quinta-feira, 12 de maio de 2022

SOBRE A ESCRAVIDÃO DO PECADO

Que situação mais triste, mais infeliz, mais desgraçada e deplorável que a do filho pródigo! Reduzido à pobreza, tendo fome, abandonado de todos os seus inimigos, escravo de um patrão sem compaixão, o qual lhe envia a guardar os porcos; deseja poder nutrir-se com os vis alimentos daqueles animais imundos! Eis aqui uma débil imagem do estado de servidão a que pode levar o pecado mortal.

Um pássaro atado com um fio trata de voar; porém, preso, não pode escapar; assim também o pecador, cativo de suas más inclinações, dá alguns passos, porém, sem adquirir a liberdade, detém-no os laços de seus desgraçados hábitos. O homem terrestre e carnal crer ser livre, porém, na realidade, é escravo. Quer ser livre, e o querer tal liberdade é o que lhe lança na escravidão. Assim é que a liberdade afoga a liberdade de tal modo que o excesso de liberdade é uma extraordinária escravidão; porque, então, não há mais freio para as concupiscências, e chegamos a ser escravos de tantos tiranos cruéis quantas são as paixões diferentes que nos subjugam.

O furor do Eterno acendeu-se contra o povo, diz o Salmista; e entregou o povo ao poder das nações, e seus inimigos chegaram a ser seus donos. Seus inimigos oprimiram-nos e fizeram-no sofrer a humilhação de seu poder (Sl 115, 39-41). Estavam sentados nas trevas e nas sombras da morte, encadeados pelo ferro e pela fome: sedentes in tenebris et umbra mortis, vinctos in mendicitate et ferro (Sl 106, 10). Porém, aquela não era mais que uma sombra da escravidão dos pecadores!

Ouvi, pecadores, os gemidos dos hebreus escravos e cativos; entregai-vos aos mesmos lamentos, posto que o vosso estado é o mesmo, e ainda muito pior. Próximo aos rios da Babilônia, exclamam por meio do Real Profeta, nós nos sentávamos, e derramávamos lágrimas recordando-nos de Sião. Nos salgueiros de suas margens, penduramos nossas harpas. E ali, aqueles que nos levaram para o cativeiro, pediram o canto de nossos hinos. Aqueles que nos arrastaram cativos, disseram-nos: ‘Cantai os cânticos de Sião’. Como havemos de cantar os cânticos do Senhor em uma terra estrangeira? (Sl 136, 1).

Escravos do demônio e das paixões, dai um eterno adeus à felicidade e à vossa antiga alegria; porque perdestes tudo, perdendo a liberdade dos filhos de Deus pelo pecado mortal! Encontramo-nos aqui na terra em uma escravidão semelhante à de uma criança ainda no ventre de sua mãe, diz São João Crisóstomo: sicut in úteropuellus, sic in mundo vivimus interclusi angustiis. Estamos aqui nesta terra de desterro e de maldição em uma situação análoga àquela em que se encontrava Jonas no ventre da baleia.

Ainda que fosse rei, o homem insensato e pecador seria sempre escravo de suas paixões e servente de seus desejos, diz São Jerônimo; não pode, nem de noite nem de dia, sacudir o domínio deles, porque estão em seu coração; e experimenta interiormente uma servidão intolerável: Stultus esto imperet, servit propriis passionibus, servit suis cupiditatibus, quorum dominatio, nec nocte, nec die, fugari potest; quia intra se dominas habet, intra servitium potitur intolerabile. Toda paixão escraviza, diz Santo Ambrósio: servilis est omnis passio.

Ainda que seja um escravo, o homem virtuoso é livre, diz Santo Agostinho, porém, ainda que que o culpável seja rei, é escravo, e escravo não de um só senhor, senão que – o que é pior – é escravo de tantos senhores quantos vícios tenha: Bonus, etiamsi serviat, liver est: malus autem, si regnat, servus est, non unius hominis, sed quodgravius est, tot dominorum quot vitiorum. O rei Lisímaco entregou seu exército ao inimigo somente para apagar sua sede física. Feito cativo, depois de ter recebido e bebido água, exclamou: Desgraçado de mim, por um momento de prazer, que bens e que reino eu perdi! Era rei, e me acho convertido em escravo: Pro deum fidem, quam exiguae voluptatis gratia, quantum bonum, quantum regnum perditi; meque ex rege servum effeci!

'Ai de mim!'… Não tem mil vezes mais motivos de falar da mesma maneira o desgraçado pecador? Ó Deus, por uma gota de água, por um vil e passageiro deleite, quantos bens perdi! Perdi minha alma, perdi a graça, perdi as delícias do Céu, e encontro-me convertido em escravo do demônio, da morte e do Inferno por toda uma eternidade!

Servirá a teu inimigo com fome, com sede, nu e em maior penúria, diz o Senhor, e porá em teu pescoço um jogo de ferro até que te esmague: Servies inimico tuo in fame, et siti, et nuditate, et omni penúria, et ponet jugum ferreum super cervicem tuam, donec te conterat (Dt 28, 48). E ele devorará o fruto de teus ganhos e todos os frutos de tua terra até que pereças; e não te deixará trigo, nem vinho, nem azeite, nem rebanho de vacas, nem rebanho de ovelhas até que, enfim, te destruas inteiramente (Dt 28, 51). E te pisoteará, e os teus muros fortes e elevados serão derrubados, e comerás o fruto de tuas entranhas e as carnes de teus filhos e de tuas filhas que o Senhor te der, na angústia e desolação com que te oprimirá teu inimigo (Sl 28, 51-53). Porém, todas estas desgraças não são nada quando comparadas com a desgraça de um pecador escravo do demônio!

Temos pecado em Vossa presença, Senhor, exclama a rainha Ester, por cujo motivo vemo-nos entregues nas mãos de nossos inimigos: Peccavimus in conspectu tuo, et idcirco tradidisti nos in manus inimicorum nostrorum (Est 14, 6). Ao ímpio envolvem suas próprias iniquidades, dizem os Provérbios, e está acorrentado nos laços de seu pecado: Iniquitaes suae capiunt impium, et funibus peccatorum suorum constringitur (Pr 5, 22). Além das algemas de seu crime, o pecador carrega as de suas penas e a de sua penitência; porque estas também o atam, sobrecarregando-o e torturando-o. Penas temporais e eternas!

É necessário que sejamos escravos e que soframos todas as consequências e desgraças quando a carne comanda o espírito, ela que deveria ser escrava deste. Quando esta carne rebelde é bajulada e honrada, ela quer mandar, em vez de estar subordinada à razão. Que coisas mais desiguais em valor que a razão e a concupiscência, a alma e o corpo! A concupiscência e a carne são terrestres, semelhantes ao selvagem; porém, a razão e a alma são espirituais, grandes, nobres e semelhantes aos anjos pela inteligência e pela espiritualidade. A concupiscência e a carne são a mesma pobreza, a baixeza; porém, a razão e a alma tem um preço imenso! São, pois, absurdos abomináveis: que a alma sirva ao corpo, pois a ela deve estar este submetido; e que a razão seja escrava da concupiscência.

Edificastes ao meu redor, diz Jeremias, rodeaste-me de fel e trabalho: Aedificavit in gyro meo, et circundedit me felle et labore (Lm 3, 5). Edificastes ao meu redor para que eu não saia, e aumentastes o peso de minhas cadeias: Circunaedificavit adversum me ut non ingrediar; aggravavit compendem meum (Lm 3, 7). Semeastes meu caminho de pedras cortantes, e destruístes minhas veredas: Conclusit vias meas lapidibus quadris, semitas meas subvertit (Lm 3, 9). E a paz foi extirpada de meu coração, esqueci a alegria, e disse: 'Minha força está perdida' (Lm 3, 17-18). Ó profeta Jeremias, ainda não é bastante hábil o teu pincel para pintar-nos as desgraças reais da escravidão do pecador!

(Excertos da obra 'Tesouros de Cornelius a Lapide')