sábado, 8 de fevereiro de 2025

08 DE FEVEREIRO - SANTA JOSEFINA BAKHITA

   


A primeira santa africana nasceu numa aldeia próxima a Dardur, no Sudão, por volta de 1869 – ela mesma não sabia a data precisa. Raptada por traficantes de escravos aos nove anos de idade, foi trancada inicialmente em um quarto escuro e miserável, depois espancada barbaramente e vendida cinco vezes nos mercados do Sudão, padecendo todo tipo de humilhação e selvageria nas mãos dos seus senhores. Este martírio atroz desde tenra idade roubou-lhe o próprio nome; o nome Bakhita - 'afortunada' em árabe -  foi-lhe dado pelos próprios traficantes.

Mas o pior dos tormentos ainda estava por vir. Comprada por um general turco, foi submetida a sofrimentos inimagináveis a serviço da mãe e da esposa deste homem, que incluíram dezenas de tatuagens no seu corpo abertas por navalha e que lhe legaram 144 cicatrizes e um leve defeito ao caminhar. A descrição destes tormentos foi assim exposta nas palavras da santa:

'Uma mulher habilidosa nesta arte cruel [tatuagem] veio à casa principal... nossa patroa colocou-se atrás de nós, com o chicote nas mãos. A mulher trazia uma vasilha com farinha branca, uma vasilha com sal e uma navalha. Quando terminou de desenhar com a farinha, a mulher pegou da navalha e começou a fazer cortes seguindo o padrão desenhado. O sal foi aplicado em cada ferida... Meu rosto foi poupado, mas 6 desenhos foram feitos em meus seios, e mais 60 em minha barriga e braços. Pensei que fosse morrer, principalmente quando o sal era aplicado nas feridas... foi por milagre de Deus que não morri. Ele havia me destinado para coisas melhores'.

Em 1882, com o retorno do general à Turquia, Bakhita foi comprada pelo cônsul italiano Calixto Legnani que a tratou como serviçal e não como escrava, sem humilhações e castigos. Diante de uma revolução nacionalista no Sudão, o cônsul retornou à itália levando Bakhita consigo, que foi cedida então a amigos do cônsul, o casal Michieli, em cuja casa começou a morar na região do Veneto, tendo por encargo especial os cuidados da filha do casal, a pequena Mimina. Foi nesta família católica que Bakhita conheceu a revelação de Jesus Cristo, sua flagelação e sua morte de cruz. O caminho de Bakhita estava traçado: da conversão à santidade pela via da caridade e do perdão. 

Em 9 de janeiro de 1890, foi batizada e crismada com o nome de Josefina e recebeu a Sagrada Comunhão das mãos do Patriarca de Veneza. Pouco depois, solicitou seu ingresso no Instituto das Filhas da Caridade, fundado por Santa Madalena de Canossa. Em 8 de dezembro de 1896, em Verona, pronunciou os votos finais de religiosa da congregação. A partir de então, por mais de 50 anos, sua vida foi um ato constante de amor a Deus e à caridade para com todos. Além de operosa nos serviços simples como na sacristia e na portaria do convento, realizou várias viagens através da Itália para difundir a sua missão: a libertação dada a ela pelo encontro com Cristo deveria ser compartilhada com o maior número possível de pessoas; a redenção que experimentara não podia ser guardada como posse, mas levada como sinal de esperança para todos.


Em 8 de fevereiro de 1947, após muito sofrimento de doenças como bronquites e pneumonias, a Irmã Josefina faleceu no convento canossiano de Schio, com a idade de 78 anos. Na hora da sua morte, seu semblante pareceu iluminar-se e exclamou com alegria suas últimas palavras 'Como estou contente! Nossa Senhora, Nossa Senhora!' A Irmã Moretta - a Irmã Morena - como era carinhosamente conhecida entregava serenamente a sua alma ao Senhor, rodeada pela comunidade em pranto e em oração. Seu corpo foi enterrado originalmente na capela de uma família de Schio, para um sepultamento definitivo posterior no Templo da Sagrada Família. Quando isso foi finalmente preparado, verificou-se que o corpo de Bakhita estava incorrupto, sendo o mesmo sepultado então sob o altar da igreja do mesmo convento. Em 17 de maio de 1992 foi beatificada e, em 1º de outubro de 2000, foi elevada à honra dos altares e declarada santa pelo Papa João Paulo II.

 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XVII)

 

73. Muitas pessoas, ao se prepararem para a confissão, angustiam-se porque não sentem contrição suficiente por seus pecados; e, para obtê-la, batem no peito tentando excitar em si mesmas sentimentos de pesar. Mas isso é orgulho, pois nos fazem entender que podem alcançar a contrição por si mesmas. Você deseja ter um verdadeiro arrependimento por seus pecados? Então, esteja certo de que isso é um dom singular de Deus, e que não há meio melhor de obtê-lo do que humilhar-se diante dEle. A humildade gera confiança e Deus nunca recusa a sua graça àqueles que vêm a Ele com humildade e confiança. 

Diga, portanto, a Deus: Posso permanecer aqui o tempo que quiser e fazer tudo o que puder para obter arrependimento pelos meus pecados, mas é impossível para mim alcançá-lo por meus próprios esforços, se Vós não me concedereis, ó meu Deus! Eu não o mereço, mas Jesus Cristo o mereceu por mim, e é pelos seus méritos que o peço, e por vossa infinita bondade que espero obtê-lo. Coloque-se nessa disposição humilde de espírito e você será feliz, pois está escrito sobre Deus: 'Ele consola os humildes' [2Cor 7,6] e 'atendeu à oração dos humildes e não desprezou a sua súplica' [Sl 101,18]. Esse arrependimento ou contrição pelo qual a alma é santificada é uma das maiores graças que Deus pode nos dar, e seria presunção, temeridade e orgulho de nossa parte pretendermos essa graça sem antes tê-la pedido com a devida humildade.

74. Pode surgir uma dúvida em nossa mente: já que, para obter a graça da humildade, devemos pedi-la a Deus, e pedi-la com humildade para que Ele ouça nossa oração, como podemos pedir com humildade se é precisamente essa humildade que não temos e pela qual estamos pedindo? Não nos percamos em tais especulações, que são inúteis na prática, pois 'a simplicidade de coração é o que o Senhor deseja de nós' [Sb 1,1]. Existem certas virtudes eficazes que Deus infundiu em nossas almas no santo Batismo, independentemente de nossas próprias disposições. 'Principalmente por infusão no Batismo', diz São Tomás. Tal, por exemplo, é a fé, e tal também é essa humildade que nos é necessária para que possamos acreditar e orar como devemos. Exercitemos, portanto, em nossas orações essa humildade infundida e, ao fazer bom uso dela, adquiriremos com o tempo aquela outra virtude evangélica que é necessária para nossa salvação e que só pode ser obtida com nossa própria cooperação.

A oração, diz Santo Agostinho, é essencialmente o recurso daquele que sabe que é pobre e necessitado: 'A oração é apenas para os necessitados' - Oratio non est nisi indigentium (Enarr. in Ps. xxvi). Reconheçamos e confessemos nossa pobreza e indigência diante de Deus e, por essa confissão, exercitaremos a humildade. Os verdadeiramente pobres não precisam ser ensinados a pedir esmolas humildemente. A necessidade é seu mestre e, se o homem pode se humilhar diante de outro homem, por que não deveria também se humilhar diante de Deus?

75. Se quisermos discernir o que pertence a Deus e o que nos pertence, basta refletirmos que, ao render a Deus tudo o que é dEle, nada resta para nós além do nada. De modo que podemos verdadeiramente dizer com o profeta: 'Fui reduzido a nada' [Sl 72,21]. Esta é uma verdade: tudo o que há em nós além do nada pertence a Deus e Ele pode tirar o que é seu quando quiser, sem nos fazer nenhuma injustiça. Portanto, em que podemos nos orgulhar, se Deus pode nos tirar qualquer coisa no momento em que começarmos a nos gloriar dela? Pois aquele que se gloria em sua riqueza pode logo tornar-se pobre; aquele que se gloria em sua saúde pode repentinamente adoecer; aquele que se gloria em seu conhecimento pode subitamente enlouquecer; aquele que se gloria em sua santidade pode cair de repente em um grande pecado. Que vaidade, que loucura, então, gloriar-se naquilo que não nos pertence, nem está em nosso poder conservar - 'Que tens tu que não tenhas recebido?' [1Cor 4,7].

Essa reflexão, por si só, deveria bastar para nos tornar humildes e pode-se dizer que toda verdadeira humildade depende de perseverarmos seriamente nesse pensamento. Ó minha alma, serás humilhada quando, como Deus diz pelo profeta, Ele 'separar o precioso do vil' [Jr 15,19]. Assim, a essência da humildade consiste em saber discernir corretamente aquilo que me pertence e aquilo que pertence a Deus. Todo o bem que faço vem de Deus e nada me pertence senão meu próprio nada. O que eu era no abismo da eternidade? Um mero nada. E o que fiz por mim mesmo para emergir desse nada? Nada. Se Deus não me tivesse criado, onde eu estaria? No nada. Se Deus não me sustentasse a cada instante, para onde eu retornaria? Ao nada. Portanto, é claro que nada possuo de mim mesmo, exceto o nada. Mesmo em meu ser moral, nada possuo além de minha própria maldade. Quando faço o mal, isso é inteiramente obra de minha própria perversidade; quando faço o bem, isso pertence somente a Deus. O mal é fruto de minha maldade; o bem é fruto da misericórdia de Deus. Assim, separamos o precioso do vil; esta é a arte das artes, a ciência das ciências e a sabedoria dos santos.

76. Imaginemos um homem que possui muitos animais de carga que comprou para transportar os fardos que necessita. Os animais estão carregados: um com ouro, outro com livros de filosofia, matemática, teologia e direito; outro com armas; outro com vasos sagrados e vestes da Igreja; e outro com relicários contendo relíquias preciosas dos santos, e assim por diante.

Agora, se esses animais pudessem falar entre si, você acha que aquele carregado de ouro se vangloriaria de sua riqueza, e aquele carregado de livros de seu conhecimento? E que, da mesma forma, os outros se gabariam de sua bravura ou santidade, conforme a natureza de sua carga? Não seriam tais pretensões vãs e ridículas? Certamente que sim, pois os fardos ricos e preciosos carregados por esses animais pertencem ao dono e não à besta. O dono poderia ter carregado com esterco aquele que carregou com ouro ou outras coisas preciosas, e sendo seu proprietário, poderia descarregar cada animal sempre que quisesse, de modo que cada um se apresentaria diante dele como realmente é: um simples animal de carga.

Ou, como diz Santo Agostinho, imaginemos o jumento sobre o qual Jesus Cristo montou quando foi recebido pela multidão com ramos de palmeira, sendo aclamado com gritos de: 'Hosana ao Filho de Davi, Hosana!' [Mt 21,9] Quem seria tão tolo a ponto de imaginar que essas honras foram dadas ao jumento? Esses louvores não foram dados ao animal, mas a Cristo, que estava montado nele. 'O jumento deveria ser louvado? O jumento estava carregando alguém, mas Aquele que era carregado é quem estava sendo louvado' [Enarr. in Ps. xxxiii]. Apliquemos essa comparação a nós mesmos, dizendo, com Davi: 'Fiquei como um animal diante de Ti' [Sl 72,22]. E qualquer que seja o objeto de nosso orgulho, usemos essa analogia para exercitar-nos na humildade. 

77. Podemos dizer, com São Tomás [12, qu. iv, art. 2], que esse nosso desejo de ser estimado, respeitado e honrado é um efeito do pecado original, assim como a concupiscência que permanece em nós mesmo após o Batismo. Mas Deus ordenou que esses apetites e desejos permanecessem em nós para que tivéssemos ocasião de nos mortificar e, por esses meios, pudéssemos conquistar o Reino dos Céus. Não devemos nos espantar nem nos entristecer ao sentir esses instintos dentro de nós. Eles pertencem à maldade de nossa natureza corrompida e são resquícios da tentação de nossos primeiros pais pela serpente, quando lhes disse: 'E vós sereis como deuses' [Gns 3,5]. Portanto, repito que esses desejos, que surgem da fraqueza e depravação de nossa natureza humana, devem ser suportados com paciência. Se esses desejos nos dominam, é porque os incentivamos e cedemos a eles; e um mau hábito que criamos por nós mesmos só pode ser curado por nós mesmos. 

Portanto, a mortificação disso cabe a nós. Essa mortificação dos sentidos, inspirada pela humildade, é ensinada por Cristo na renúncia que Ele nos impôs ao dizer: 'Se alguém quiser vir após Mim, negue-se a si mesmo' [Mt 16,24]. E, portanto, devo concluir que, se não me mortificar com humildade — ou seja, esmagar meu amor-próprio e minha ânsia por estima — serei excluído como seguidor de Jesus Cristo, e, por essa exclusão, também perderei a sua graça e serei eternamente banido da participação em sua glória. Mas para praticá-la, é necessário que eu faça violência a mim mesmo, como está escrito: 'O Reino dos Céus sofre violência, e os violentos o arrebatam'" [Mt 11,12]. Quem pode obter a salvação senão fazendo violência a si mesmo? 

78. Vamos ouvir, às portas do inferno, os lamentos dos condenados eternamente. Eles exclamam: 'Que proveito nos trouxe o orgulho?' [Sb 5,8]. Que uso ou vantagem nos trouxe nosso orgulho? Tudo passa e desaparece como uma sombra, e de todos aqueles males passados, nada nos resta senão a vergonha eterna de termos sido orgulhosos. Seu remorso é vão, porque é o remorso do desespero. Portanto, enquanto ainda há tempo, consideremos seriamente a questão e digamos: 'Que vantagem tirei de todo o meu orgulho? Ele me torna odioso para o Céu e para a terra, e se eu não insistir em mortificá-lo, ele me tornará odioso a mim mesmo por toda a eternidade no inferno'. Levantemos os nossos olhos para o Céu e, contemplando os santos, exclamemos: 'Vejam quanto a humildade os beneficiou! Oh, quanta glória eles ganharam por sua humildade!' Agora, a humildade é vista como loucura pelo mundo, digna apenas de desprezo e zombaria; mas chegará o tempo em que todos serão obrigados a reconhecer sua virtude e a exclamar, ao ver a glória dos humildes: 'Vejam como foram contados entre os filhos de Deus' [Sb 5,5].

Se eu for humilde, serei exaltado com aquela glória à qual Deus exalta os humildes. Ó meu Deus, humilha este louco orgulho que predomina dentro de mim. 'Tu multiplicarás a força em minha alma' [Sl 137,3] pois 'minha força me abandonou' [Sl 37,11]. E eu não quero, nem posso fazer nada sem a vossa ajuda. Em Vós coloco toda a minha confiança e vos suplico que me ajudeis. 'Mas eu sou pobre e necessitado; ó Deus, ajudai-me. Vós sois o meu auxílio e meu libertador: ó Senhor, não demoreis' [Sl 69,6].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

ORAÇÃO DA IGREJA CONTRA AS PERSEGUIÇÕES DO MUNDO

UT QUID, DEUS, REPULISTI IN FINEM?

Por que, Senhor, persistis em nos rejeitar? Por que se inflama vossa ira contra as ovelhas de vosso rebanho? Recordai-vos de vosso povo que elegestes outrora, da tribo que resgatastes para vossa possessão, da montanha de Sião onde fizestes vossa morada.

Dirigi vossos passos a estes lugares definitivamente devastados; o inimigo tudo destruiu no santuário. Os adversários rugiam no local de vossas assembleias, como troféus hastearam suas bandeiras. Pareciam homens a vibrar o machado na floresta espessa. Rebentaram os portais do templo com malhos e martelos, atearam fogo ao vosso santuário, profanaram, arrasaram a morada do vosso nome.

Disseram em seus corações: 'Destruamo-los todos juntos; incendiai todos os lugares santos da terra'. Não vemos mais nossos emblemas, já não há nenhum profeta e ninguém entre nós que saiba até quando... Ó Deus, até quando nos insultará o inimigo? O adversário blasfemará vosso nome para sempre? Por que retirais a vossa mão? Por que guardais vossa destra em vosso seio?

Entretanto, Deus é meu rei desde os tempos antigos, ele que opera a salvação por toda a terra. Vosso poder abriu o mar, esmagastes nas águas as cabeças de dragões. Quebrastes as cabeças do Leviatã, e as destes como pasto aos monstros do mar. Fizestes jorrar fontes e torrentes, secastes rios caudalosos. Vosso é o dia, a noite vos pertence: vós criastes a lua e o sol. Vós marcastes à terra seus confins, estabelecestes o inverno e o verão.

Lembrai-vos: o inimigo vos insultou, Senhor, e um povo insensato ultrajou o vosso nome. Não abandoneis ao abutre a vida de vossa pomba, não esqueçais para sempre a vida de vossos pobres. Olhai para a vossa aliança, porque todos os recantos da terra são antros de violência.

Que os oprimidos não voltem confundidos, que o pobre e o indigente possam louvar o vosso nome. Levantai-vos, ó Deus, defendei a vossa causa. Lembrai-vos das blasfêmias que continuamente vos dirige o insensato. Não olvideis os insultos de vossos adversários, e o tumulto crescente dos que se insurgem contra vós.
(Salmo 73, 1-23)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (V)

P.9 - Que julgamento as Escrituras fazem sobre todos os cristãos que estão separados da Igreja pela heresia? Podem eles ser salvos se estiverem em ignorância invencível e viverem e morrerem nesse estado de separação da verdadeira Igreja de Cristo?

Esses estão em um estado muito diferente dos muçulmanos, judeus e pagãos, desde que tenham entre eles o verdadeiro batismo; pois, se não possuem o batismo ou alteraram a forma de ministrá-lo conforme ordenado por Cristo, então não estão em melhor condição, no que diz respeito à possibilidade de salvação, do que os pagãos, ainda que possam assumir o nome de cristãos. Mas, se possuem o batismo válido, por meio dele são feitos verdadeiros membros da Igreja de Cristo e aqueles que morrem jovens, em sua inocência batismal, sem dúvida serão salvos.

Quanto àqueles que atingem a idade da razão, são educados em uma fé falsa e vivem e morrem em um estado de separação da comunhão da Igreja de Cristo, também devemos distinguir entre dois casos diferentes. O primeiro é o daqueles que vivem entre católicos ou têm católicos vivendo no mesmo país, sabem de sua existência e frequentemente ouvem falar deles. O segundo refere-se àqueles que não têm tal conhecimento e raramente ou nunca ouvem falar de católicos, exceto sob uma luz falsa e odiosa.

P. 10 - O que se pode dizer daqueles que vivem entre os católicos? Se estiverem em ignorância invencível e morrerem nesse estado de separação, poderão ser salvos?

É quase impossível que alguém dessa classe esteja em estado de ignorância invencível, pois, para ser verdadeiramente ignorante de forma invencível, são necessários três requisitos.

Primeiro, a pessoa deve ter um desejo real e sincero de conhecer a verdade; pois, se for fria e indiferente em relação a um assunto tão importante quanto a sua salvação eterna, se for negligente quanto a estar ou não no caminho certo; se, escravizada a esta vida presente, não se preocupar com a próxima, então é evidente que a ignorância decorrente dessa disposição é uma ignorância voluntária e, portanto, altamente culpável aos olhos de Deus. Isso é ainda mais grave se a pessoa estiver positivamente relutante em buscar a verdade por medo de inconveniências mundanas e, por isso, evitar toda oportunidade de conhecê-la. Sobre essas pessoas, a Escritura diz: 'Passam os seus dias entre riquezas, e num momento descem à sepultura. E dizem a Deus: Afasta-te de nós, não desejamos conhecer os teus caminhos' (Jó 21,13-14).

Segundo, para que alguém seja realmente ignorante de forma invencível, é necessário que esteja sinceramente disposto a aceitar a verdade onde quer que a encontre e qualquer que seja o custo. Pois, se a pessoa não estiver plenamente decidida a seguir a vontade de Deus em tudo o que for necessário para a salvação; se, pelo contrário, estiver disposta a negligenciar seu dever e arriscar sua alma para não desagradar amigos ou sofrer alguma perda ou desvantagem temporária, sua ignorância é culpável e nunca poderá justificá-la diante do Criador. Sobre isso, Nosso Senhor diz: 'Quem ama pai ou mãe, ou filho ou filha, mais do que a Mim, não é digno de Mim' (Mt 10,37).

Terceiro, é necessário que a pessoa faça um esforço sincero para conhecer seu dever e, especialmente, que recomende essa questão a Deus Todo-Poderoso, rezando por luz e orientação dEle. Pois, independentemente do desejo que possa ter de conhecer a verdade, se não utilizar os meios adequados para encontrá-la, sua ignorância não é invencível, mas voluntária. A ignorância só é invencível quando uma pessoa tem um desejo sincero de conhecer a verdade, com plena disposição para aceitá-la, mas não tem nenhum meio possível de conhecê-la ou, após fazer todos os esforços, não consegue descobri-la.

Portanto, se uma pessoa falha em buscar conhecer seu dever, sua ignorância não é invencível — é sua própria culpa não conhecê-lo. Se a desatenção, a indiferença, os motivos mundanos ou preconceitos injustos influenciam seu julgamento e a fazem ceder ao peso da educação que recebeu, essa pessoa não tem ignorância invencível nem o temor de Deus. Ora, é inconsistente com a bondade e as promessas de Deus que uma pessoa criada em uma religião falsa, mas que está na condição descrita por esses três requisitos e faz o máximo esforço para conhecer a verdade, seja deixada em ignorância invencível. Mas, se, por apego ao mundo ou a objetos sensuais e egoístas, essa pessoa não estiver bem disposta e negligenciar os meios adequados para chegar à verdade, então sua ignorância será voluntária e culpável, e não invencível.

P. 11 - Mas, e se nunca surgir dúvida em sua mente, e a pessoa continuar de boa fé no caminho em que foi criado?

É um erro supor que uma dúvida formal seja necessária para tornar a ignorância do seu dever voluntária e culpável; basta que haja razões suficientes para duvidar, ainda que, por seus preconceitos injustos, obstinação, orgulho ou outras más disposições do coração, ele impeça que essas razões despertem uma dúvida formal em sua mente.

Saul não teve dúvida alguma quando ofereceu sacrifício antes que o profeta Samuel chegasse; pelo contrário, estava convencido de que tinha as razões mais fortes para fazê-lo, e ainda assim foi condenado por essa mesma ação, sendo ele e sua família rejeitados por Deus Todo-Poderoso. Os judeus acreditavam que estavam agindo corretamente quando condenaram Nosso Senhor à morte; mais ainda, o sumo sacerdote declarou diante do conselho que era conveniente para o bem e a segurança da nação que assim o fizessem. Eles estavam grosseiramente enganados e terrivelmente ignorantes de seu dever, mas sua ignorância era culpável e foram severamente condenados pelo que fizeram, mesmo que o tenham feito por ignorância.

Na verdade, todos aqueles que agem a partir de uma consciência falsa e errônea são altamente culpáveis por terem tal consciência, ainda que nunca tenham tido uma dúvida formal. E mais, a ausência de dúvida, quando há razões justas e sólidas para duvidar, torna a culpa ainda maior, pois revela uma maior corrupção do coração e uma disposição ainda mais depravada.Uma pessoa criada em uma fé falsa — que a Escritura chama de seitas de perdição, doutrinas de demônios, coisas perversas, mentiras e hipocrisia — e que já ouviu falar da verdadeira Igreja de Cristo, que condena todas essas seitas, e que observa suas divisões e dissensões, tem sempre diante de seus olhos os mais fortes motivos para duvidar da segurança de seu próprio estado. 

Se fizer qualquer exame sincero de consciência, deverá perceber que está no erro; e quanto mais examinar, mais claramente verá isso, pois é simplesmente impossível que uma doutrina falsa, baseada em mentiras e hipocrisia, possa ser sustentada por argumentos sólidos capazes de satisfazer uma pessoa razoável que sinceramente busca a verdade e suplica a Deus por luz para guiá-la nessa busca. Portanto, se uma pessoa nunca duvida, mas continua, como se supõe, bona fide em seu próprio caminho, apesar das fortes razões para duvidar do que tem diante de si diariamente, isso demonstra claramente que ou ela é extremamente negligente nos assuntos de sua alma ou que seu coração está totalmente cego pela paixão e pelo preconceito.

Havia muitas pessoas assim entre os judeus e pagãos no tempo dos apóstolos, que, apesar da luz esplêndida da verdade que esses santos pregadores difundiam por toda parte — uma luz que deveria levá-los a duvidar de suas superstições —, estavam tão longe de duvidar que acreditavam estar prestando um serviço a Deus ao matar os apóstolos. De onde vinha essa incredulidade? O próprio São Paulo nos informa: 'Renunciamos às coisas ocultas da desonestidade, não andando com astúcia, nem adulterando a palavra de Deus, mas, pela manifestação da verdade, recomendando-nos à consciência de todo homem diante de Deus' (2Cor 4,2).

Aqui ele descreve a força da luz da verdade que pregava; e ainda assim essa luz era oculta para muitos. Ele imediatamente explica o motivo: 'E se o nosso Evangelho está encoberto, para os que se perdem está encoberto, nos quais o deus deste mundo cegou as mentes dos incrédulos, para que a luz do Evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus, não resplandeça sobre eles' (2Cor 4,3-4). Eis a verdadeira causa da incredulidade: eles estão tão escravizados às coisas deste mundo, pela depravação de seu coração, que o diabo os cega, impedindo-os de ver a luz. Mas a ignorância que surge dessas disposições depravadas é uma ignorância culpável e voluntária e, portanto, jamais poderá servir de desculpa.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

'O VINHO BOM'


Como a heresia é sempre inoculada na sã doutrina de Cristo na forma de uma gota de veneno incorporada a uma bela taça de vinho, convivemos hoje com realidades tão amargas e distorcidas que ainda as tomamos como vinho:

(i) ecumenismo: vinho ruim, miserável mesmo, para atender as mazelas aromáticas de bebedores de aguardente;

(ii) a comunhão na mão: vinho azedo e oxidado, vendido como vinagre;

(iii) livre liberdade de consciência católica: vinho mofado e mal cheiroso, tomado com náuseas, fechando-se bem as narinas.

Santa e bela Igreja Católica de todos os tempos: onde está o 'vinho bom' das Bodas de Caná?

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

OS GRANDES TESOUROS DA MÚSICA SACRA (II)


Ora, Pedro estava assentado fora, no pátio; e, aproximando-se dele uma criada, disse: 'Tu também estavas com Jesus, o galileu'. Mas ele negou diante de todos, dizendo: 'Não sei o que dizes'. E, saindo para o vestíbulo, outra criada o viu, e disse aos que ali estavam: 'Este também estava com Jesus, o Nazareno'. E ele negou outra vez com juramento: 'Não conheço tal homem'. E, daí a pouco, aproximando-se os que ali estavam, disseram a Pedro: 'Também tu és um deles, pois a tua fala te denuncia'. Então começou ele a praguejar e a jurar, dizendo: 'Não conheço esse homem'. E imediatamente o galo cantou. E lembrou-se Pedro das palavras de Jesus, que lhe dissera: 'Antes que o galo cante, três vezes me negarás'. E, saindo dali, chorou amargamente (Mt 26, 69-75).


Erbarme dich, mein Gott, um meiner Zähren Willen! - 'Tem piedade de mim, meu Deus, veja minhas lágrimas!' é uma ária para contralto da segunda parte da 'Paixão Segundo São Mateus', a obra prima de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Na ária, a solista pede perdão pela tríplice negação de Pedro e a música sustenta a comoção do seu amargo pranto. O lamento sublime fez com que a própria ária assumisse um patamar independente da 'Paixão', como um dos grandes triunfos da música sacra universal.

Erbarme dich, mein Gott,
um meiner Zähren willen!
Schaue hier, Herz und Auge
weint vor dir bitterlich.
Erbarme dich, mein Gott.

Tem piedade de mim, meu Deus,
e veja as minhas lágrimas!
Olha aqui, o coração e os olhos
choram amargamente diante de Ti.
Tem piedade de mim, meu Deus.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Rei da glória é o Senhor onipotente!' (Sl 23)

Primeira Leitura (Ml 3,1-4) - Segunda Leitura (Hb 2,14-18) -  Evangelho (Lc 2,22-40)

  02/02/2025 - FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR 

APRESENTAÇÃO DE JESUS NO TEMPLO


No Templo de Jerusalém, a Mãe de Deus e o Salvador do Mundo fazem cumprir integralmente as prescrições da lei mosaica: servir e seguir com retidão extrema a lei da Igreja: 'Todo primogênito do sexo masculino deve ser consagrado ao Senhor' (Lc 2,23). E, com a consagração do filho, a purificação da mãe. No Templo de Jerusalém, os mistérios de Deus se harmonizam na Apresentação de Jesus e na Purificação de Nossa Senhora.

Simeão, o velho Simeão, tão justo e piedoso que 'O Espírito Santo estava com ele e lhe havia anunciado que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor' (Lc 2,25-26), representa a Igreja. Jesus se doa, pelas mãos de Maria, à Igreja e à toda a humanidade. Doação reconhecida pela Igreja, nas palavras do Velho Simeão: 'meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel' (Lc 2,30-32).

Ao tomar a criança nos seus velhos e cansados braços, Simeão é a Igreja que acolhe Jesus. Ao ser recebido nos braços do velho sacerdote, Jesus acolhe para si o resgate e a redenção da humanidade pecadora. Neste encontro no Templo, é forjada a missão da Igreja: permanecer, ainda que envelhecida e cansada, nos braços de Cristo, até o último dia da humanidade. No encontro no Templo, é revelado o plano da salvação humana: 'Ele será um sinal de contradição' (Lc 2,34) que perpassa pela Paixão de Cristo: 'Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma' (Lc 2,35). Os mistérios de Deus começaram a ser revelados aos homens, pelo velho Simeão e pela sacerdotisa Ana, naquele dia no Templo de Jerusalém.

Santos e portentosos mistérios que levaram os próprios pais de Jesus à admiração profunda: 'O pai e a mãe de Jesus estavam admirados com o que diziam a respeito dele' (Lc 2,33). Com quanto zelo e reflexão profunda não devem ter guardado nos corações aqueles acontecimentos extraordinários, quando regressavam para Nazaré. E quanto zelo, admiração e louvor a Deus não devem ter experimentado nos dias, meses e anos seguintes, ao ver e testemunhar que aquele menino 'crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele' (Lc 2,40).