Nada. O que lhe restava de verdade no último suspiro de vida - assim pensou - eram as suas amadas esposas.

Mandou, então, que lhe chamassem a quarta esposa, a mais bela, a mais amada. Mas quem lhe apareceu foi uma criada para lhe dizer: '- A rainha está ocupada em preparar-vos novas iguarias e não poderá estar em vossa presença neste momento'. A resposta da amada atingiu o rei como uma punhalada no coração. Mandou, então, que chamassem a segunda esposa, sua musa esplendorosa. E, novamente, foi a criada quem lhe deu a resposta da segunda esposa:  'Infelizmente não posso, meu senhor, que esplendor pode existir em ficar ao lado de um leito de morte?' Uma segunda punhalada o atingiu no coração.

A terceira esposa! 'Mandem que ela venha me ver imediatamente e fique comigo', ela que tantas vezes me devotou atenção e acolhimento! E eis que, mais uma vez, a criada se aproxima do leito de morte para anunciar ao rei: 'Ela não pode estar ao vosso lado agora, porque os médicos assim o recomendaram, pois a vossa doença é muito contagiosa'. Uma terceira punhalada o atingiu no coração.

Desconsolado e roído nos estertores do fim, o rei clamou pela primeira esposa, sem expectativa nenhuma, sem maiores consolos. E, mal tendo feito a solicitação, eis que diante dele se prostra a primeira esposa, objeto de sua desconsideração de uma vida inteira. É ela que toma nas suas as mãos do rei, é ela que o consola nos últimos momentos, é ela que permanece com ele até o seu último suspiro, é ela que o perdoa sem lhe exigir o gesto de perdão.

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Na verdade, todos nós somos reis e temos quatro esposas na vida. A nossa quarta esposa é o nosso corpo. A ele damos tudo e por ele tudo fazemos, no afã de satisfazer os seus caprichos e os seus desejos. Mas não importa o que façamos, a nossa consciência - a criada dos avisos - vai nos lembrar que ele será a primeira coisa que vamos perder na hora da nossa morte. 

Nossa terceira esposa são os nossos bens, status e riqueza. Que buscamos com tanta ânsia a vida toda, e que nos encheram de júbilo e ostentação diante dos outros, que nos levaram a posições dominadas pelo brilho fácil do orgulho, da vaidade, das honrarias que passam. A consciência vai nos alertar: quando você morrer, de que lhe servirá todos estes valores mundanos?

A nossa segunda esposa é a nossa família e os nossos amigos. Não importa o quanto eles estiveram ao nosso lado nesta vida, eles não poderão ser solidários conosco na passagem da morte. Nós estaremos sozinhos. A única coisa que ainda vamos ter conosco - a primeira esposa - é a nossa alma, justamente a esposa que teremos mais negligenciado e deixada no ostracismo, ainda que sempre estivesse conosco, sem nos abandonar sequer um único instante. Portanto, cultive, fortaleça e ame profundamente a sua primeira esposa - a sua alma - porque ela será a única a estar contigo na sua morte e a única que continuará fielmente ao teu lado por toda a eternidade!

(texto de autor desconhecido, reescrito e adaptado pelo autor do blog)

* na verdade, trata-se uma outra readaptação de um texto similar ao publicado em 'Histórias Que Eu Ouvi Contar' (XIV) neste blog.