sexta-feira, 12 de junho de 2015

DA IMPENITÊNCIA FINAL (II)

A MORTE NA IMPENITÊNCIA

Pode morrer-se em pecado mortal, sem que se tenha apresentado ao espírito o pensamento de tal morte. Há muitos homens que morrem subitamente, sem se arrependerem dos pecados graves que tenham cometido. Costuma dizer-se que depois de terem abusado de muitas graças, foram surpreendidos pela morte. Nunca tiveram em conta os avisos recebidos. Nunca sentiram a contrição nem sequer a atrição dos pecados que, através do sacramento da penitência, os teria justificado. Estas almas perderam-se para sempre. Verificou-se a impenitência final, sem recusa especial e prévia de se converterem no último momento.

Se, pelo contrário existiu tal recusa, trata-se de impenitência final aceita, querida, através da rejeição última da graça oferecida antes da morte pela misericórdia infinita. Trata-se de um pecado contra o Espírito Santo, que assume diferentes formas: o pecado pode ou recuar diante da humilhação da confissão dos pecados e preferir portanto a infelicidade pessoal, ou então chegar a desprezar explicitamente o seu dever de justiça ou de reparação para com Deus, recusando-lhe o amor que a Ele se deve como preceito supremo: 'Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo teu entendimento' (Lc 10, 27). 

Lições tão terríveis como estas mostram-nos a necessidade do arrependimento, diferente do remorso, que subsiste no inferno sem a menor atrição. Os condenados não se arrependem dos pecados, como ofensas feitas a Deus, mas porque foram punidos por causa desses pecados. Gostariam de não sofrer a pena que justamente lhes foi infligida e sentem-se roídos por um verme que nasce da podridão do pecado que não podem ver e que os torna descontentes com tudo e consigo mesmos. Judas sentiu remorso, que o lançou na angústia, mas não passou pelo arrependimento, que dá a paz; caiu no desespero, em vez de se confiar à infinita misericórdia e pedir perdão8.

Constitui, portanto, um grave risco adiar-se a conversão para mais tarde. Monsanbré diz a este respeito9: 'Suprema lição de previdência: 1° Para aproveitar a última hora, é necessário podê-la reconhecer. Ora, quando chega a última hora, tudo concorre, muitas vezes, para a dissimular ao pecador: as suas próprias ilusões, a covardia, a negligência, a falta de sinceridade daqueles que o cercam; 2° Para aproveitar a última hora, no caso de se pressentir, seria preciso converter-se; ora, há grande probabilidade de o pecador não querer. A tirania do hábito marca os últimos desejos com o ferrete da irresolução. As dilações calculadas do pecador alteram a sua fé e tornam-no cego para ver o seu estado. A última hora aproxima-se sem que ele se mova e morre, de fato, impenitente. 3° Para aproveitar a última hora, se alguém quer converter-se, é preciso que a sua conversão seja verdadeira e, por isso, precisa da graça eficaz. Ora, o pecador retardatário nos seus cálculos, não tem em conta a graça, mas somente sua vontade. E se tem em conta a graça, faz tudo o que pode para a afastar no último momento, ao especular negligentemente com a misericórdia de Deus. E, então, alcançará ele o verdadeiro desgosto da ofensa feita a Deus, um verdadeiro e generoso arrependimento? O pecador retardatário já não sabe o que é a penitência e corre grande risco de morrer no seu pecado. O que, portanto, há a fazer é assegurar desde já o benefício de uma verdadeira penitência, não venha ela a faltar na hora em que se decide a nossa sorte para toda a eternidade'10.

AS CONVERSÕES IN EXTREMIS

Os pecadores renitentes que, no último momento, imediatamente antes da separação da alma e do corpo, não dão mostras algumas de contrição, nem mesmo assim podem dizer-se definitivamente perdidos. Só Deus pode saber se não se terão convertido à última hora. O Santo Cura d’Ars, divinamente inspirado, disse a uma viúva vinda pela primeira vez à sua igreja, debulhada em lágrimas: 'Senhora, a sua oração foi atendida. O seu marido salvou-se. Acabava ele de lançar-se ao Ródano, quando, segundos antes de sua morte, a Virgem lhe obteve a graça da conversão. Lembrai-vos que um mês antes, no vosso jardim, ele colheu a rosa mais bela e disse: 'leva-a ao altar da Virgem'. Ela não o esqueceu'.

Outras pessoas se converteram in extremis, as quais não se lembravam de ter feito nada, além da prática de qualquer ato religioso no decurso de sua vida; por exemplo, um marinheiro havia conservado o hábito de se descobrir, ao passar em frente de uma igreja; não sabia o Padre-Nosso nem a Ave-Maria, mas conservava ainda este laço que o impedia de se afastar definitivamente de Deus. 

Lê-se na vida do santo bispo de Tulle, Bertau, amigo de Luís Veuillot, que uma pobre rapariga da cidade, antiga participante do coro na catedral, caiu na miséria e depois na imoralidade, como pecadora pública. Foi assassinada, uma noite, numa das ruas de Tulle. A polícia encontrou-a na agonia, à porta do hospital. Morreu com estas palavras na boca: 'Jesus, Jesus'! perguntaram ao bispo: 'Deverá fazer o funeral religioso?' Resposta dele: 'Sim, porque morreu pronunciando o nome de Jesus. Mas enterrai-a de manhã, muito cedo e sem incenso'. No imundo quarto da infeliz, encontraram o retrato do santo bispo de Tulle. Tinha escrito no verso: 'O melhor dos pais'. Embora tivesse caído, reconhecera a santidade do seu bispo e conservava no coração a lembrança dos benefícios do Senhor.

Um escritor licencioso, Armando Silvestre, prometera a sua mãe, quando ela morreu, rezar todos os dias uma Ave-Maria. Naquele lamaçal, que era a vida do infeliz escritor, desabrochava todos os dias a flor da Ave-Maria. Adoeceu gravemente com uma pneumonia. Levaram-no para um hospital de Paris, servido por religiosos. Perguntaram-lhe eles: 'Quereis um sacerdote?' – 'Sim' – respondeu. E recebeu a absolvição, provavelmente com uma atrição suficiente, devido a uma graça especial que devia ter obtido da Virgem. É provável que tenha entrado logo a seguir num longo e penosíssimo purgatório.

Outro escritor francês, Adolphe Retté, pouco depois da conversão, sincera e profunda, ficou impressionado por ver em um escapulário esta legenda: 'Rezai por aqueles que vão morrer durante a Missa que ides assistir'. Fê-lo de bom grado. Alguns dias depois, adoeceu gravemente. Ficou imobilizado em um leito do hospital de Beaune, muitos anos, até a morte. Todas as manhãs oferecia seus sofrimentos pelos que iam morrer nesse dia; obteve muitas conversões in extremis. Ao chegar ao céu, havemos de conhecer o número dessas conversões. E cantaremos a misericórdia de Deus eternamente.

Conta-se na vida de Santa Catarina de Sena, a conversão in extremis de dois grandes criminosos. A santa tinha ido visitar uma amiga. Ouvira-se na rua onde esta morava um grande ruído. A amiga de Catarina olhou pela janela e viu que se tratava de dois condenados à morte, conduzidos em uma carroça ao derradeiro suplício. Como os atormentavam com tenazes aquecidas ao rubro, blasfemavam e soltavam horrorosos gritos de raiva. Catarina põe-se, ali mesmo, imediatamente de joelhos e reza com os braços em cruz, pela conversão dos dois criminosos. Eis senão quando, na rua, cessaram as blasfêmias e os criminosos manifestaram o desejo de se confessarem. As pessoas presentes ficaram espantadas com tão súbita mudança; ignoravam que uma santa tinha rezado para obter a dupla conversão.

Há cerca de sessenta anos, o capelão da prisão de Nancy, que até ali tinha conseguido converter todos os criminosos que acompanhava à guilhotina, encontrava-se em uma viatura com um assassino apostado em não se confessar antes de morrer. A viatura passou em frente de um santuário de Nossa Senhora do Socorro. Então, o velho capelão disse: 'Lembrai-Vos, ó piedosa e dulcíssima Virgem Maria que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tivessem recorrido à Vossa proteção fosse por Vós desamparado. Convertei este criminoso, senão direi que se ouviu dizer que não nos atendestes'. E o criminoso converteu-se imediatamente. A conversão é sempre possível até a morte, mas torna-se cada vez mais difícil à medida que aumenta a obstinação. Sendo assim, o melhor é não adiar nunca a conversão e pedir todos os dias, por meio da Ave-Maria, a graça de uma boa morte.

Notas:

8 – Cfr. Santo Tomás, II, II, q. 13, a. 4; III, q. 86, a. 1; C. Gentiles, l. IV, c. 89.
9 – Retiros pascais em Notre-Dame, instrução 3°.
10 – Não se esqueça que a atrição, que dispõe a uma boa recepção do sacramento da penitência e leva à justificação, deve ser sobrenatural. Segundo o Concílio de Trento, ela pressupõe a graça da fé e da esperança e deve detestar o pecado como ofensa feita a Deus (Denz., 798). Ora isto supõe, provavelmente, como o batismo dos adultos, um amor inicial a Deus, fonte de toda justiça (Denz., 798). Com efeito, não podemos detestar a mentira sem amar a verdade, nem detestar a injustiça sem começar a amar a justiça e aquele que é fonte de toda a justiça.

(Excertos da obra 'L'éternelle vie et la profondeur de l’ame', do Pe. Garrigou-Lagrange, tradução de R. Horta)