CAPÍTULO VII
Existe no coração humano um sentimento natural que não permite ninguém detestar sua própria carne. Assim, se alguém vem a saber que, após a sua morte, seu corpo não receberá as honras de sepultura, conforme o costume da cada raça e nação, sente-se perturbado como homem. Teme que seu corpo, antes da morte, não atinja o destino pretendido após a morte.
É isto que lemos no livro dos Reis (1Rs 13,21-22), quando Deus envia um profeta a outro profeta (um homem de Deus) que havia transgredido a Sua Palavra, para anunciar-lhe que seu corpo, como castigo, não seria levado à sepultura de seus pais. Eis o que diz as Escrituras: 'Aquele profeta disse ao homem de Deus que tinha vindo de Judá: Eis o que diz o Senhor: porque não obedeceste à Palavra do Senhor e não guardaste o mandamento que o Senhor, teu Deus, havia te imposto, voltando e comendo pão e tomando água, o teu cadáver não será levado ao sepulcro de teus pais'.
Medindo a importância desta punição em relação ao Evangelho - onde está escrito que, estando morto o corpo, os membros nada devem temer - não podemos dizer que isso tenha sido uma punição, exceto se considerarmos o amor que todo homem tem por sua própria carne: o profeta, em vida, com certeza sentiu temor e tristeza com a ideia de um tratamento que não poderia sentir após a morte. E era justamente essa a sua punição; esse sentimento de dor diante da ideia do que sofreria o seu corpo, ainda que, de fato, não viesse a sofrer em absoluto no momento em que a ameaça se concretizasse.
Ora, o Senhor quis apenas punir a desobediência do seu servo, não por má vontade, mas por ter sido enganado pela mentira de um outro profeta. Não se pode pensar que a mordida da fera selvagem o tenha matado para que a sua alma fosse lançada no inferno, pois o mesmo leão que o agredira montou guarda de seu corpo, sem fazer mal algum ao jumento que assistia destemidamente ao funeral do seu dono, ao lado da terrível fera. Esse fato notável é sinal de ter sofrido o profeta tal morte como castigo temporal e não como punição eterna.
O Apóstolo lembra que muitos são punidos com doença ou morte por causa de seus pecados, fazendo esta observação: 'Se nos examinássemos a nós mesmos, não seríamos julgados; mas com seus julgamentos, o Senhor nos corrige, para que não sejamos condenados com o mundo' (1Cor 11,31-32).
O velho profeta, que enganara o homem de Deus, sepultou-o com muita honra e tomou os procedimentos necessários para que, mais tarde, ele mesmo fosse sepultado junto a aquele. Esperava que aqueles ossos encontrariam graça quando chegasse o tempo em que, conforme a profecia do homem de Deus, Josias, rei de Judá, exumaria os ossos de muitos mortos para profanar com eles os altares sacrílegos erguidos aos ídolos. Contudo, passados mais de 300 anos, Josias poupou o sepulcro onde havia sido enterrado o homem de Deus que predissera esse fato. E, assim, graças a esse homem de Deus, a sepultura do profeta que o enganara não foi violada.
O efeito que leva alguém a odiar a própria carne o havia feito prever o destino do seu corpo, mesmo tendo matado sua alma por uma mentira. Cada um ama sua própria carne por instinto. Assim, um profeta sofreu à ideia de que não iria repousar no sepulcro de seus pais e o outro tomou o cuidado de prover à segurança de seus ossos, fazendo-se enterrar em sepulcro que ninguém haveria de violar.
CAPÍTULO VIII
Porém, os mártires venceram esse apego ao próprio corpo em sua luta pela verdade. Não é de surpreender que tenham desprezado as honras reservadas aos seus despojos. Só estariam insensíveis a elas após a morte, pois enquanto viviam e tinham sensibilidade, não se deixaram vencer pelo suplício.
O Senhor não permitiu ao leão tocar no cadáver daquele homem de Deus, morto por essa mesma fera assassina que logo depois se tornou seu guardião (1Rs 13,24).
Do mesmo modo, Deus poderia, se quisesse, ter afastado os cadáveres de seus fiéis dos cães aos quais foram jogados. Ele poderia, de mil maneiras, dominar a crueldade dos carrascos, impedindo-os de queimar aqueles corpos e dispersar suas cinzas. Porém, foi necessário que essa provação se acrescentasse ainda à múltipla diversidade das tribulações, a fim de que a firmeza da ferocidade da perseguição, armada contra o corpo deles, não temesse diante da privação das honras fúnebres do sepultamento.
Do mesmo modo, Deus poderia, se quisesse, ter afastado os cadáveres de seus fiéis dos cães aos quais foram jogados. Ele poderia, de mil maneiras, dominar a crueldade dos carrascos, impedindo-os de queimar aqueles corpos e dispersar suas cinzas. Porém, foi necessário que essa provação se acrescentasse ainda à múltipla diversidade das tribulações, a fim de que a firmeza da ferocidade da perseguição, armada contra o corpo deles, não temesse diante da privação das honras fúnebres do sepultamento.
Em outras palavras: era necessário que a fé na ressurreição não fosse abalada pela destruição do corpo. Logo, todas essas provações foram permitidas para que os mártires, após demonstrarem tão grande coragem nos sofrimentos, se tornassem ainda mais fervorosos para confessar a Cristo, tornando-se testemunhas também desta verdade: os que matam o corpo, nada mais podem fazer. Qualquer que seja o tratamento imposto aos corpos sem vida, em nenhum efeito resultará pois sendo o corpo desprovido de vida, que se separou dele, nada mais pode sentir. E aquele que o criou nada pode perder.
Mas enquanto tratavam com tanta crueldade os corpos das vítimas - e os mártires suportavam com grande coragem tais tormentos - entre os irmãos erguia-se grande lamentação. Estavam aflitos por não terem a liberdade para prestar os deveres fúnebres aos santos, como é de justiça. A vigilância dos guarda proibia-os de subtrair às escondidas algum resto mortal desses mártires, como nos atesta a mesma História [História Eclesiástica, de Eusébio]. Após sua morte, os mártires não padeciam mais nenhum sofrimento, nem mesmo do esfacelamento dos seus membros, nem das chamas que transformaram em cinzas os seus ossos, e nem da dispersão destas cinzas. Mas os cristãos eram atormentados por grande dor e piedade por não poderem sepultar a mínima porção de suas relíquias. Eles sentiam em sua misericordiosa compaixão todos os sofrimentos que aqueles mortos não mais podiam experimentar.
CAPÍTULO IX
Foi graças a esse sentimento de misericordiosa compaixão, que acabo de citar, que o rei Davi louvou e bendisse aqueles que caridosamente forneceram uma sepultura aos ossos secos de Saul e Jônatas (2Sm 2,4-6). Mas que tipo de caridade se pode testemunhar para com aqueles que nada mais sentem? Seria, por acaso, retornar àquela concepção de que os falecidos privados da sepultura não podem cruzar o rio do Hades?
Rejeitamos essa ideia contrária à fé cristã! De outra maneira, teríamos que considerar que o pior castigo imposto aos mártires fora justamente o fato de terem sido privados da sepultura e, nesse caso, a Verdade os teria enganado ao dizer: 'Não temais aqueles que matam o corpo e depois disso nada mais podem fazer' 9Lc 12,4), pois os seus perseguidores teriam conseguido impedir-lhes de chegar à morada tão desejada. Isso tudo é de uma falsidade evidente: os fiéis nada sofrem por estarem privados da sepultura da mesma forma como os infiéis nada aproveitam por a receberem.
Rejeitamos essa ideia contrária à fé cristã! De outra maneira, teríamos que considerar que o pior castigo imposto aos mártires fora justamente o fato de terem sido privados da sepultura e, nesse caso, a Verdade os teria enganado ao dizer: 'Não temais aqueles que matam o corpo e depois disso nada mais podem fazer' 9Lc 12,4), pois os seus perseguidores teriam conseguido impedir-lhes de chegar à morada tão desejada. Isso tudo é de uma falsidade evidente: os fiéis nada sofrem por estarem privados da sepultura da mesma forma como os infiéis nada aproveitam por a receberem.
Perguntemo-nos, então, por que aqueles que enterraram Saul e seu filho Jônatas foram louvados, por executarem uma obra de misericórdia, e abençoados pelo piedoso rei Davi. Ocorre que os corações piedosos obedecem a uma boa inspiração quando, levados pelo sentimento de que 'ninguém odeia a própria carne', sofrem ao verem os cadáveres dos outros receberem maus cuidados, pois não gostariam que seu próprio corpo sem vida recebessem tal tratamento. E o que desejam que lhes proporcionem quando não mais existirem, cuidam de proporcionar aos que já não existem, enquanto eles mesmos ainda gozam dos sentidos.
('De Cura pro Mortuis Gerenda' - O Cuidado Devido aos Mortos, de Santo Agostinho - Parte III)