quarta-feira, 21 de setembro de 2022

SOBRE O COMBATE AOS NOSSOS INIMIGOS

Bem quisera*, bem quisera frequentemente entreter-me aqui da grandeza e da beleza das coisas de Deus; ou até entreter-me em discussões vivas, mas realmente amistosas, sobre reais e dolorosas divergências que me separa de alguns irmãos na fé. Preferiria o debate elevado e sempre inspirado pela santa caridade, que tem como primeira exigência o amor da verdade. Muitas vezes me entretenho com amigos sobre todos os assuntos que tocam a sagrada doutrina, e não tenho hoje mais feliz passatempo. Mas a sinistra realidade é a do combate público, escandaloso, que o inimigo faz à Igreja, e que, portanto, nos impõe.

Volvo quase um século, para lembrar a primeira lição de catecismo recebida de minha mãe. Creia-me o leitor ou não, mas o fato é que realmente me lembro. Suspendendo a esferográfica um instante, revi esse momento que peço a Deus rever na hora de minha morte: eu pequenino, nos joelhos de minha mãe, aprendia o Pelo Sinal. Segurava-me ela a mão e, com meu pequenino polegar, fazia o sinal iniciador da vida católica, repetindo as palavras: Pelo Sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus Nosso Senhor, de nossos inimigos. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Hoje, depois de um século de empulhamentos e do triunfal aggiornamento trazido por uma apoteose de equívocos, querem nos inculcar a amolecida ideia de um cristianismo sem combate, sem inimigos e, por via de consequência, sem necessidade do Sinal da Cruz. Ouso dizer que a paz mundial, a paz terrestre, a paz feita de bem-estar e do comodismo... constitui uma das principais preocupações do demônio. Muito melhor do que nós, ele sabe que a obsessão desse cuidado nos leva ao abandono de qualquer ideal de Bem e de Verdade, e diverte-se em saber também que esse é o caminho da mais espantosa explosão de inimizades que o mundo conhecerá. 

Por mim, confesso que me apavoro, quando sinto o horror que esta simples palavra provoca nesta atualidade costurada de ecumenismos, cursilhos, diálogos e demais retalhos da fantasia dopada. Uma vez, conversando com um general, usei inadvertidamente este vocábulo: 'os nossos inimigos' e ouvi esta afetuosa observação: 'professor, eu refiro o termo adversário'. Calei-me aterrado. Se os padres e os militares não sabem mais o que é o 'inimigo', quem o saberá? Porque, na verdade, as duas instituições que devem ter a viva noção desta entidade, são realmente a Igreja e o Exército. Aqui no Brasil, as desavenças acaso ocorridas entre essas duas instituições se explicam umas vezes pelo fato de não serem 'da Igreja' aqueles que em nome dela pretendem falar, outras vezes pelo fato de não saberem, os homens da Igreja, que o Exército, de 64 até hoje luta a seu lado contra o inimigo comum.

Imagino que, a esta altura, meu leitor esteja a revolver as ideias que aprendeu sobre a caridade, evangelho, perdão e outras grandes noções que hauriu no regaço da Igreja. Sendo estudioso, lembra-se que o Concílio de Trento trouxe esta definição lapidar: a Igreja Militante é aquela parte de seus membros (ainda na Terra) que luta contra três cruéis inimigos: o Diabo, o Mundo e a Carne.

Mas meu leitor também se lembrará de uma palavra de Cristo: 'Mas eu vos digo amareis vossos inimigos'... Meu Deus, como conciliar tantas ideias aparentemente opostas? Como poderei amar se devo combater? Respondo dizendo: combatendo! Porque esta é a melhor forma de caridade a que ele tem direito. Por incrível que pareça são os pacifistas que pecam contra a caridade quando querem que todos se unam e se misturem na mesma indiferença em relação à Verdade e ao Bem. Sim, não há mais odioso pecado contra a caridade do que a amável condescendência com que permitimos e colaboramos com a permanência no erro e no mal. Não fazer questão de incomodá-lo, de combatê-lo, de tirá-lo da sua tranquilidade no erro e no mal, é fazer uma das obras prediletas do demônio.

* um artigo quase cinquentenário, quase profético, de uma realidade assustadora e inquietante.

(Gustavo Corção, excertos de artigo publicado no jornal 'O Globo' de 25/07/74 - site Permanência)

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