quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

FRASES DE SENDARIUM (XXIII)


'A humildade é o primeiro degrau da escada da sabedoria'
(São Tomás de Aquino)

Eis a nossa identidade como filhos de Deus no mundo: a humildade como armadura, a caridade como bagagem, a fé como único tesouro...

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

SERMÕES DO CURA D'ARS (XVII)

 SOBRE O ARREPENDIMENTO

 'Ai de mim, que tanto pequei durante a minha vida'
(Confissões, de Santo Agostinho)

Assim falava Santo Agostinho, quando pensava na sua vida de outrora, que tinha passado incessantemente no vício abominável da impureza. Sempre que o pensamento lhe ocorria, seu coração era dilacerado e devorado pelo arrependimento. 'Ó meu Senhor' - exclamava ele - 'eu vivi sem vos amar; ó meu Senhor, quantos anos preciosos eu perdi! Dignai-vos, Senhor, imploro-vos, apagar da vossa memória as minhas faltas passadas!' Ó lágrimas preciosas, ó contrição salutar, que fizeram de um tão grande pecador um tão grande santo!

Quão depressa um coração verdadeiramente contrito recupera a amizade de Deus! Ah, quem dera a Deus que, cada vez que deixamos passar os nossos pecados diante dos olhos da nossa mente, pudéssemos dizer com o arrependido Santo Agostinho: 'Ai de mim! Pequei muito durante a minha vida; tende piedade de mim, Senhor!' Como mudaríamos rapidamente o nosso modo de vida! Sim, meus irmãos, confessemos todos nós, aqui presentes, com o mesmo fervoroso arrependimento e sinceridade, que somos grandes pecadores que merecem experimentar toda a ira de Deus. E louvemos a infinita misericórdia de Deus, que nos dá abundantemente dos seus tesouros para nos consolar na nossa miséria.

Se os nossos pecados foram tão grandes e a nossa vida tão dissoluta, temos a certeza do seu perdão, se seguirmos o exemplo do filho pródigo e nos lançarmos com o coração contrito aos pés do melhor dos pais. Deixem-me mostrar-vos, meus amigos cristãos, que o nosso arrependimento deve ter esta qualidade antes de poder obter o perdão dos nossos pecados: O pecador deve, em consequência do seu arrependimento, odiar sinceramente os seus pecados e detestá-los.

Para vos fazer compreender plenamente o que significa o arrependimento, ou seja, a dor que os nossos pecados devem causar à nossa consciência, eu teria de vos mostrar, por um lado, a aversão que o Senhor tem por eles e os tormentos que teve de sofrer para obter o perdão de Deus Pai e, por outro lado, as bênçãos que perdemos ao cometermos pecados e os males que trazemos sobre nós próprios no outro mundo; mas nenhum homem será capaz de compreender isto plenamente.

Onde vos conduzirei, meus irmãos, para vos mostrar esse arrependimento? Para a solidão do deserto, talvez, onde tantos santos passaram vinte, trinta, quarenta, cinquenta ou mesmo oitenta anos de suas vidas, lamentando faltas que não eram faltas aos olhos do mundo. Não, o vosso coração não se comoveria com estas coisas. Ou conduzir-vos-ei à entrada do inferno, para que possais ouvir os gritos e uivos tristes, e o ranger de dentes, causados pelo arrependimento dos seus pecados; mas, embora amarga e difícil de suportar, a sua dor e arrependimento são inúteis. Não, meus irmãos, não aprenderíeis aqui o verdadeiro arrependimento que deveríeis sentir pelos vossos pecados. Ó se eu pudesse levar-vos ao pé da cruz que ainda está avermelhada com o precioso Sangue de nosso Senhor, derramado para lavar os nossos pecados! Se eu pudesse levar-vos àquele jardim de dor, onde nosso Senhor derramou pelos nossos pecados, não lágrimas comuns, mas sangue, que fluiu de todos os poros do seu corpo! Se eu pudesse mostrar-vos Jesus carregando a cruz, cambaleando pelas ruas de Jerusalém, a cada passo tropeçando e sendo impelido aos pontapés. Ah se eu pudesse levar-vos ao Monte Calvário, onde Nosso Senhor morreu, por causa da nossa salvação.

Mas mesmo que eu pudesse fazer tudo isso, seria necessário que Deus vos desse a graça de inflamar no vosso coração o amor ardente de um São Bernardo, que se desfazia em lágrimas só de ver a cruz. Que belo e precioso arrependimento, como é feliz aquele que te guarda no seu coração! Mas a quem me dirijo: onde está aquele que o sente no seu coração? Ai de mim, não sei. Será ao pecador obstinado que abandonou o seu Deus e negligenciou a sua alma durante vinte ou trinta anos? Não, isso seria como tentar amolecer uma pedra deitando-lhe água em cima. Ou para aquele cristão que negligenciou missões, deixou de orar e desprezou as admoestações de seu conselheiro espiritual? Não, isso seria como tentar aquecer a água adicionando gelo sobre ela. Ou, talvez, para aquelas pessoas que se sentem satisfeitas se cumprirem seu dever pascal, e então, ano após ano, continuam no mesmo curso pecaminoso de vida? Não, essas são as vítimas que são engordadas para servirem de alimento às chamas eternas. Ou para os cristãos que comungam todos os meses e voltam a cair nos seus pecados todos os dias? Não, porque são como os cegos, que não sabem o que fazem, nem o que devem fazer.

A quem me hei de me dirigir então? Infelizmente não sei. Ó meu Senhor, onde é que o vou procurar, onde é que o vou encontrar? Sim, meu Senhor, eu sei de onde vem e quem o dá. Vem do céu, e Vós o concedeis, Senhor. Meu Senhor, nós Vos suplicamos, concedei-nos o arrependimento que esmaga e devora o nosso coração; este belo arrependimento que desarma a justiça de Deus e transforma uma eternidade de miséria em felicidade eterna. Ó bela virtude, como és necessária, e como é raro encontrá-la! E, no entanto, sem ela não há perdão, não há céu e, mais do que isso, sem ela tudo é em vão: penitência, caridade, esmola ou qualquer outra coisa que possamos fazer para ganhar a recompensa eterna.

Mas podemos perguntar: O que significa essa palavra 'arrependimento' e como podemos saber se o temos ou não? Meus irmãos, se me ouvirem, explicar-lhes-ei como podem saber se o têm ou não, e se não o têm, como podem obtê-lo. Se me perguntardes o que é o arrependimento, dir-vos-ei que é uma angústia da alma e um detestar do pecado passado, e uma firme resolução de nunca mais pecar. Sim, meus irmãos, esta é a mais importante de todas as condições que Deus impõe antes de perdoar os nossos pecados, e nunca pode ser dispensada. Uma doença que nos priva da fala, pode dispensar-nos da confissão; uma morte súbita pode dispensar-nos da necessidade de dar satisfação pelos nossos pecados durante a vida, mas com o arrependimento é diferente.

Sem ele, é impossível, absolutamente impossível, obter o perdão. Sim, meus irmãos, devo dizer com profundo pesar que a falta de arrependimento é a causa de um grande número de confissões e comunhões sacrílegas, e o que é ainda mais de lamentar é a circunstância de muitos não se aperceberem do triste estado em que se encontram, e viverem e morrerem nele. Ora, meus amigos, se tivermos a infelicidade de esconder um pecado na confissão, esse pecado está constantemente diante dos nossos olhos como um monstro que ameaça devorar-nos, e faz com que nos confessemos de novo em breve, para nos libertarmos dele. Mas é diferente com o arrependimento; confessamo-nos, mas o nosso coração não participa na acusação que fazemos contra nós próprios. Aproximamo-nos do Santo Sacramento com um coração tão frio, insensível e indiferente, como se estivéssemos a praticar um ato indiferente e sem consequências.

Assim vivemos de dia para dia, de ano para ano, até nos aproximarmos da morte, quando esperamos encontrar alguma coisa que nos tenha honrado, mas só descobrimos os sacrilégios que cometemos com as nossas confissões e comunhões. Ó meu Deus, quantos cristãos há que, na hora da morte, só descobrirão confissões inválidas! Mas não vou aprofundar mais este assunto, com receio de vos assustar e, no entanto, deveríeis ser levados à beira do desespero, para que parásseis imediatamente e melhorásseis a vossa condição agora mesmo, em vez de esperardes até ao momento em que reconhecereis a vossa condição, e em que será demasiado tarde para a melhorar. Mas continuemos com a nossa explicação, e logo sabereis, meus irmãos, se tivestes o arrependimento em todas as vossas confissões, que é tão absolutamente necessário para o perdão dos pecados.

Eu disse que o arrependimento é uma angústia de alma. É absolutamente necessário que um pecador chore pelos seus pecados, quer neste mundo, quer no outro. Neste mundo, podemos apagar os nossos pecados através do arrependimento, mas não no outro. Devemos estar muito gratos ao nosso querido Senhor pelo fato de a angústia da nossa alma ser suficiente para que Ele a deixe ser seguida de uma alegria eterna, em vez de nos fazer sofrer esse arrependimento eterno e essas terríveis torturas que seriam o nosso destino na outra vida, isto é, o inferno. Ó meu Deus, com quão pouco Te satisfazes!

Deixai-me dizer-vos que esta angústia de alma deve ter quatro qualidades; se faltar uma delas, não podemos obter o perdão dos nossos pecados. Não é necessário que se manifeste necessariamente em lágrimas; elas são boas e úteis, mas não são essenciais. É um fato que, quando São Paulo e o ladrão penitente se voltaram para Deus, não consta que tenham chorado, mas a sua angústia de alma era sincera. Não, meus amigos, não deveis confiar apenas nas lágrimas. Elas são muitas vezes enganadoras, e muitas pessoas choram no confessionário e voltam a cair no mesmo pecado na primeira oportunidade. A angústia de alma que Deus exige de nós é como aquela de que fala o profeta: 'Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes. Um sacrifício a Deus é um espírito aflito; um coração contrito e humilde, ó Deus, não desprezarás'.

Por que Deus exige que o nosso coração sinta esta angústia? Porque é no coração que cometemos os nossos pecados. 'É no coração' - diz o Senhor - 'que têm origem todos os maus pensamentos, todos os desejos pecaminosos'. Portanto, se o nosso coração é culpado, o coração deve sofrer, ou Deus nunca nos perdoará. A segunda qualidade desta angústia que devemos sentir pelos nossos pecados é que ela deve ser sobrenatural; isto é, deve ser provocada pelo Espírito Santo e não por causas naturais. Preocupar-se com um pecado que cometemos, porque ele nos excluiria do paraíso e nos levaria ao inferno, é um motivo sobrenatural, do qual o Espírito Santo é o originador, e levará ao verdadeiro arrependimento. Mas preocupar-se com um pecado por causa da vergonha que será a consequência, ou da desgraça que ele nos causará, isso é meramente uma tristeza natural, que não merece perdão. É perfeitamente claro, então, que a angústia de alma causada por nossos pecados deve surgir de nosso amor a Deus e nosso medo de seu castigo.

Aquele que, em seu arrependimento, só pensa em Deus, sente um arrependimento perfeito. Mas aquele que só se arrepende dos seus pecados apenas por causa dos castigos temporais que eles lhe trarão, não tem um arrependimento correto e não tem justificação para esperar o perdão dos seus pecados. A terceira qualidade do arrependimento é que ele deve ser ilimitado, ou seja, a angústia que ele provoca deve ser maior do que qualquer outra tristeza, como, por exemplo, pela perda de nossos pais, ou de nossa saúde, ou em geral pela perda de qualquer coisa que nos é mais cara nesta vida. A razão pela qual a nossa dor deve ser tão grande é porque deve ser equivalente à perda que nos causará e à desgraça que nos trará após a nossa morte. Imaginai, pois, quão grande deve ser a nossa angústia por um pecado que nos priva de todas as glórias do céu, afasta de nós o nosso querido Senhor e nos lança no inferno, que é a maior de todas as desgraças.

Mas, perguntareis, como poderemos saber se possuímos este verdadeiro arrependimento? Nada é mais fácil. Se estiverdes verdadeiramente arrependidos, não agireis nem pensareis como dantes, mudareis completamente o vosso modo de vida; odiareis o que amastes e amareis o que desprezastes e evitastes. Por exemplo, se tiverdes de confessar que, no agir e no falar, éreis de temperamento apressado, sereis doravante notáveis pela vossa brandura de comportamento e pela vossa consideração para com todos. Não é preciso preocupar-se em saber se fez uma confissão perfeita, pois erros são facilmente cometidos, mas a consequência da sua confissão deve ser que as pessoas digam de você: 'Como ele mudou, não é o mesmo homem. Uma mudança maravilhosa se operou nele!' Ó meu Senhor, como são raras as confissões que provocam uma mudança tão grande! A quarta e última qualidade é que o arrependimento deve ser abrangente. Vemos na vida dos santos, no que diz respeito à abrangência do arrependimento, que não podemos receber o perdão de um pecado mortal, mesmo que nos tenhamos arrependido corretamente do mesmo, se não sentirmos o mesmo arrependimento por todos os nossos pecados mortais.

A história fornece-nos um exemplo que nos mostra como os santos consideravam absolutamente necessária esta angústia pelos nossos pecados, para obter o perdão. Um dos oficiais papais adoeceu. O Santo Padre, que tinha grande estima pela sua bravura e santidade de vida, enviou um dos seus cardeais para lhe manifestar a sua simpatia e dar-lhe a absolvição. 'Dizei ao Santo Padre' - disse o moribundo ao Cardeal - 'que lhe estou muito grato pela sua ternura, mas dizei-lhe também que lhe ficaria infinitamente mais grato se ele rezasse a Deus para me obter a graça de um verdadeiro arrependimento dos meus pecados. Pois, de que me serve qualquer coisa, se o meu coração não se partir de angústia ao pensar que ofendi um Deus tão bom. Fazei, Senhor, se for possível, com que o arrependimento dos meus pecados seja igual à ofensa que vos fiz!'

E essa disposição é obtida pela oração - oração sincera e fervorosa: 'Ó meu Deus, criai em mim um coração puro, e renovai-me o espírito de firmeza. De vossa face não me rejeiteis, e nem me priveis de vosso Santo Espírito' (Sl 50,12-13). A este arrependimento, deve-se juntar naturalmente o firme propósito de não voltar a cometer o pecado; e este é o coração contrito e humilde que Deus não despreza. Desse modo, Ele o receberá novamente como seu filho e lhe restituirá todos os privilégios de um filho de Deus e herdeiro do Reino Celestial.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR

A beleza e a glória de Cristo transfigurado expressam a vida plena prometida por Deus aos que o amam e também a beleza e a glória da natureza humana renovada. No Tabor, a transfiguração de Jesus manifesta a transformação gloriosa da natureza humana, outrora obscurecida em Adão, sob o esplendor da divina essência. 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Andarei na presença de Deus, junto a Ele na terra dos vivos' (Sl 115)

Primeira Leitura (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18)  Segunda Leitura (Rm 8,31-34)  Evangelho (Mc 9,2-10)

 25/02/2024 - Segundo Domingo da Quaresma

13. A TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR


'Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha' (Mc 9,2). Uma alta montanha, o Monte Tabor. Como testemunhas da extraordinária manifestação da glória celeste e da vida eterna em Deus, Jesus conduz os três apóstolos escolhidos para o alto, numa clara assertiva de que é por meio do profundo recolhimento interior e da elevação da alma muito acima das coisas do mundo é que podemos viver efetivamente a experiência plena da contemplação de Deus.

'E transfigurou-se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar' (Mc 9,2-3). No mistério da transubstanciação do Senhor, os apóstolos testemunharam antecipadamente alguma coisa dos mistérios de Deus. Algo profundamente diverso da natureza humana, pois nascido direto da glória de Deus. Algo muito limitado da Visão Beatífica, posto que deveria atender sentidos humanos: 'nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que o amam' (1Cor 2,9). Ainda assim, algo tão extraordinário e consolador, que perturbou completamente aqueles homens e, ao mesmo tempo, os moldou definitivamente na certeza da vitória e da ressurreição de Cristo.

'Apareceram-lhe Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus' (Mc 9,4). A revelação da glória de Deus é atestada pela Lei e pelos Profetas, pelo Senhor da vida e da morte, pelos textos das Sagradas Escrituras. Naquele momento, se fecha a Lei e a morte (com Moisés) e se cumprem todas as profecias e se impõe a vida eterna em Deus (com Elias, que ainda vive). E, para não se ter dúvida alguma, Deus se pronuncia no Alto do Tabor em favor do Filho: 'Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!' (Mc 9,7).

Do alto do Tabor, a ordem divina ecoa pelos tempos e pelas gerações humanas a todos nós, transfigurados na glória de Deus pelo batismo e herdeiros do Tabor eterno: 'Escutai o que ele diz!'. Como batizados, somos como os apóstolos descidos do monte e novamente envoltos pelas brumas e incredulidades do mundo. Pela transfiguração, entretanto, somos encorajados a vencer o mundo como Cristo, a superar a fragilidade dos nossos sentidos, a elevarmos nosso pensamento às coisas do Alto, a manifestar em nós a glória de Deus como primícias do Céu, sob o consolo da fortaleza e da perseverança: 'Se Deus é por nós, quem será contra nós?' (Rm 8,31b).

sábado, 24 de fevereiro de 2024

SOBRE O CONHECIMENTO E A LEI NATURAL

Passemos a outra matéria que demonstra, por sua vez, a providência divina. Qual é essa matéria? Que Deus, ao formar lá no princípio o homem, imprimiu no seu ser uma lei natural. Mas, que é a lei natural  Pôs-nos Deus interiormente a consciência e fez que tivéssemos por natureza o conhecimento do bem, e do mal, que é o seu contrário. Porque não necessitamos aprender que a fornicação é má e que a continência é boa, já que conhecemos isto desde o princípio. E para que vejas que sabemos isso desde o princípio, mais tarde, o Legislador, ao promulgar a lei, e dizer: 'Não matarás!' (Ex 20, 13), não acrescentou: porque o homicídio é mau, mas disse simplesmente: 'não matarás': proibiu, pois, somente o pecado, não ensinou.

Mas por que quem disse 'não matarás', não acrescentou 'porque o homicídio é mau'? Porque já antes a consciência nos ensinou isso e, por esta razão, o Legislador fala como com pessoas que sabem e entendem isso. Ao contrário, quando fala de utro mandamento, que não nos é conhecido pela consciência adulta, não se limita a proibir, mas acrescenta o motivo. Deste modo, ao estabelecer a lei do sábado, diz: 'No sétimo dia não trabalharás' (Ex 20, 10). E acrescenta o motivo do descanso. Qual é? Porque, diz, no sétimo dia Deus descansou de todos os trabalhos que tinha feito (Ibid). Então, diz-me, por que ao falar do sábado acrescentou a causa, enquanto que ao falar do assasínio não fez o mesmo?

Porque aquele mandamento não era dos primários, nem dos conhecidos exatamente pela consciência, mas para um tempo particular  e por isso depois foi abolido. Pelo contrário, os necessários e que se prolongam na nossa vida são: 'não matarás, não fornicarás, não roubarás'. E por isso aqui não acrescenta nenhum motivo, nem introduz um ensinamento, basta unicamente a proibição.

Não somente por isso, mas também por outro motivo procurarei demonstrar-vos como o homem é autodidata no conhecimento da virtude. Adão cometeu o primeiro pecado e escondeu-se imediatamente depois do pecado. Mas se não conhecia que tinha feito uma coisa má, por que se escondia? Não existiam ainda escrituras, nem lei e nem Moisés; como conheceu o pecado para o qual se escondia? E não só se escondeu, mas também acusado, esforçou-se por deitar a culpa a outro, dizendo: 'a mulher que me deste deu-me da árvore e comi (Gn 3, 12); esta, por sua vez, deita a culpa a outro, à serpente. 

Repara na sabedoria de Deus: com efeito, tendo dito Adão 'Ouvi a tua voz e tive medo, porque estava nu, e escondi-me' (Gn 3, 10), Deus não lhe deitou na cara imediatamente o que tinha acontecido, nem disse 'por que comeste da árvore?', mas 'quem te disse que estavas nu' (Gn 3, 11) senão por ter comido da árvore que lhe tinha sido indicado que não comesse? Não se calou nem o repreendeu claramente; não se calou para o convidar a confessar o pecado; não o repreendeu claramente para que não fosse todo seu (de Deus) e,assim, aquele ficasse privado do perdão que nos veio pela confissão. Por isso não lhe disse claramente a causa de onde procedia o conhe cimento, mas falou em forma de pergunta para dar àquele a oportunidade de confessar. 

Podes ver isto mesmo novamente em Caim e Abel. Primeiramente ofereciam a Deus as primícias dos seus trabalhos. Mostremos, não só pelo lado do pecado mas também pelo lado da virtude, que o homem estava capacitado para saber ambas as coisas. Que, portanto, o homem sabia que o pecado é mau, mostrou-o Adão; que também sabia que a virtude é boa, tornou-o claro Abel. Sem ter sido ensinado por ninguém, sem ter ouvido uma lei que lhe falasse das primícias, mas por si mesmo e instruído pela consciência, ofereceu aquele sacrifício. Por isso não falou dos seus descendentes, mas dos primeiros homens quando ainda não havia escrituras, nem lei e nem profetas e juizes, mas somente Adão e os seus filhos, para que vejas que o conhecimento das coisas boas e das contrárias estava fixado já de antes na natureza. 

Como, pois, aprendeu Abel que é bom oferecer sacrifícios, que é bom honrar a Deus e dar-lhe graças por todas as coisas? Então? Será que Caim não ofereceu sacrifícios? Sim, também ofereceu, mas não do mesmo modo. E, assim, põe-se novamente de manifesto o conhecimento da consciência porque, efetivamente, como invejava ao que tinha sido honrado e deliberava acerca do assassínio, escondia a decisão mentirosa. E que diz? 'Vamos! Saiamos ao campo' (Gn 4, 8). Uma coisa é a aparência e a simulação da caridade; mas outra distinta é a intenção e a decisão do fratricídio. Mas se pensava que não era mau o que tinha planejado, por que razão o escondia? Uma vez cometido o assassínio, interrogado novamente por Deus: 'Onde está o teu irmão Abel?', disse: 'Não sei! Sou eu, acaso, guarda do meu irmão?' (Gn 4, 9). Por que nega? Não está claro que se condena duramente a si mesmo? Do mesmo modo que o seu pai se tinha escondido, assim também o faz.

... Como se manifesta isto? Por aquelas coisas pelas que se castigou outros que pecaram, pelas que se promulgou leis, pelas que se instituiu tribunais. Paulo, manifestando isto, dizia dos que vivem no vício: 'os quais conhecendo a justiça de Deus, segundo a qual os que fazem tais coisas são dignos de morte, não só as fazem, mas aprovam inclusive aos que as fazem' (Rm 1, 32). E como souberam que é vontade de Deus que os que vivem na maldade sejam castigados com a morte? Como? Se, efetivamente, não crês que o homicídio é mau, ao apanhar um homicida, não o castigues com o teu voto; se não crês que cometer adultério é mau, quando te encontrares com um adúltero não o castigues. Mas se escreves leis contra os pecados de outros e determinas castigos, e és severo, que defesa podes ter naquelas coisas em que tu próprio pecas? Dizendo que desconheces o que se deve fazer? 

Pecaste tu e aquele. Porque castigas àquele e te consideras a ti próprio digno de perdão? Se não sabias que o adultério era mau, não deve ser castigado nenhum dos dois; se castigas o outro e pensas tu fugir do castigo como poderá parecer racional que os réus dos mesmos crimes não sofram o mesmo castigo? (...) Posto que, com efeito, dará a cada um conforme às suas obras, pôs por isto em nós a lei natural e, mais tarde, deu-nos a lei escrita, para impor penas aos pecadores e coroar os que atuam retamente. Atuemos, pois, nas nossas ações com grande cuidado e como pessoas que tem que apresentar-se ao juízo tremendo, sabendo que não gozamos de nenhuma indulgência, se depois da lei natural e escrita e de tanta doutrina e de contínuas advertências, ainda descuidamos da nossa salvação.

(Das Homilias das Estátuas, aos cristãos de Antioquia, de São João Crisóstomo)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

TRABALHA E LUTA, COMO UM BOM SOLDADO DE CRISTO!

Labora sicut bonus miles Christi (II Tm 2,3) - Trabalha como um bom soldado de Cristo.Os combates pelo amor são longos e por vezes difíceis, e toda alma, por pouco generosa que seja, verifica em si mesma, em dados momentos, um movimento de depressão que se chama desânimo. Essa depressão nasce insensivelmente da acumulação de contratempos e reveses sucessivos. A alma sente-se abatida depois, de repente, de um acidente qualquer, de uma pequena indisposição, de uma fadiga corporal, de uma palavra de repreensão, de uma falta de atenção que sobrevém a nosso respeito e, então, a alma desanima.

Então tudo se torna pesado. A conversação espiritual é insípida, os livros que de ordinário a estimulavam perdem o sabor, os exercícios espirituais tornam-se um ônus intolerável. Nada a encoraja, tudo a aborrece e a desgosta. A vida espiritual parece uma ilusão; atingir-lhe o cimo, uma impossibilidade. E ela senta-se tristemente a meia encosta sem forças para as alturas. Eis, por certo, um sério obstáculo, que impede por vezes o caminho às almas mais resolutas. Importa procurar as causas do desânimo e os meios de frustrar-lhes a influência paralisante.

Antes de tudo, o que deve consolar-te, alma piedosa, é não seres tu a única, sujeita a essas depressões passageiras. As melhores almas sofrem por vezes desse mal. Jesus, em sua infinita sabedoria, permite de bom grado que as almas mais dispostas sintam algumas vezes sua impotência pessoal. 'Não é extraordinário' - como diz São Francisco de Sales - 'que a miséria se sinta por vezes miserável'. Não é de estranhar que a natureza se canse e não queira mais avançar. Não é de admirar que o  nosso corpo, como o asno de Balaão, recuse às vezes, os seus serviços e, insensível aos golpes, se deixe abater antes que nos conduzir.

A razão dessa canseira é quase sempre uma série de exercícios espirituais e trabalhos exteriores por demais longa. É preciso que tudo se faça com medida e não exigir do corpo e do espírito senão o que eles podem razoavelmente dar. É preciso, pois, repousar, confortar-se a tempo, e depois dizer com nova energia: 'Vamos! Ainda um pouco de tempo, o cimo já não está tão longe, Deus ajudará. Para frente!'

Os sentidos do homem são inclinados, desde tenra idade, para o sensível e fascinados pelos objetos exteriores. A razão não conhece a existência de Deus, senão por um trabalho de educação. Tudo que ele sabe do mundo sobrenatural sabe-o por ouvir dizer! E esse ser tão ínfimo, tão ignorante e tão inclinado para o mal, que somos nós, quer aspirar, por um esforço contínuo, a tornar-se amante apaixonado de uma beleza superior. Quer esgotar, para atingir esse ideal, todas as forças de sua alma e de seu corpo, e a cada inspiração, a cada apelo apenas perceptível, de uma graça invisível, quer elevar-se ainda mais alto.

Esse homem fraco, feito de sangue e de pó, propõe-se renunciar a todas as aspirações animais, modificar-se, contradizer-se, corrigir seu raciocínio e seu coração, não uma vez por acaso, mas sempre, e isso sob a influência de um agente misterioso que ele não vê e no qual crê e cujo socorro implora. Não, uma vida tão heróica só pode ser levada graças a uma luta incessante. Como é belo ver esse homem, exposto a todas as seduções, a todos os ataques do mundo e do inferno, a todas as conivências íntimas, voltar-se para Deus, impertubavelmente, apesar de suas fraquezas!

Também a santidade não exclui a luta, ela a supõe e a exige. A perfeição na terra não é o repouso nem o prazer. Não é um estado fixo. É uma ascensão para Deus, uma continuidade de esforços, uma tendência incessante para aproximar-se do ideal sobrenatural: ad ea vero quae priora sunt extendens meipsum (Fp 3,13). Toda santidade no mundo é relativa; pode e deve aumentar continuamente. Quanto mais a alma se une a Deus, e afunda-se na sua infinidade, tanto mais os espaços se estendem e os horizontes se ampliam. É o infinito a atravessar.

Afasta, pois, de teu espírito essa falsa ideia de que aqui na terra encontrarás repouso. Não estás no mundo para se deleitar de Deus, mas para amá-lo no trabalho, no sofrimento e na luta. E se há luta, haverá quedas algumas vezes; o soldado que combate valorosamente expõe-se a golpes e ferimentos, porém suas cicatrizes são para ele títulos de glória. Muitos há que não distinguem, na vida espiritual, a parte que lhes pertence e a que pertence a Deus.

(Excertos da obra 'O Divino Amigo', do Pe. Schrijvers)

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

ORAÇÃO: MEDIA VITA IN MORTE SUMUS

MEDIA VITA IN MORTE SUMUS é um canto gregoriano tradicionalmente atribuído a Notker, o Gago (840-912), monge beneditino da Abadia de Saint Gall (Suiça). Este hino era entoado tanto em cerimônias litúrgicas como em ritos de preparação para guerras religiosas, particularmente considerando a condição efêmera da existência humana que busca, no auxílio divino, a paz de espírito diante a inevitabilidade da morte.


MEDIA VITA IN MORTE SUMUS

Media vita in morte sumus:
quem quærimus adiutorem,
nisi te Domine,
qui pro peccatis nostris iuste irasceris?

Sancte Deus,
Sancte fortis,
Sancte misericors Salvator,
amaræ morti ne tradas nos.

In te speraverunt patres nostri,
speraverunt et liberasti eos.

Sancte Deus,
Sancte fortis,
Sancte misericors Salvator,
amaræ morti ne tradas nos.

Ad te clamaverunt patres nostri,
clamaverunt, et non sunt confusi.

Sancte Deus,Sancte fortis,
Sancte misericors Salvator,
amaræ morti ne tradas nos.

Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto.

Sancte Deus,
Sancte fortis,
Sancte misericors Salvator,
amaræ morti ne tradas nos.


NO MEIO DA VIDA, NA MORTE ESTAMOS

No meio da vida, na morte estamos,
a quem recorrer a não ser a Vós, Senhor,
que vos irais com justiça pelos nossos pecados?

Deus Santo,
Deus Forte,
Santo e misericordioso Salvador
não nos imponha uma amrga morte.

Nossos pais puseram sua confiança em vós,
esperaram e vós os livrastes.

Deus Santo,
Deus Forte,
Santo e misericordioso Salvador
não nos imponha uma amarga morte.

A vós clamaram nossos pais
clamaram e não foram confundidos.

Deus Santo,
Deus Forte,
Santo e misericordioso Salvador
não nos imponha uma amarga morte.

Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Deus Santo,
Deus Forte,
Santo e misericordioso Salvador
não nos imponha uma amarga morte.