sexta-feira, 5 de junho de 2015

DA ÂNSIA DE DEUS


Eia, vamos homem! Foge por um pouco às tuas ocupações, esconde-te dos teus pensamentos tumultuados, afasta as tuas graves preocupações e deixa de lado as tuas trabalhosas inquietudes. Busca, por um momento, a Deus, e descansa um pouco nele. Entra no esconderijo da tua mente, aparta-te de tudo, exceto de Deus e daquilo que pode levar-te a ele, e, fechada a porta, procura-o. Abre a ele todo o teu coração e dize-lhe: 'Quero teu rosto; busco com ardor teu rosto, ó Senhor.' 

Eis-me pois, ó Senhor meu Deus, ensina agora ao meu coração onde e como procurar-te, onde e como encontrar-te. Senhor, se não estás aqui, na minha mente; se estás ausente, onde poderei encontrar-te? Se tu estás por toda parte, por que não te vejo aqui? Certamente habitas uma luz inacessível. Mas onde está essa luz inacessível? E como chegar a ela? Quem me levará até lá e me introduzirá nessa morada cheia de luz para que ali possa enxergar-te? Mas por quais traços e por que aspecto conseguirei reconhecer-te? 

Nunca te vi, ó Senhor meu Deus. Senhor, eu não conheço o teu rosto. Que fará, ó Senhor, que fará este teu servo tão afastado de ti? Que fará este teu servo tão ansioso pelo teu amor e, no entanto, lançado tão longe de ti? Anela ver-te, mas teu rosto está demasiado longe dele. Deseja aproximar-se de ti, mas a tua habitação fica inacessível. Arde pelo desejo de encontrar-te e não sabe onde moras. Suspira só por ti e não conhece o teu rosto. Ó Senhor, tu és o meu Deus e o meu Senhor; e nunca te vi. Tu me fizeste e resgataste, e tudo o que tenho de bom devo-o a ti. No entanto, não te conheço ainda. Fui criado para ver-te e até agora não consegui aquilo para que fui criado. 

Ó quão miserável é a sorte do homem que perdeu aquilo por que foi feito! Ó quão dura e cruel aquela queda, pela qual tantas coisas ele perdeu! E que encontrou? Que teve em troca? Que lhe ficou? Perdeu a felicidade para a qual foi criado e encontrou a miséria para a qual certamente não foi feito. Afastou-se daquele sem o qual não há felicidade e ficou com aquilo que é, por si, mísero e caduco. Antes o homem alimentava-se com o pão dos anjos e agora, faminto, come o pão da dor, que sequer conhecia. 

Ó luto comum dos homens, pranto universal dos filhos de Adão! Este tinha fartura de tudo e nós morremos de fome. Ele era rico e nós somos mendigos. Ele tinha a felicidade e a perdeu miseravelmente, e nós vivemos infelizes, tudo desejando e, indigentes, ficamos de mãos vazias! Por que ele, desde que o podia facilmente, não nos conservou um bem tão grande, cuja perda havia de nos acarretar tantas aflições? Por que nos tirou a luz para que ficássemos nas trevas? Por que nos privou da vida para nos condenar à morte? Miseráveis, de onde fomos expulsos e para onde fomos impelidos! De onde fomos arremessados e em que abismo fomos sepultados? Passamos da pátria para o desterro, da visão de Deus para a nossa cegueira, da alegria pela imortalidade para o horror da morte! Que mudança funesta! De tão grande bem para tão grande mal! Perda lastimável, dor profunda, terrível fardo de misérias. 

Mas, ai de mim, que sou um dos miseráveis filhos de Eva afastados de Deus! Que procurei empreender? O que consegui efetuar? Para onde procurava ir? Aonde cheguei? A que aspirava? Por que suspiro? Procurava a felicidade e eis me encontro na perturbação! Dirigia-me a Deus e incidi em mim mesmo. Buscava o descanso no segredo da minha mente e encontro, em meu íntimo, apenas tribulação e dor. Queria alegrar-me com toda a alegria da minha alma e vejo-me obrigado a gemer com os gemidos do meu coração. Esperava a felicidade e nada mais achei que a multiplicação dos suspiros! E tu, Senhor, até quando, até quando, ó Senhor, ficarás esquecido de nós? Até quando conservarás o teu rosto afastado de nós? Quando iluminarás os nossos olhos e nos mostrarás o teu rosto? Quando reverterás a nós? 

Olha para nós, ó Senhor; escuta-nos, ilumina os nossos olhos, mostra-te a nós. Volta para junto de nós a fim de termos, novamente, a felicidade, pois, sem ti, só há dores para nós. Tem piedade de nossos sofrimentos e esforços para chegar a ti, pois, sem ti, nada podemos. Convida-nos, ajuda-nos, Senhor; rogo-te que o meu desespero não destrua este meu suspirar por ti, mas respire dilatando meu coração na esperança. Rogo-te, ó Senhor, consoles o meu coração amargurado pela desolação. Suplico-te, ó Senhor, não me deixes insatisfeito após começar a tua procura com tanta fome de ti. Famélico, dirigi-me a ti; não permitas que volte em jejum. Pobre e miserável que sou, fui em busca do rico e do misericordioso: não permitas que retorne sem nada, e decepcionado. E se suspiro antes de comer, faze com que eu tenha a comida após os suspiros. 

Ó Senhor, encurvado como sou, nem posso ver senão a terra; ergue-me, pois, para que possa fixar com os olhos o alto. As minhas iniquidades elevaram-se por cima da minha cabeça, rodeiam-me por toda parte e oprimem-me como um fardo pesado. Livra-me delas, alivia-me desse peso para que não fique encerrado como num poço. Seja-me permitido enxergar a tua luz embora de tão longe e desta profundidade. Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que te procuro; pois, sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira, nem encontrar-te se não te mostrares. Que eu possa procurar-te desejando-te, e desejar-te ao procurar-te, e encontrar-te amando-te e amar-te ao encontrar-te. 

Ó Senhor, reconheço, e rendo-te graças por ter criado em mim esta tua imagem a fim de que, ao recordar-me de ti, eu pense em ti e te ame. Mas, ela está tão apagada em minha mente por causa dos vícios, tão embaciada pela névoa dos pecados, que não consegue alcançar o fim para o qual a fizeste, caso tu não a renoves e a reformes. Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio para compreender. Efetivamente creio, porque, se não cresse, não conseguiria compreender.

(Excertos da obra 'Proslogio', de Santo Anselmo da Cantuária)