segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XI)

Era véspera de Natal. Eu havia prometido à minha esposa que, naquele ano, pelo menos naquele ano, eu estaria com ela na Missa de Natal. Nem me lembro da última vez que isso tinha acontecido. Na verdade, eu não ligava muito para as Festas e estava sempre disposto a cobrir os outros colegas nesta época para as entregas de fim de ano, para viagens de última hora, para atender os pedidos 'em cima da hora', tudo para ganhar um adicional sempre mais fácil e generoso. 

Mas, nesse ano não, eu não ficaria de plantão no Natal, eu estaria fora das viagens não programadas, dos bônus polpudos. Tudo por causa da Missa de Natal em família. Era um bom propósito, não? Mas, atender aquela entrega num sítio tão próximo, tipo entrega rápida bate-e-volta, pareceu-me viável e confortável. Dava pra ganhar um troco e chegar em casa com tempo de sobra. Por que não?

Era uma entrega tão simples. Uma caixa. Um presente de Natal para alguém do tal sítio. Tinham me passado até um esquema do trajeto. Simples, fácil, maneiro. Mas não tinha encontrado sítio algum e estava tentando vir embora. E, agora, lá estava eu perdido no meio do mundo, sem eira nem beira, com o carro seminovo atolado no barro até o meio das rodas. Que ideia ir em um sítio por estradas de terra nesta época de chuvas colossais! Chuva, chuva, chuva... Um mar de barro, chuva sob chuva, pouco abaixo da estrada um riacho tinha virado rio e parecia que ia arrebentar por sobre as margens, que vacilo, meu Deus! E a missa?

O celular não pegava. O tempo não se consumia. O mesmo ar parado, gélido, as pancadas de chuva seguidas pela chuvinha miúda, o barulho da enchente do rio, o silêncio da passarada escondida. Não achava nenhuma pedra grande nas proximidades para servir de apoio às rodas, nenhum galho, nada. 'Como é que pode uma coisa dessas!' No riachão, devia ter muita pedra, mas... Impotente, ligava o motor apenas para fazer as rodas enlameadas deslizarem ainda mais em frenesi, fazendo meandros no barro mole e encharcado da estrada vazia.

Foi então que eu o vi. O menino franzino, mal vestido, caminhando em minha direção, com um boné meio de lado, com botas de borracha salpicando barro a cada passo. Encharcado até os ossos. Sorridente, perguntou de longe:

- Tem corrente não?

Não, eu não tinha corrente. Não tinha nada. Não tinha ideia de nada.

- Não. Você mora aqui?

- Lá - apontando para algum lugar em direção a um morrote distante - escutei o barulho do carro...

- Tem alguém lá que possa me ajudar?

- Num tem não. Meu pai e meu irmão mais velho saíram e não tem mais ninguém em casa. E ninguém mais mora por estas bandas.

Devo ter pensado 'Como alguém pode morar aqui?' num lugar tão ermo e tão distante de tudo. Pensei em chamá-lo para entrar no carro, mas ia encharcar o banco. E uma nova pancada de chuva grossa desabou sobre aquele mundo de dois personagens. Procurei dentro do carro, mais uma vez, algum pedaço de pano ou de jornal para limpar o rosto. 

- Qual é o lugar mais próximo que eu posso pedir ajuda?

Na chuva pesada, ele pareceu não ouvir minha pergunta. Mas eu ouvi claramente o que ele disse:

- Você tem correntes...

- Como? Não, eu disse que não tenho correntes, nem pensei nisso.

Ele apontou para o carro. Eu não estava entendendo nada. Mas ele continuou:

- Você tem correntes...na caixa.

A caixa! Era para ele, para o pai dele? Ela era pesada mesmo. Seriam correntes para serem usadas num lugar daquele, numa chuva daquelas. Fazia sentido. Seria um belo presente de Natal... para eles e para mim também! Peguei a caixa, rasguei o papel e a abri: milagre! Eram duas correntes, mais valiosas que ouro naquela ocasião, exatamente para serem colocadas em pneus em épocas de chuvas. 

- Isso vai resolver, o senhor vai ...

Mais rápido do que qualquer coisa, o menino pegou as correntes da caixa e, com uma habilidade incrível, as colocou sobre cada uma das rodas traseiras. E ordenou, em seguida:

- Vamo lá, liga o carro, que agora ele vai...

Num movimento automático, sem questionamento algum, coloquei um tapete traseiro sobre o banco do motorista, sentei de imediato e girei a chave. O carro fez menção de girar como das outras vezes mas, de repente, quase que por outro milagre, desandou a avançar em linha reta para a frente como amparado por mãos invisíveis sobre aquela montanha de barro mole. 

Quando parei, o chão era duro e pedregoso. Aquele menino tinha caído do céu. A chuva agora parecia um dilúvio e uma espessa neblina branca cobria toda a paisagem e era impossível divisar coisa alguma. Tomei a iniciativa de tirar, então, as correntes dos pneus traseiros mas, para a minha estupefação geral, não havia mais corrente alguma. Elas deveriam ter caído em algum lugar lá atrás, mas, graças a Deus, me permitiram sair da barreira.

Voltei correndo até o lugar em que havia deixado o menino, procurando as correntes perdidas. E, quanto mais corria, mais percebia que a distância percorrida estava fora de qualquer lógica. 'Eu não havia andado de carro tal distância!' E mais, o caminho lamacento não mostrava nenhum sinal das rodas do meu carro... Avancei mais cem, duzentos, trezentos metros... nada das correntes, nada da marca dos pneus, nada do menino. Somente a chuva torrencial inundando o mundo.

Voltei para o carro, e fiquei tentando apreender todos aqueles estranhos acontecimentos. E, mais do que nunca, precisava me apressar para assistir a Missa de Natal. Suspirei fundo e agradeci ao menino em pensamento. Volvi os olhos para a neblina branca que me blindava daquele passado recente e gritei, o mais alto que pude:

- Feliz Natal! Obrigado, menino. Feliz Natal!

Entrei no carro e dei a partida. E recomecei uma longa viagem para um encontro comigo mesmo. A chuva cessara de vez e a paisagem exalava a quietude das horas. E, à medida que o carro avançava pela estrada agora tão límpida e segura à minha frente, eu tinha a certeza absoluta de ter descoberto algo maior, bem maior, que o meu caminho de volta...

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)