sábado, 6 de junho de 2015

DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Então, ó Senhor, tu que nos concedeste a razão em defesa da fé, faze com que eu conheça, até quanto me é possível, que tu existes assim como acreditamos, e que és aquilo que acreditamos. Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não existe porque 'o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe?' Porém, o insipiente, quando eu digo: 'o ser do qual não se pode pensar nada maior', ouve o que digo e o compreende. Ora, aquilo que ele compreende se encontra em sua inteligência, ainda que possa não compreender que existe realmente. Na verdade, ter a ideia de um objeto qualquer na inteligência, e compreender que existe realmente, são coisas distintas. 

Um pintor, por exemplo, ao imaginar a obra que vai fazer, sem dúvida, a possui em sua inteligência; porém, nada compreende da existência real da mesma, porque ainda não a executou. Quando, ao contrário, a tiver pintado, não a possuirá apenas na mente, mas também lhe compreenderá a existência, porque já a executou. O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência 'o ser do qual não se pode pensar nada maior', porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência. 

Mas 'o ser do qual não é possível pensar nada maior' não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, 'o ser do qual não é possível pensar nada maior' existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, 'o ser do qual não se pode pensar nada maior' existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade. 

O que acabamos de dizer é tão verdadeiro que nem é possível sequer pensar que Deus não existe. Com efeito, pode-se pensar na existência de um ser que não admite ser pensado como não existente. Ora, aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente. Por isso, 'o ser do qual não é possível pensar nada maior', se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é 'o ser do qual não se pode pensar nada maior', não seria 'o ser do qual não é possível pensar nada maior', o que é ilógico. Existe, portanto, verdadeiramente 'o ser do qual não é possível pensar nada maior'; e existe de tal forma, que nem sequer é admitido pensá-lo como não existente. E esse ser, ó Senhor, nosso Deus, és tu.

Assim, tu existes, ó Senhor, meu Deus, e de tal forma existes que nem é possível pensar-te não existente. E com razão. Se a mente humana conseguisse conceber algo maior que tu, a criatura elevar-se-ia acima do Criador e formularia um juízo acerca do Criador. Coisa extremamente absurda. E, enquanto tudo, excluindo a ti, pode ser pensado como não existente, tu és o único, ao contrário, que existes realmente, entre todas as coisas, e em sumo grau. Então, por que o insipiente disse em seu coração: 'Não existe Deus', quando é tão evidente, à razão humana, que tu existes com maior certeza que todas as coisas? Justamente porque ele é insensato e carente de raciocínio. 

Obs.: A prova ontológica da existência de Deus, expressa às vezes em linguagem difícil e complexa por Santo Anselmo, resumem-se no sentido  de que algo é certamente maior se pensado existente na inteligência e na realidade do que existente apenas na inteligência.

(Excertos da obra 'Proslogio', de Santo Anselmo da Cantuária)