sábado, 24 de fevereiro de 2024

SOBRE O CONHECIMENTO E A LEI NATURAL

Passemos a outra matéria que demonstra, por sua vez, a providência divina. Qual é essa matéria? Que Deus, ao formar lá no princípio o homem, imprimiu no seu ser uma lei natural. Mas, que é a lei natural  Pôs-nos Deus interiormente a consciência e fez que tivéssemos por natureza o conhecimento do bem, e do mal, que é o seu contrário. Porque não necessitamos aprender que a fornicação é má e que a continência é boa, já que conhecemos isto desde o princípio. E para que vejas que sabemos isso desde o princípio, mais tarde, o Legislador, ao promulgar a lei, e dizer: 'Não matarás!' (Ex 20, 13), não acrescentou: porque o homicídio é mau, mas disse simplesmente: 'não matarás': proibiu, pois, somente o pecado, não ensinou.

Mas por que quem disse 'não matarás', não acrescentou 'porque o homicídio é mau'? Porque já antes a consciência nos ensinou isso e, por esta razão, o Legislador fala como com pessoas que sabem e entendem isso. Ao contrário, quando fala de utro mandamento, que não nos é conhecido pela consciência adulta, não se limita a proibir, mas acrescenta o motivo. Deste modo, ao estabelecer a lei do sábado, diz: 'No sétimo dia não trabalharás' (Ex 20, 10). E acrescenta o motivo do descanso. Qual é? Porque, diz, no sétimo dia Deus descansou de todos os trabalhos que tinha feito (Ibid). Então, diz-me, por que ao falar do sábado acrescentou a causa, enquanto que ao falar do assasínio não fez o mesmo?

Porque aquele mandamento não era dos primários, nem dos conhecidos exatamente pela consciência, mas para um tempo particular  e por isso depois foi abolido. Pelo contrário, os necessários e que se prolongam na nossa vida são: 'não matarás, não fornicarás, não roubarás'. E por isso aqui não acrescenta nenhum motivo, nem introduz um ensinamento, basta unicamente a proibição.

Não somente por isso, mas também por outro motivo procurarei demonstrar-vos como o homem é autodidata no conhecimento da virtude. Adão cometeu o primeiro pecado e escondeu-se imediatamente depois do pecado. Mas se não conhecia que tinha feito uma coisa má, por que se escondia? Não existiam ainda escrituras, nem lei e nem Moisés; como conheceu o pecado para o qual se escondia? E não só se escondeu, mas também acusado, esforçou-se por deitar a culpa a outro, dizendo: 'a mulher que me deste deu-me da árvore e comi (Gn 3, 12); esta, por sua vez, deita a culpa a outro, à serpente. 

Repara na sabedoria de Deus: com efeito, tendo dito Adão 'Ouvi a tua voz e tive medo, porque estava nu, e escondi-me' (Gn 3, 10), Deus não lhe deitou na cara imediatamente o que tinha acontecido, nem disse 'por que comeste da árvore?', mas 'quem te disse que estavas nu' (Gn 3, 11) senão por ter comido da árvore que lhe tinha sido indicado que não comesse? Não se calou nem o repreendeu claramente; não se calou para o convidar a confessar o pecado; não o repreendeu claramente para que não fosse todo seu (de Deus) e,assim, aquele ficasse privado do perdão que nos veio pela confissão. Por isso não lhe disse claramente a causa de onde procedia o conhe cimento, mas falou em forma de pergunta para dar àquele a oportunidade de confessar. 

Podes ver isto mesmo novamente em Caim e Abel. Primeiramente ofereciam a Deus as primícias dos seus trabalhos. Mostremos, não só pelo lado do pecado mas também pelo lado da virtude, que o homem estava capacitado para saber ambas as coisas. Que, portanto, o homem sabia que o pecado é mau, mostrou-o Adão; que também sabia que a virtude é boa, tornou-o claro Abel. Sem ter sido ensinado por ninguém, sem ter ouvido uma lei que lhe falasse das primícias, mas por si mesmo e instruído pela consciência, ofereceu aquele sacrifício. Por isso não falou dos seus descendentes, mas dos primeiros homens quando ainda não havia escrituras, nem lei e nem profetas e juizes, mas somente Adão e os seus filhos, para que vejas que o conhecimento das coisas boas e das contrárias estava fixado já de antes na natureza. 

Como, pois, aprendeu Abel que é bom oferecer sacrifícios, que é bom honrar a Deus e dar-lhe graças por todas as coisas? Então? Será que Caim não ofereceu sacrifícios? Sim, também ofereceu, mas não do mesmo modo. E, assim, põe-se novamente de manifesto o conhecimento da consciência porque, efetivamente, como invejava ao que tinha sido honrado e deliberava acerca do assassínio, escondia a decisão mentirosa. E que diz? 'Vamos! Saiamos ao campo' (Gn 4, 8). Uma coisa é a aparência e a simulação da caridade; mas outra distinta é a intenção e a decisão do fratricídio. Mas se pensava que não era mau o que tinha planejado, por que razão o escondia? Uma vez cometido o assassínio, interrogado novamente por Deus: 'Onde está o teu irmão Abel?', disse: 'Não sei! Sou eu, acaso, guarda do meu irmão?' (Gn 4, 9). Por que nega? Não está claro que se condena duramente a si mesmo? Do mesmo modo que o seu pai se tinha escondido, assim também o faz.

... Como se manifesta isto? Por aquelas coisas pelas que se castigou outros que pecaram, pelas que se promulgou leis, pelas que se instituiu tribunais. Paulo, manifestando isto, dizia dos que vivem no vício: 'os quais conhecendo a justiça de Deus, segundo a qual os que fazem tais coisas são dignos de morte, não só as fazem, mas aprovam inclusive aos que as fazem' (Rm 1, 32). E como souberam que é vontade de Deus que os que vivem na maldade sejam castigados com a morte? Como? Se, efetivamente, não crês que o homicídio é mau, ao apanhar um homicida, não o castigues com o teu voto; se não crês que cometer adultério é mau, quando te encontrares com um adúltero não o castigues. Mas se escreves leis contra os pecados de outros e determinas castigos, e és severo, que defesa podes ter naquelas coisas em que tu próprio pecas? Dizendo que desconheces o que se deve fazer? 

Pecaste tu e aquele. Porque castigas àquele e te consideras a ti próprio digno de perdão? Se não sabias que o adultério era mau, não deve ser castigado nenhum dos dois; se castigas o outro e pensas tu fugir do castigo como poderá parecer racional que os réus dos mesmos crimes não sofram o mesmo castigo? (...) Posto que, com efeito, dará a cada um conforme às suas obras, pôs por isto em nós a lei natural e, mais tarde, deu-nos a lei escrita, para impor penas aos pecadores e coroar os que atuam retamente. Atuemos, pois, nas nossas ações com grande cuidado e como pessoas que tem que apresentar-se ao juízo tremendo, sabendo que não gozamos de nenhuma indulgência, se depois da lei natural e escrita e de tanta doutrina e de contínuas advertências, ainda descuidamos da nossa salvação.

(Das Homilias das Estátuas, aos cristãos de Antioquia, de São João Crisóstomo)