sábado, 20 de junho de 2015

DAS CONSOLAÇÕES E SECURAS DA VIDA ESPIRITUAL (I)


Devemos conformar-nos com a vontade de Deus não somente nas coisas exteriores, naturais e humanas, mas também naquilo que a muitos parece que é bom desejar sem medida nos bens espirituais e sobrenaturais, como são as consolações divinas, as mesmas virtudes, o dom de oração, a paz, o sossego e quietação interior de nossa alma, e as mais vantagens espirituais. Porém perguntará alguém: 'Então pode haver nestas coisas vontade própria e amor desordenado de si mesmo, para que seja necessário moderá-lo ainda nestas coisas?' Digo que sim; e aí se verá quão grande é a malícia, do amor próprio, pois em coisas tão boas não se teme introduzir o seu veneno. Boas são as consolações e gostos espirituais, porque com eles facilmente a alma aborrece e despreza todos os prazeres e gostos da terra que são o alimento dos vícios, e se alenta e anima para caminhar com fervor no serviço de Deus, conforme disse o profeta: 'Corria eu com ligeireza pelo caminho de vossos mandamentos, quando vós, Senhor, dilatáveis meu coração' (Sl 118, 32). Com a alegria e consolação espiritual dilata-se e reforça-se o coração e, ao revés, comprime-se e aparta-se com a tristeza. Diz pois o profeta Davi que quando Deus lhe mandava consolações, lhe eram como asas que o faziam correr e voar pelo caminho da virtude e dos mandamentos do Senhor.

Ajudam também muito as consolações espirituais para cada um quebrantar à própria vontade, vencer os apetites, mortificar a carne e levar com maior ânimo a cruz e os trabalhos que se oferecerem. E assim costuma Deus conceder consolações espirituais àquele a quem há de mandar trabalhos e tribulações para que, por meio delas, se prepare e disponha para os levar com paciência e com proveito, como vemos que Jesus Cristo Nosso Redentor quis primeiro consolar aos seus discípulos no monte Tabor com a sua gloriosa transfiguração, para que depois se não perturbassem vendo-o padecer e morrer em uma cruz. E vemos também que, aos principiantes, costuma Deus de ordinário dar estas consolações espirituais, para os fazer deixar eficazmente os gostos da terra pelos do céu; e depois que os têm presos pelo seu amor, e os vê bem fundados na virtude, os costuma exercitar com securas, para que adquiram mais humildade e paciência, e mereçam maior aumento de graça e glória, servindo a Deus mais pura e desinteressadamente sem consolações.

Esta é a causa por que alguns, no princípio, quando entram na Religião, e ainda talvez lá fora nas vésperas de entrar, sentiam mais gostos e consolações espirituais que depois; e a razão é porque os tratava Deus então conforme à sua idade, dando-lhes leite como a meninos para os arrancar e desapegar do mundo, e fazer que o aborrecessem e fugissem das suas vaidades. Porém depois, que já podem comer pão duro e sólido, dá-lhes Deus manjar próprio de pessoas adultas. Para estes e outros fins semelhantes, costuma o Senhor dar as consolações e gostos espirituais; e assim nos aconselham comumente os santos que, no tempo da consolação, nos preparemos para o da tentação, como no tempo da paz se preparam os homens para a guerra, pois costumam as consolações ser véspera de tentações e tribulações espirituais.

De maneira que os gostos espirituais são muito bons e úteis, se sabemos usar bem deles; e assim quando o Senhor os der, devemos recebê-los com ações de graças. Porém, se alguém parasse nestas consolações, e as desejasse só por seu contentamento, pelo gosto e prazer que nelas sente a alma, seria vício e amor próprio desordenado. Assim como nas coisas necessárias para a vida, como é o comer, beber, dormir e outras coisas, se o homem tivesse por fim destas ações só o deleite, seria culpa; assim também na oração, se tivéssemos por fim único estes gostos e consolações espirituais, seria vício de gula espiritual. Não se hão de desejar nem tomar estas coisas só por gosto e contentamento nosso, senão como meio que nos ajuda para os fins da virtude e perfeição que temos dito. Assim como o enfermo que aborrece o mantimento de que tem necessidade, se alegra quando acha algum gosto nele, não pelo sabor, mas porque lhe abre o apetite para poder comer e conservar a vida; assim o servo de Deus não há de querer a consolação espiritual para nela parar e descansar, mas sim para que, com este refresco do céu, se anime e alente a alma a trabalhar no caminho da virtude e a perseverar nele constantemente. Deste modo não se desejam os gostos só por serem gostos, senão pela maior glória de Deus, enquanto redundam em sua maior honra e glória.

Mas digo mais. Ainda que o homem deseje as consolações espirituais deste modo e para os sobreditos fins, tão bons e santos, pode, com tudo isso, haver excesso nos tais desejos, e mistura de amor próprio desordenado como, por exemplo, se as deseja desordenadamente e com ânsia demasiada, de tal modo que, se lhe faltam, não fica tão satisfeito e conforme com a vontade de Deus, mas inquieto, queixoso e com pena. Essa é afeição e cobiça espiritual desordenada; porque o servo de Deus não há de estar tão apegado aos gostos e consolações espirituais, que esse amor lhe perturbe a paz e o sossego da alma, e a conformidade que deve ter com a vontade de Deus, se ele não for servido conceder-lhos. E a razão é porque a vontade de Deus é melhor que tudo e, mais que tudo, importa que nos conformemos e nos contentemos com o que Deus quer. O que digo dos gostos e consolações espirituais, entendo também do dom de oração e da entrada que nela desejamos ter, e da paz, sossego e quietação interior de nossa alma, e de todas as mais coisas espirituais porque, no desejo de todas elas, pode também haver afeição e cobiça desordenada, quando se desejam com tanta ânsia e com tal apetite que, se um não alcança o que deseja, anda queixoso, descontente e menos conforme com a vontade de Deus.

Portanto agora, entenderemos por gostos e consolações espirituais não só a devoção, o gosto e a satisfação sensível, mas também a mesma substância e dom da oração, o entrar e estar nela com aquela quietação e sossego que queremos. E disto precisamente trataremos principalmente agora, mostrando como nos devemos conformar também neste ponto com a vontade de Deus, sem andar com demasiada cobiça, ânsia e sofreguidão em busca destas coisas espirituais; porque tudo o que se refere a gostos, consolações e devoções sensíveis, facilmente o renunciaríamos, se nos dessem o substancial da oração, e se sentíssemos em nós o fruto dela; e todos entendem que não consiste a oração nesse gosto, devoção e ternura; e assim, para prescindirmos disso, pouca virtude é necessária.

Porém isto de ir um à oração, e estar ali como se fosse uma pedra, com tão grande secura que parece não há para ele entrada, mas antes, que Deus se fechou e escondeu para ele, e que lhe sobreveio já aquela maldição com que Deus ameaça o seu povo: 'E de cima vos darei um céu de ferro e uma terra de bronze' (Lev 26, 19; Deut 28, 23), não há dúvida que é coisa dura e que, para isso, se requer mais virtude, e maior fortaleza. A esses parece-lhes que o céu revestiu para eles a dureza do ferro, e que a terra se lhes converteu em bronze, porque não chove uma gota de água celeste que lhes abrande o coração para que produza algum fruto com que se alimentem, mas só encontram uma esterilidade e secura continuada.

E não é só a secura; mas algumas vezes sofrem uma tão grande distração e variedade de importunos pensamentos e, por vezes, tão maus e tão feios, que parece não vão à oração senão para serem tentados e atormentados com todo o gênero de tentações. Dizei então a um destes que medite nessas ocasiões na morte, ou em Cristo crucificado, que, de ordinário, é muito bom remédio; e vereis como vos responde: 'Isso já sei muito bem; se eu pudesse fazer isso, não me queixava, pois nada me faltava'. Mas, às vezes, na oração está um de tal sorte, que nem sequer nisso pode ocupar o pensamento; e ainda que traga coisas à memória, não o movem ao recolhimento, nem sente devoção alguma nem lhe fazem a mínima impressão. Isto é o que chamamos desconsolação, secura e desamparo espiritual, e nisto é necessário que nos conformemos também à vontade de Deus.

Este ponto é de muita importância, por ser uma das queixas mais comuns, e uma das maiores tribulações que sentem os que tratam da oração, porque todos gemem e choram quando se acham deste modo. Como ouvem por uma parte dizer tantos bens e louvores da oração, e que quanto mais um se dá a ela, tanto mais aproveita naquele dia e em toda a vida; que este é um dos principais meios que há, tanto para o próprio adiantamento como para o dos próximos; e por outra parte se veem, ao seu parecer, tão longe de terem oração: dá-lhes isto muita pena, e lhes parece que Deus os tem desamparado e se tem esquecido deles, e lhes vem um grande temor, cuidando que terão perdido a amizade e a graça de Deus, por lhes parecer que não acham nele acolhimento.

A estes vem uma nova tentação; pois vendo que outras pessoas, em poucos dias, crescem e avançam tanto na oração, quase sem trabalho e que eles, trabalhando tanto, não alcançam nada: disto mesmo lhes nascem coisas piores, como são queixarem-se às vezes de Nosso Senhor porque os trata deste modo; assim querem deixar o exercício da oração, parecendo-lhes que não é para eles, pois tão mal lhes faz nela; e tudo isto se lhes agrava e lhes dá maior pena, quando o demônio lhes traz à lembrança que eles são a causa de tudo isto e, que é por sua própria culpa, que os trata Deus assim. Com isto vivem alguns muito descontentes, e saem da oração como de um tormento, desolados, tristes, melancólicos e insofríveis para si e para os outros que tratam com eles. Por esta causa iremos respondendo e satisfazendo a esta tentação e a esta queixa com a graça do Senhor.

(Excertos da obra 'Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs', do Pe. Afonso Rodrigues)


Ps. CXVIII,32.  (Sl 118, 32)
2-     Daboque vobis coelum desuper sicut ferrum, et terram aeneam. Levit. XXVI,19; Deut. XXVIII,23.