segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXI)

Capítulo LXXI

Alívio às Santas Almas pelas Esmolas - Os Limites da Misericórdia Cristã - São Francisco de Sales e a Viúva de Pádua

A esmola cristã, essa misericórdia que Jesus Cristo tanto recomenda no Evangelho, compreende não só a assistência corporal prestada aos necessitados, mas também todo o bem que fazemos ao nosso próximo, trabalhando pela sua salvação, suportando os seus defeitos e perdoando as suas ofensas. Todas estas obras de caridade podem ser oferecidas a Deus pelos defuntos e contêm uma grande virtude satisfatória. São Francisco de Sales conta que em Pádua, onde fez parte dos seus estudos, existia um costume detestável. Os jovens divertiam-se a correr pelas ruas à noite, armados de arcabuzes, e gritavam a todos os que encontravam: 'Quem vem por aí?'

As pessoas eram obrigadas a responder, pois era costume então disparar sobre aqueles que não respondiam e, assim, muitas pessoas foram feridas ou mortas. Aconteceu certa noite que, por não ter  respondido à pergunta, um estudante foi atingido na cabeça por uma bala e ficou mortalmente ferido. O autor deste ato, em pânico, fugiu e refugiou-se na casa de uma boa viúva que conhecia e cujo filho era seu colega de curso. Confessou-lhe com lágrimas que acabara de matar um desconhecido e suplicou-lhe que lhe desse asilo em sua casa. Tocada de compaixão, e não suspeitando que tinha diante de si o assassino do seu filho, a senhora escondeu o fugitivo num lugar seguro, onde os oficiais de justiça não o poderiam descobrir.

Ainda não havia passado meia hora quando se ouviu um ruído tumultuoso à porta; um cadáver foi trazido para dentro e colocado diante dos olhos da viúva. Infelizmente, era o seu filho que tinha sido morto e cujo assassino estava agora escondido em sua casa. A pobre mãe rompeu em gritos de partir o coração e, entrando no esconderijo do assassino, gritou: 'Homem miserável' - disse ela - 'o que meu filho te fez para que o tenhas assassinado assim tão cruelmente?'

O culpado do crime, ao saber que tinha matado o seu amigo, chorou em voz alta, arrancando os cabelos e torcendo as mãos em desespero. Depois, lançando-se de joelhos, pediu perdão à sua protetora e suplicou-lhe que o entregasse ao magistrado, para que pudesse expiar tão horrível crime. A mãe desconsolada lembrou-se nesse momento que era cristã e que o exemplo de Jesus Cristo em rezar pelos seus carrascos a estimulava a uma ação heroica. Respondeu-lhe que, se ele pedisse perdão a Deus e emendasse a sua vida, ela deixá-lo-ia ir e suspenderia todos os procedimentos legais contra ele.

Este perdão foi de tal agrado a Deus, que Ele quis dar à generosa mãe uma prova notável disso. Permitiu que a alma do seu filho lhe aparecesse, resplandecente de glória, dizendo que ele estava prestes a gozar da bem-aventurança eterna. 'Deus teve misericórdia de mim, querida mãe' - disse a alma bendita - 'porque tiveste misericórdia do meu assassino. Em consideração ao perdão que concedestes, fui libertado do Purgatório onde, sem a assistência que me proporcionastes, teria de passar por longos anos de intenso sofrimento'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.