segunda-feira, 26 de maio de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (XV)

P. 33 - Quais são esses argumentos sofísticos com os quais eles são tão enganados?

Nós os vimos acima e os refutamos completamente, um por um. Mas o grande erro deles surge de suas idéias errôneas de ignorância invencível e das condições requeridas para ser um membro da Igreja de Cristo. Pois como eles devem ou negar sua própria fé ou permitir essa proposição geral, que 'sem fé é impossível agradar a Deus', enquanto eles admitem a verdade disso, eles pretendem que, como a ignorância invencível desculpará um homem diante de Deus em todos os outros casos, então ela deve desculpá-lo nisso também. E que, portanto, embora um homem não tenha a verdadeira fé, 'a ignorância invencível o salvará', não advertindo para os dois sentidos que essas palavras contêm, um dos quais é certamente verdadeiro, e o outro não menos certamente falso. A ignorância invencível de fato o salvará da culpa de ter uma fé falsa e de não ter a fé verdadeira: isso é certamente verdade. Mas dizer que a ignorância invencível o salvará, isto é, o levará à salvação, é certamente falso, como tudo o que vimos acima prova plenamente.

Novamente, enquanto eles admitem essa outra proposição geral, que 'fora da verdadeira Igreja de Cristo não há salvação', que eles devem reconhecer ou desistir de sua própria religião, eles supõem que um homem pode ser um membro da verdadeira Igreja aos olhos de Deus, embora não esteja unido a ela em comunhão, como todas as crianças batizadas são, embora nascidas em heresia, pelo menos até que cheguem à idade de julgar por si mesmas. O erro deles está em não refletir que todos os adultos em uma religião falsa podem ser membros da Igreja à vista de Deus em nenhum outro sentido além daqueles de quem nosso Salvador diz: 'Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco'. Mas como Ele declarou expressamente que era necessário trazer até mesmo esses à comunhão da sua Igreja, isso evidentemente mostra que eles e todos os outros não são membros da Igreja de tal forma que possam ser salvos em seu estado atual sem serem unidos a esta comunhão.

P. 34 - Mas não é louvável e digno de louvor mostrar toda a indulgência e condescendência para com aqueles que estão fora da Igreja e se comportar em relação a eles com toda a clemência e brandura?

Sem dúvida: não é apenas louvável, mas um dever estrito, até onde a verdade pode chegar. Mas trair a verdade com essa visão constitui um crime grave e altamente prejudicial para ambas as partes. A experiência, de fato, mostra que a maneira solta de pensar e falar, que alguns membros da verdadeira Igreja têm adotado ultimamente, produz as piores consequências, tanto para eles mesmos quanto para aqueles a quem desejam favorecer.

(i) Aqueles que estão separados da Igreja de Cristo bem sabem que ela professa constantemente, como um artigo de seu credo, que sem a verdadeira fé e fora da sua comunhão, não há salvação. Quando, portanto, eles veem os membros dessa Igreja falando duvidosamente sobre esse ponto, parecendo questionar a verdade da doutrina e até mesmo alegando pretextos e desculpas para explicá-la, o que eles podem pensar? Que efeito isso deve ter em suas mentes? Será que isso não tende a extinguir qualquer desejo de investigar a verdade que Deus possa ter lhes dado e a fechar seus corações contra qualquer pensamento positivo? O amor-próprio nunca deixa de se apoderar avidamente de tudo o que favorece seus desejos; e se uma vez encontrarem essa verdade questionada, mesmo por aqueles que professam acreditar nela, eles a considerarão como uma mera disputa retórica e não pensarão mais no assunto.

(ii) Essa maneira de pensar e falar tende naturalmente a extinguir todo zelo pela salvação das almas nos corações daqueles que a adotam; pois enquanto eles se persuadem de que há uma possibilidade de salvação para aqueles que morrem em uma falsa fé e fora da Igreja de Cristo, o amor próprio facilmente os inclinará a não se preocuparem com sua conversão. Às vezes, chega-se ao ponto de fazer com que alguns pensem que é mais aconselhável não se esforçar para desiludi-los, para que isso não mude sua atual ignorância desculpável, como eles a chamam, em uma obstinação culpável; não refletindo que, por seus esforços piedosos e zelosos, eles podem ser levados ao conhecimento da verdade e salvar suas almas, enquanto que, por sua negligência sem caridade, podem ser privados de tão grande felicidade. Ai do mundo, de fato, se os primeiros pregadores do cristianismo tivessem sido reféns de sentimentos tão pouco cristãos!

(iii) Não é menos prejudicial para os próprios membros da Igreja adotar tais maneiras de pensar; pois isso não pode deixar de esfriar seu zelo e estima pela religião, torná-los mais descuidados em preservar sua fé, prontos para, por motivos mundanos, expô-la ao perigo e, em tempos de tentação, abandoná-la inteiramente. De fato, se um homem estiver completamente persuadido da verdade de sua santa religião e da necessidade de ser membro da Igreja de Cristo, como é possível que ele se exponha a qualquer ocasião de perder um tesouro tão grande, ou que, por qualquer medo ou favor mundano, o abandone? Uma vez que a experiência mostra que muitos, por alguma vantagem mundana insignificante, se expõem a tal perigo, indo a lugares onde não podem praticar sua religião, mas encontram todos os incentivos para abandoná-la, ou, ao se envolverem em empregos inconsistentes com seu dever, expõem seus filhos às mesmas ocasiões perigosas, isso só pode surgir da falta de uma ideia justa da importância de sua religião; e, após um exame rigoroso, sempre se descobre que algum grau ou outro dos sentimentos de tolerância ou de indiferentismo expostos acima é a causa radical.

(iv) Além disso, se uma pessoa começa a hesitar sobre a importância de sua religião, que estima ou consideração ela pode ter pelas leis, regras ou práticas dela? O amor-próprio, sempre atento à sua própria satisfação, logo lhe dirá que, se não for absolutamente necessário ser dessa religião, muito menos necessário será submeter-se a todos os seus regulamentos; portanto, liberdades são tomadas na prática, os mandamentos da Igreja são desprezados, os exercícios de devoção são negligenciados e uma sombra de religião é introduzida sob a aparência de sentimentos liberais, numa dissipação completa de toda virtude e de uma piedade sólida.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

domingo, 25 de maio de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor, que todas as nações vos glorifiquem!' (Sl 66)

Primeira Leitura (At 15,1-2.22-29) - Segunda Leitura (Ap 21,10-14.22-23) -  Evangelho (Jo 14,23-29)
 
  25/05/2025 - SEXTO DOMINGO DA PÁSCOA

'A MINHA PAZ VOS DOU'


Neste Sexto Domingo da Páscoa, somos chamados a viver plenamente a presença de Jesus Ressuscitado em nossas vidas, como testemunhas da fé e da fidelidade às suas Santas Palavras: 'Se alguém me ama, guardará a minha palavra' (Jo 14,23). Eis aí o legado de Jesus aos seus discípulos: a graça e a salvação são frutos do amor, que é manifestado em plenitude, no despojamento do eu e na estrita submissão à vontade do Pai: 'Desci do Céu não para fazer a minha vontade, mas sim a d’Aquele que me enviou' (Jo 6,38) e 'Amai ao Senhor vosso Deus com todo vosso coração, com toda vossa alma e com todo vosso espírito. Este é o maior e o primeiro dos mandamentos' (Mt 22,37-38).

A graça nasce, manifesta-se e se alimenta do nosso amor a Deus, pois 'quem não me ama, não guarda a minha palavra' (Jo 14,24). Mas este amor terá de ser libertado do mero sentimento arraigado às mazelas humanas para ser transformado em um amor espiritual sem medidas, desapegado dos valores mundanos. Este amor não provém dos sentimentos efêmeros, nem dos sentidos, nem das paixões desregradas, nem dos abismos volúveis das sensibilidades e das vontades humanas.

Este amor não se alimenta da paz do mundo, mas da paz que emana do próprio Coração de Deus: 'Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo' (Jo 14,27). Na paz de Deus, na confiança absoluta às divinas promessas, não há porque se perturbar ou se intimidar a fragilidade do pobre coração humano. A presença permanente do Cristo Ressuscitado em nossas vidas vem por meio da manifestação do Espírito Santo, o Defensor, conforme as palavras de Jesus: 'o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito' (Jo 14,26).

Sob a ação do Espírito Santo, o amor humano pode trilhar livremente o caminho da santificação, até o impossível, até os limites de um despojamento absoluto do próprio ser para a plena manifestação em si da glória de Deus, quando enfim, 'o meu Pai o amará, e nós (o Pai, o Filho e o Espírito Santo) viremos e faremos nele a nossa morada' (Jo 14,23).

sábado, 24 de maio de 2025

TESOURO DE EXEMPLOS II (13/15)

13. PROTESTO CONTRA OS FALSOS PROFETAS

Um nobre marquês de França foi certa vez convidado pelo Ministro do Exterior da Grécia a apertar a mão de Ernesto Renan, aquele escritor tristemente famoso que tanto injuriou a Jesus Cristo em seu livro Vida de Jesus.
O marquês, vivamente contrariado, escondeu sua mão, exclamando com voz solene: 'Jamais apertarei essa mão que esbofeteou o meu Deus!'
É triste que, também entre nós, haja quem leia e admire certos escritores ímpios, imorais e blasfemadores.

14. DÚVIDAS CONTRA A FÉ

Andava um fervoroso apóstolo do bem a pregar pelas cidades e vilas a doutrina da salvação quando, certo dia, aproximando-se dele um jovem, disse:
➖ Padre, tenho muitas dúvidas contra a fé.

O padre fitou-o demoradamente e, quando o jovem esperava uma erudita conferência sobre religião, aquele perguntou-lhe simplesmente:
➖ E quanto tempo faz que não te confessas?
➖ Não é isso, padre; não venho confessar-me, mas queria que o senhor resolvesse as minhas dúvidas.
➖ E por que não havíamos de inverter os termos: primeiro confessar-te e depois instruir-te?

E com aquela doçura que conquista os corações, converteu-o e o jovem caiu de joelhos aos seus pés, fez uma confissão sincera e demorada de suas culpas e quando terminou pós-se em pé. O padre então lhe disse:
➖ E, agora, meu filho, vamos ver aquelas dúvidas que tinhas contra a fé?
➖ Padre, agora já não tenho mais dúvidas!
Também vós andais a dizer que tendes dúvidas contra á fé. Serão mesmo dúvidas? Não serão culpas? Quanto tempo faz que não vos confessais?

15. ESTAIS SEGUROS DA VOSSA SALVAÇÃO?

Frei Gil, o bendito leigo franciscano, temendo pela sua salvação, abandonara o mundo. Urna gruta às margens de um rio ofereceu-lhe abrigo e ali vivia todo consagrado ao serviço de Deus. A água cristalina matava-lhe a sede e as árvores ofereciam-lhe seus frutos. O sol surpreendia-o em oração e as estrelas da noite eram testemunhas de suas assombrosas penitências.

Um dia, três cavaleiros, que andavam à caça, chegaram à gruta de Frei Gil. Este recebeu-os amavelmente, entreteve-se com eles sobre coisas espirituais e notou que, embora bons cristãos, gostavam mais do mundo do que de Deus.

Ao despedirem-se, um deles disse:
➖ Santo bendito, desde hoje recomenda-nos a Deus.
➖ Em verdade, senhores, vós é que haveis de pedir a Deus por mim, porque tendes mais fé e mais esperança do que eu.
➖ Como assim? Nós?
➖ Sim, disse Frei Gil, porque estou aqui retirado de todo trato com os homens, vestido de burel, dormindo no chão e sempre ando com medo de condenar-me; e vós, cercados de prazeres e comodidades, alimentando vícios e paixões, estais tão seguros de vossa salvação! Tendes, na verdade, mais fé e mais esperança do que eu.

O santo tinha razão. É preciso assegurar a nossa salvação por meio da penitência, pois a eterna Verdade diz: 'Se não fizerdes penitência, perecereis'.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos' - Volume II, do Pe. Francisco Alves, 1960; com adaptações)

VER PÁGINA

sexta-feira, 23 de maio de 2025

SOBRE AS MÁS CONFISSÕES

Uma só coisa pode viciar a nossa confissão e torná-la 'má' ou sacrílega: omitir consciente e deliberadamente a manifestação de um pecado que temos a certeza de ser mortal e que deveríamos confessar. Proceder assim é não querer cumprir uma das condições que Deus nos pede para nos conceder o seu perdão. Se não nos 'abrimos' a Deus, Deus não abrirá o seu tribunal ao perdão. O trágico de uma má confissão é que produz uma reação em cadeia de pecados. 

A não ser que – e até que - retifiquemos a confissão inválida, cada confissão e cada comunhão posteriores serão um novo sacrilégio e um novo pecado se acrescentará ao anterior. Com o passar do tempo, a consciência poderá insensibilizar-se, mas nunca poderá ter verdadeira paz. Felizmente, uma má confissão pode ser corrigida com facilidade, desde que o penitente decida emendar-se. 

Basta que diga ao sacerdote: 'Certa vez fiz uma má confissão e agora quero corrigi-la'. O confessor tomará esta declaração como ponto de partida e, interrogando com compreensão, ajudará o pecador a descarregar-se do seu pecado. É necessário sublinhar a frase 'interrogando com compreensão'. A nossa relutância em confessar uma ação vergonhosa será muito menor se tivermos presente que aquele a quem nos dirigimos está cheio de compreensão e afeto. 

O sacerdote sentado do outro lado da grade do confessionário não está cheio de si nem disposto a franzir o sobrolho a cada falta que lhe comuniquemos. Ele também é humano. Ele também se confessa. Em vez de nos desprezar pelo que temos a dizer-lhe, admirará a humildade com que estaremos vencendo a nossa vergonha. Quanto maior for o nosso pecado, mais alegria daremos ao sacerdote com o nosso arrependimento. Se o sacerdote chegasse a saber quem é o penitente, seu apreço por ele não diminuiria; ao contrário, aumentaria pela sinceridade e confiança depositada no confessor.

(Excertos da obra 'A Fé Explicada', de Leo Trese)

quinta-feira, 22 de maio de 2025

22 DE MAIO - SANTA RITA DE CÁSSIA

  


A santa, que padeceu uma vida doméstica de sofrimentos e provações, tornou-se a advogada dos desesperados e a padroeira das causas impossíveis. Filha única de pais já envelhecidos - Antonio Mancini e Amata Ferri - Margherita (que ficou Rita) nasceu no vilarejo de Roccaporena, na região de Cascia, na Úmbria (centro da Itália) em 1381. Inclinada à vida religiosa, cedeu às tratativas paternas e aos rigores da época, desposando, logo após a adolescência um homem chamado Paulo Ferdinando, com o qual teve dois filhos.

Sua vida matrimonial, entretanto, foi um período de enormes provações e humilhações em relação ao marido, sempre violento e agressivo. Depois de muitas orações pelo marido, este se converteu e passaram a formar uma igreja doméstica até que uma tragédia a desfez por completo: Paulo foi assassinado numa ato de vingança devido às suas desavenças passadas. Outra tragédia se anunciava: os dois filhos estavam decididos a vingar a morte do pai. Rita preferiu perdê-los do que eles ao Céu e ofereceu as suas vidas a Deus antes de cometerem tal crime. Com efeito, cerca de um ano após a morte do pai, ambos faleceram, arrependidos do sentimento de vingança.

Rita ficou, então, sozinha no mundo e buscou, sem sucesso, a vida religiosa, por já ter vivido uma união matrimonial por 18 anos. A opção por converter-se em uma monja agostiniana foi-lhe repetidamente negada. Entregando a sua vocação nas mãos de Deus e sobrecarregando-se em orações, alcançou a causa impossível por um milagre extraordinário. Certa feita, foi conduzida por três pessoas à capela interna do mosteiro, totalmente fechado e a altas horas da noite: São João Batista (também concebido na velhice dos pais), Santo Agostinho (fundador da ordem agostiniana) e São Nicolau de Tolentino (religioso agostiniano). Diante do relato e dos fatos sobrenaturais, Rita foi aceita na ordem, dedicando o resto da sua vida aos votos de pobreza, obediência e castidade. 

A sua extrema capacidade de servir, obedecer e aceitar mesmo o que aparentemente poderia ser improvável pode ser compreendido no milagre que transformou um ramo seco, regado periodicamente e com grande diligência pela santa, numa videira que produziu muitos e muitos frutos. Ou, quase no final de sua vida, com a roseira que, sob os seus cuidados, floriu viçosa em pleno inverno rigoroso. Por 15 anos, estigmatizada, padeceu os sofrimentos e as dores de uma ferida repugnante na testa, que expelia pus e que exalava mau odor, o que a a levou a uma vida de isolamento e de absoluto confinamento numa cela do convento.

Aos 76 anos, Santa Rita de Cascia (adaptado como Cássia) faleceu no convento, em 22 de maio de 1457, sem deixar quaisquer registros escritos, mas os exemplos heroicos de uma vida de santidade. Morta, a ferida tornou-se limpa e passou a exalar um odor perfumado. Foi beatificada em 1627, ocasião em que o seu corpo mostrou-se no mesmo estado quando da sua morte, mais de cento e cinquenta anos antes. Seu corpo atualmente repousa no Santuário de Cascia, desde 18 de maio de 1947, numa urna de prata e cristal.  Exames médicos recentes efetuados no corpo confirmaram os traços de uma ferida óssea (osteomielite) na testa. A santa das causas impossíveis foi canonizada em 24 de maio de 1900, sob o pontificado do Papa Leão XIII.

(urna de cristal com o corpo de Santa Rita de Cássia)

Santa Rita de Cássia, rogai por nós!

OS PAPAS DA IGREJA (VIII)

 




* 50. Anastácio II (o segundo papa omitido da santidade católica nos primeiros 500 anos da história da Igreja); a partir de 55. Bonifácio II, a santidade católica não mais se tornou regra recorrente para os papas da Igreja

quarta-feira, 21 de maio de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXIII)


Exame sobre a Humildade para com Deus - Parte I

102. O primeiro ato de humildade, diz São Tomás [2a 2æ, qu. clxi, art. 2 ad 3 ; et qu. clxii, art. 5], consiste em nos submetermos inteiramente a Deus com a maior reverência pela sua Majestade infinita, diante da qual somos como nada: 'Todas as nações estão diante dEle como se não tivessem existência alguma' [Is 6,17]. Mas alguma vez consideraste o teu nada diante de Deus? E que todo o ser que tens, vem de Deus? E que, por necessidade intrínseca, dependes tão inteiramente de Deus que, sem Ele, não podes fazer nada de bom - 'porque sem Mim nada podeis fazer' [Jo 15,5] - que, sem Deus, não pensas, nem dizes, nem fazes nada de bom?

Isto é artigo de fé. 'Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor senão pelo Espírito Santo' [1Cor 12, 3]. 'Não que sejamos capazes por nós mesmos de ter algum pensamento, como de nós mesmos. Nossa capacidade vem de Deus' [2Cor 3, 5].  'Porque é Deus quem, segundo o seu beneplácito, realiza em vós o querer e o executar' [Fp 2,13]. Não basta dizer apenas que sei todas estas coisas, mas é necessário realizá-las para se tornar realmente humilde.

O Doutor Angélico ensina que a razão pela qual a humildade tende principalmente a tornar a alma submissa a Deus é porque esta virtude está mais próxima das virtudes teologais, e como não basta apenas saber em que coisas devemos acreditar ou esperar, mas que também é necessário que façamos atos de fé e de esperança, assim também devemos fazer atos semelhantes de humildade. O próprio Cristo ensinou a humildade do coração, e o coração não deve ficar ocioso, nem deixar de produzir os atos necessários. E que atos de humildade praticais perante Deus? Com que frequência os fazeis? Quando os fizeste? Há quanto tempo não os fazeis?

Seria absurdo esperar a recompensa que é prometida aos humildes sem ser humilde ou pelo menos sem o desejo de ser humilde; e sem fazer atos de humildade; humildade de coração sem que o coração se humilhe a si mesmo - que loucura! E sois suficientemente tolos para acreditar que isso pode ser feito? Às vezes, pronunciais certas palavras que parecem tender para a vossa humilhação; dizeis que sois um miserável desprezível, que não servis para nada, mas dizeis essas coisas sinceramente, de coração? Se receias mentir a ti mesmo, confirmando-as na tua mente, ouve o que São Tomás [Loc. cit. art. 6 ad 1] nos diz para nossa instrução, que cada um pode dizer e crer de si mesmo, com verdade, que é um miserável desprezível, remetendo para Deus toda a sua capacidade e talento.

103. Mas como devemos fazer estes atos práticos de humildade perante Deus? Vou dar-vos alguns exemplos. Podes imaginar-te agora na presença de Deus como um condenado que se humilha e implora misericórdia para o perdão dos seus pecados: 'Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia' [Sl 1,1]; ou como um mendigo miserável e necessitado que se humilha e pede uma esmola para o ajudar na sua necessidade: 'O pão nosso de cada dia nos dai hoje'; ou como o doente junto ao tanque de Betsaida, que se humilha perante o Salvador para ser curado da sua doença incurável: 'Senhor, não tenho ninguém...' [ Jo 5,7]; ou como aquele cego que se humilhou para que sua escuridão pudesse ser iluminada: 'Senhor, para que eu possa ver'; ou como a mulher cananeia que se humilhou e exclamou: 'Tem piedade de mim, Senhor, ajuda-me!' [Mt 15,22.25] e não se envergonha de se comparar aos cães que não são dignos de comer o pão do seu dono, mas se contentam em comer as migalhas que caem da sua mesa. A humildade do coração é ingênua e, da mesma forma que o nosso coração ama sem precisar de ser ensinado a amar, ele humilha-se sem precisar de ser ensinado a humilhar-se.

104. Há casos em que somos obrigados a fazer atos de virtude - como atos de fé, a esperança e caridade - que alguma necessidade, circunstância ou dever do nosso estado de vida nos exija, e há casos em que devemos fazer atos de humildade no nosso coração. Em primeiro lugar, é necessário humilharmo-nos quando nos aproximamos de Deus com a oração para obter alguma graça, porque Deus não olha, nem atende, nem dá a sua graça senão aos humildes. 'O Senhor olha para os humildes' [Sl 137,6 ]; 'sempre vos foram aceitas as preces dos mansos e humildes' [Jd 9,16]; 'Deus dá sua graça aos humildes' [Tg 4,6]. Quando, pois, vindes pedir a Deus alguma graça do corpo ou da alma, lembrai-vos sempre de praticar esta humildade?

Quando rezamos, e sobretudo quando dizemos o 'Pai Nosso', dirigimo-nos a Deus; e quantas vezes, ao dizerdes as vossas orações, vos dirigis a Deus com menos respeito do que se estivésseis a falar com um dos vossos semelhantes? Quantas vezes, quando estais na igreja, que é a casa de Deus, ouvis um sermão, que é a Palavra de Deus, e assistis às funções do serviço sem qualquer reverência? A humildade de coração, diz São Tomás [2a 2æ, qu. clxi, art. 2] é acompanhada pela reverência exterior, e faltar a esta é faltar à humildade e é, portanto, um pecado de orgulho.

105. Mas quanto mais essencial é para nós a graça que pedimos a Deus, tanto mais necessária é a humildade. Antes de ires ao tribunal da penitência, humilhas-te e pedes a Deus que te dê a dor dos teus pecados, necessária para a validade do sacramento? Como esta dor deve ser sobrenatural, é certo que nunca a poderias alcançar por ti mesmo, por mais que te esforçasses por senti-la. Só Deus pode dá-la, e é igualmente certo que não se trata de uma dívida que Ele tem para convosco, mas de uma grande graça que lhe apraz conferir-vos por sua bondade e sem qualquer mérito da vossa parte. Se, porém, desejais receber esta graça, deveis pedi-la com humildade, protestando de coração que não a mereceis, que não sois dignos de a receber e que só a esperais pelos méritos de Jesus Cristo. Mas praticais esta humildade, que é, pode-se dizer, de preceito para vós, porque é um meio essencial para obter a contrição?

106. O mesmo se pode dizer das vossas resoluções, que são igualmente necessárias para tornar válida a confissão. A confissão deve ser constante e eficaz, mas não o pode ser sem a ajuda especial de Deus. Pensais alguma vez em humilhar-vos e pedir esse auxílio, sabendo e confessando a vossa instabilidade e fraqueza, e que não sois capazes, por vós mesmos, de manter a menor resolução, nem de manhã à noite, nem mesmo de uma hora para outra? É por isso que caís tantas vezes nas mesmas faltas, porque vos falta a humildade. O homem verdadeiramente humilde é totalmente desconfiado de si mesmo e, pondo toda a sua confiança em Deus, é por Ele ajudado da maneira mais admirável: 'Humilha-te perante Deus e espera pelas suas mãos' [Eclo 13,9].

Quantas vezes não dizeis: 'Tomei esta firme resolução e tenciono mantê-la, não tenho medo de a quebrar', confiando iniquamente em ti mesmo, sem reconhecer de modo algum a ajuda divina? Cuidado para que não sejas contado entre os réprobos 'que foram destruídos confiando na sua própria força' [Eclo 16,8]. Se, mesmo que seja só um pouquinho, te apossares de ti mesmo, esse pouquinho pode ser a causa de uma grande ruína, segundo a predição de Jó: 'Levantam-se, subitamente já não existem; caem; como os outros' [Jó 24,24].

107. E como praticais a humildade na vossa confissão sacramental? É na vossa confissão que deveis humilhar-vos como um malfeitor culpado na presença do vosso Juiz. 'Humilha a tua alma diante de um ancião'  [Eclo 4, 7] Esse conselho vem do Espírito Santo. Quantas vezes não tentamos parecer inocentes no próprio ato de nos acusarmos de culpa - ora desculpando os nossos pecados, ora encobrindo ou diminuindo a sua malícia, ora pondo a culpa nos outros em vez de a assumirmos nós próprios? É uma verdadeira falta de humildade, e daquela humildade que não é de conselho, mas de preceito. Deveis dizer com Davi: 'Eu disse: confessarei ao Senhor a minha iniquidade' [Sl 31,5]. A vergonha que vos impede de confessar o vosso pecado com clareza e franqueza provém unicamente do orgulho.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)