quinta-feira, 1 de abril de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: QUINTA-FEIRA SANTA

 CELEBRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA E DO SACERDÓCIO

Nesta Quinta-Feira Santa, a Igreja recorda a Última Ceia de Jesus e a instituição da Eucaristia, sacramento do Seu Corpo e do Seu Sangue: 'Fazei isto em memória de Mim'; a instauração do novo Mandamento: 'Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei' e a suprema lição de humildade de Jesus, quando o Senhor lava os pés dos seus discípulos.


Transportemo-nos em espírito à última Ceia, na qual, Jesus Cristo, às vésperas de sua morte, reúne os seus Apóstolos como o pai de família, próximo ao seu fim, reúne os seus filhos em torno do leito de morte para dar-lhes as suas últimas vontades e legar-lhes a herança do seu amor em comum. Sobretudo, então, lhes atesta o quanto os ama. Assistamos, com recolhimento e amor, a este espetáculo amoroso e meditemos nos grandes mistérios deste dia: a instituição da Eucaristia e a instituição do sacerdócio.

I - A INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA 

Admiremos de princípio Jesus ajoelhado diante dos seus Apóstolos, lavando-lhes os pés para ensinar a todos os dons da humildade profunda; da caridade perfeita, da pureza sem mancha, que pede o Sacramento que Ele vai instituir e que eles vão receber. Sentando-se em seguida à mesa, toma o pão, o abençoa, o parte e o distribui aos seus discípulos, dizendo: 'Tomai e bebei; ESTE É O MEU SANGUE, O SANGUE DA NOVA ALIANÇA QUE QUE SERÁ DERRAMADA POR VÓS EM REMISSÃO AOS VOSSOS PECADOS'

Ó como se conhece bem o amor de Jesus! O Divino Salvador, próximo a deixar-nos, não pode se separar de nós. 'Não os deixarei órfãos', Ele havia dito,' meu Pai me chama; porém, ao ir ao Pai não me separarei de vós; minha morte está determinada por decretos eternos; mas, morrendo, permanecerei vivo para ficar convosco. Minha sabedoria idealizou como obter isso e o meu amor como fazê-lo'.

Na sequência, transforma o pão em seu Corpo e o vinho em seu Sangue, em face da união indissolúvel entre a Pessoa Divina e a natureza humana, e o que pouco antes era apenas pão e apenas vinho é agora a Pessoa Adorável de Jesus Cristo por inteiro, sua Pessoa Divina, tão grande, tão poderosa, como está diante do Pai, governando todos os mundos e adorado por todos os anjos que se estremecem na Sua Presença.

A este milagre sucede outro: 'O que acabo de vos dizer', disse Jesus, 'vós, meus Apóstolos, o fareis; dou-vos este poder não somente a vós, mas a todos os seus sucessores até o fim dos tempos, uma vez que a Eucaristia será a alma de toda a Religião e a essência do seu culto, e deve perdurar tanto quanto ela mesma'. Esta é a rica herança que o amor de Jesus transmitiu aos seus filhos pelo longo dos séculos; este é o testamento que este bom Pai de Família fez, no momento de sua partida, em favor de seus filhos; suas mãos moribundas o escreveram e, em seguida, o selou com o seu Sangue; esta é a bênção que o bom Jacó deu a seus filhos reunidos em torno de Si antes de deixá-los. Ó preciosa herança, ó bendito e amado testamento, ó tão rica bênção! Como podemos agradecer tanto amor?

II PONTO - A INSTITUIÇÃO DO SACERDÓCIO 

Parece, Senhor, que havia se esgotado para nós todas as riquezas do vosso amor e eis, então, que surgem novas maravilhas: NÃO É SOMENTE A EUCARISTIA QUE NOS LEGAIS NESTE SANTO DIA, MAS TAMBÉM O SACERDÓCIO, COM TODOS OS SEUS SACRAMENTOS, COM A SANTA IGREJA, COM A SUA AUTORIDADE INFALÍVEL PARA ENSINAR, O PODER DE GOVERNAR, A GRAÇA DE ABENÇOAR E A SABEDORIA PARA DIRIGIR. Porque tudo isso está ligado essencialmente com a Eucaristia, como preparação da alma para recebê-la, como consequência para conservá-la e para multiplicar os seus frutos. Assim, Jesus Cristo, como Pontífice soberano, quis estabelecer e estabeleceu realmente todos estes poderes de uma só vez e numa só ordem: 'Fazei isso!' 

Ó sacerdócio que esclareceis, purificais e engrandeceis as almas, que dispensais sobre a terra os mistérios de Deus e, em socorro das almas caídas e das almas dos justos, as riquezas da graça; sacerdócio que, em socorro das almas caídas e das almas dos justos, fazeis nascer o arrependimento e abris as portas do Céu, acolhendo os pecadores e fazendo-os volver à inocência; sacerdócio pelo qual sustentais a alma vacilante e a fazeis avançar na virtude, que protegeis o mundo contra si mesmo e à corrupção, contra a ira santa de Deus; sacerdócio, bem inefável, eu o bendigo e bendigo a Deus por tê-lo herdado à terra! 

Que seria do mundo sem vós? Sem vós, o que seria o sol, sua luz, seu calor, seu consolo, sua força e seu apoio! Ó Quinta - Feira Santa, mil vezes bendita, porque trouxestes tanta felicidade para os filhos de Adão! Jamais poderemos celebrar por completo esta graça com a devida piedade, recolhimento e amor.

(Excertos da obra 'Meditações para todos os dias do ano para uso do clero e dos fieis', de Pe. Andrés Hamon, Tomo II).

INDULGÊNCIAS PLENÁRIAS DA SEMANA SANTA MAIOR

 

No riquíssimo acervo das indulgências concedidas pela Santa Igreja, concessões diversas são dadas aos fieis por ocasião do Tríduo Pascal (Quinta-feira Santa, Sexta-feira Santa e Vigília Pascal) para a obtenção de indulgências plenárias, desde que atendidas as demais condições habituais*:

Quinta-Feira Santa

· Recitação ou canto do hino eucarístico 'Tantum Ergo' durante a solene adoração ao Santíssimo Sacramento que se segue à Missa da Ceia do Senhor;

· Visita e adoração ao Santíssimo Sacramento pelo prazo de meia hora.

Sexta-Feira Santa

· Participação piedosa da Veneração da Cruz na solene celebração da Paixão do Senhor.

Sábado Santo  

· Recitação do Santo Rosário.

· Participação piedosa da celebração da Vigília Pascal, com renovação sincera das promessas do Batismo.

Domingo de Páscoa

· Participação devota e piedosa à benção dada pelo Sumo Pontífice a Roma e ao mundo (bênção Urbi et Orbi), ainda que por rádio ou televisão.

* estas condições (e as complementares listadas abaixo) para a obtenção das indulgências plenárias, deverão ser convenientemente adaptadas para a situação atual (orações e devoções particulares e não públicas):

1. Exclusão de todo afeto a qualquer pecado, inclusive venial.

2. Confissão Sacramental, Comunhão Eucarística e Oração pelas Intenções do Sumo Pontífice. 

(i) estas condições podem ser cumpridas uns dias antes ou depois da execução da obra enriquecida com a Indulgência Plenária, mas é da maior conveniência que a comunhão e a oração pelas intenções do Sumo Pontífice se realizem no mesmo dia em que se cumpre a obra.

(ii) a condição de orar pelas intenções do Sumo Pontífice é cumprida por meio da oração de um Pai Nosso, Ave-Maria e Glória ou uma outra oração segundo a piedosa devoção de cada um.

quarta-feira, 31 de março de 2021

IMAGEM DA SEMANA SANTA MAIOR

(Sexta Estação/ - Via Dolorosa / Jerusalém)

Pia Veronica faciem christi linteo deterci

 'a piedosa Verônica enxugou o rosto de Cristo com um pano'


VERONICA (em grego): Verus (verdadeira) + nikos (imagem)

A verdade - que é Jesus Cristo - ficou estampada como imagem no pano 
Verônica representa a VERDADEIRA IMAGEM de Jesus Cristo que todos nós devemos ser como Filhos de Deus

terça-feira, 30 de março de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: SERMÃO DO DIA DE RAMOS (II)


E a alma, o que há de fazer? O corpo, imitar; a alma, meditar: o corpo com os ramos da palma, a alma com os da oliveira. A alma nestes santos dias há de fazer do coração um Monte Calvário, levantar nele um Cristo crucificado, e pôr-se desta maneira a contemplar suas dores. Oh! quem pudera explicar-se agora com o pensamento, e falar com o silêncio! Quando os amigos de Jó o foram visitar nos seus trabalhos - diz a Escritura Sagrada - ficaram uma semana inteira olhando só para ele, sem falarem palavra. Assim o hão de fazer nossas almas esta semana, se são amigas de Jesus: olhar, calar e pasmar. Oh! que vista! Oh! que silêncio! Oh! que admiração! Oh! que pasmo! Só três coisas dou licença a nossas almas que se possam perguntar a si mesmas no meio desta suspensão: Quem padece? O que padece? Por quem padece? E que meditação esta para uma eternidade!

Quem padece? Deus, aquele ser eterno, infinito, imenso, todo poderoso, aquele que criou o céu e a terra com uma palavra, e o pode aniquilar com outra; aquele, diante de cujo acatamento, os principados, as potestades e as dominações, e todas as hierarquias estão tremendo. Este Deus, cuja grandeza; este Deus, cuja majestade; este Deus, cuja soberania incompreensível só ele conhece inteiramente, e todos os entendimentos criados com infinita distância de nenhum modo podem alcançar, este, este é o que padece. 

Aqui se há de fazer uma pausa, e pasmar. São Bernardo, cheio de pasmo e assombro nesta mesma consideração, rompeu dizendo: Ergo ne credendum est, quod iste sit Deus, qui flagellatur, qui conspuitur, qui crucifigitur? [por que não cremos que é esse Deus que é flagelado, que é cuspido, que é crucificado?] É possível que se há de crer que este, que padece tantas injúrias e afrontas e tal morte é aquele mesmo Deus imortal, impassível, eterno, que não teve princípio, e é o princípio e fonte de todo ser? Este, este é; que nem ele seria Deus, nem a nossa fé seria fé, se assim não fosse, e nós não creríamos o que excede toda a capacidade humana. Por isso Isaías, quando entrou a falar da Paixão, como profeta que entre todos era o mais eloquente, o exórdio por onde começou foi aquela pergunta: Quis credidit auditui nostro? [quem acreditou na nossa pregação?]. Quem haverá que dê crédito ao que há de ouvir de minha boca? Tão alheio é quem padece do que padece, e este é Deus. Vede se há bem de que pasmar aqui.

Depois de considerarmos que é Deus quem padece, então se segue a consideração do que padece. E não só havemos de trazer à memória o que já vimos que padeceu exteriormente em todos os sentidos do corpo, mas muito mais devemos considerar e ponderar o que padeceu no interior da alma e em todas suas potências. Com dois nomes, ou com duas semelhanças nos declarou nosso amorosíssimo Redentor o que padeceu em sua Paixão, com nome e semelhança de cálice, quando disse a São Pedro: Calicem, quem dedit mihi Pater, non vis ut bibam illum? - o cálice que me deu o meu Pai, não queres que o beba? E com nome e semelhança de Batismo, quando disse a todos os discípulos: baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor usque dum perficiatur - Eu hei de ser batizado em um batismo, o qual desejo com grandes ânsias e aperto do coração até que chegue. 

De sorte que declarou o Senhor o que havia de padecer por nós, já chamando-lhe cálice, já batismo, e por quê? Porque o batismo recebe-se por fora, o cálice bebe-se por dentro, e Cristo, Redentor nosso, em toda sua Paixão não só padeceu por fora os martírios do corpo, senão também, e muito mais, por dentro os tormentos da alma. Por fora padeceu os tormentos dos açoites, dos espinhos, dos cravos, da lança, que o banharam todo em sangue, e por isso lhes chamou Batismo; por dentro, padeceu as tristezas, os tédios, os temores, as angústias e agonias, que, sem ferro, lhe tiraram também sangue no Horto, e lhe penetravam mortalmente a alma: Tristis est anima mea usque ad mortem [Minha alma está triste até a morte (Mc 14, 34].

Oh! quem pudesse entrar profundamente no interior da alma de Jesus, e entender o que naquele consistório sacratíssimo e secretíssimo das suas três potências passava e sofria por tantas horas! A memória, desde o princípio do mundo, representava os pecados de todos os homens, por quem satisfazia a divina justiça; o entendimento ponderava o pouco número dos mesmos homens que se haviam de aproveitar do preço infinito daqueles tormentos, e a vontade se desfazia com dor de ver perder tantas almas por sua culpa, sem achar consolação alguma a tamanha perda; e esta era a tristeza que ocupava toda a alma do Salvador e com três cravos mais agudos e penetrantes a crucificava. Aqui havemos de fazer a segunda pausa, e pasmar tanto daquele infinito amor, como da nossa infinita cegueira. Oh! Senhor, quantos pode ser que vísseis então, dos que agora se acham nesta mesma igreja, que, por que haviam de desprezar e condenar as suas almas, agonizavam a vossa! Considere cada um se porventura, ou eterna desventura, é algum destes, e vejam bem o seu perigo enquanto têm tempo.

Este é o Deus que padece, estas são as penas e dores que padece, e só resta ver por quem padece. Se a fé me não ensinara outra coisa, cuidara eu que padecia Deus pelo céu, porque vejo o sol eclipsado e coberto de luto; cuidara que padecia pela terra, porque a vejo tremer e arrancar-se de seu próprio centro; cuidara que padecia pelas pedras, porque as vejo quebrarem-se umas contra as outras e abrirem-se as sepulturas; cuidara que padecia pelo Templo de Jerusalém, porque vejo rasgar-se de alto a baixo o véu do Sancta Sanctorum; cuidara que padecia por este mundo elementar, porque vejo confusos, perturbados, atônitos e com prodígios de sentimento e assombro todos os elementos. 

Mas não são estas as criaturas por quem padece Deus, posto que todas confessam que padece o seu Criador; e, como seres irracionais e insensíveis, quiseram acabar como Ele quando o veem morrer. Quem são logo aqueles por quem padece o Autor da natureza, e por quem morre o Autor da vida? Sou eu, sois cada um de vós, e somos todos os homens. Por nós, e só por nós Deus padece; por nós, e só por nós padece quanto padece. Por nós que, depois de nos criar, o não respeitamos; por nós que, depois de nos sustentar, o não servimos; por nós que, depois de nos remir, o não obedecemos; por nós que, depois de morrer por nosso amor, o não amamos; por nós que, depois de se pôr em uma cruz por nós, o tornamos a crucificar mil vezes; por nós que, esperando-nos assim, e chamando-nos com os braços abertos, não queremos acudir às suas vozes; por nós, enfim, que, sabendo que nos há de julgar e nos prometeu o céu se o não ofendermos, queremos antes o inferno sem ele, que o céu com ele. Isto é o que faz todo o homem que peca mortalmente, e isto o que continua a fazer enquanto se não se livra do pecado, para que vejais se tem razão, não só de pasmar, mas de perder o juízo.

('Sermão de Dia de Ramos' - Parte II, Pe. Antônio Vieira, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656)

segunda-feira, 29 de março de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: SERMÃO DO DIA DE RAMOS (I)


Acabemos de nos desenganar, antes que se acabe o tempo: Ecce nunc tempus acceptabile [agora é o tempo favorável]. Acabemos de tratar da salvação, antes que se fechem as portas da misericórdia: Ecce nunc dies salutis [agora são os dias da salvação]. Ou fazemos conta de nos converter deveras a Deus alguma hora, ou não: se não fazemos esta conta, para que somos cristãos? Por outro caminho mais largo podíamos ir ao inferno. Mas se nenhum há tão rematadamente inimigo de sua alma, que ao menos não tenha intenção de algum dia a tirar do poder do demônio e a dar a Deus, quando há de ser este dia? Que dia, ou que dias mais a propósito podemos ter ou esperar que estes da Semana Santa? Que dias mais a propósito para pedir a Deus perdão dos pecados, que aqueles mesmos dias em que Deus se pôs em uma cruz por meus pecados? Que dias mais a propósito para alcançar e ter parte nos merecimentos do sangue de Cristo, que os dias em que se está derramando o mesmo sangue? Agora, agora, e não depois, é o tempo aceito a Deus: Ecce nunc tempus acceptabile. Estes dias, estes, e não os futuros, incertos e enganosos, são os dias da salvação: Ecce nunc dies salutis.

Suposto pois, cristãos, que este é o tempo, e suposto que os dias são tão precisos que não temos outros para que apelar, o que resta é recuperar o perdido, e que nos aproveitemos deles com tais atos de verdadeira contrição e devoção, que esta Semana Santa, como o é em si, seja em nós também santa. Os ramos que cortaram das árvores os que hoje saíram a receber a Cristo: caedebant ramos de arboribus [cortavam ramos de árvores], posto que São Mateus não declare quais fossem, São João diz que eram de palma, e São Lucas de oliveira. E com os dois afetos que estes ramos significavam, devemos nós seguir e acompanhar o Senhor em todos seus passos, oferecendo estes humildes obséquios a seus sacratíssimos pés, que isto quer dizer: et sternebant in via [e os espalhavam pelo caminho]. 

A palma é símbolo da paciência, como a oliveira o é da misericórdia e da compaixão; e tais eram os dois mistérios que encerrava o aparato e a diferença daqueles ramos: padecer e compadecer. Desta maneira receberemos e acompanharemos o nosso bom Rei e Redentor muito melhor que a ingrata e inconstante Jerusalém, se não só hoje, mas todos estes dias padecermos alguma coisa com ele, e nos compadecermos dele. Tudo resumiu São Paulo a uma só palavra, quando disse: si tamen compatimur [se padecemos com Ele]. Uma coisa é compadecer, e outra padecer com: compadecer, é compadecer dele; padecer com, é padecer com ele; e tanto nos merecem a paciência as suas penas, como a compaixão o seu amor. Toda a sua sagrada humanidade do corpo e alma de Cristo nos mereceu sempre muito, mas nunca tanto como nestes dias: padecendo na imitação de seus tormentos, acompanharemos seu santíssimo corpo, e compadecendo-nos na meditação de suas dores, acompanharemos a sua santíssima alma.

Digo pois, quanto ao corpo, que havemos nesta semana de procurar padecer alguma coisa em todos os cinco sentidos, assim como Cristo padeceu em todos. Adão e Eva, em um só pecado, pecaram com todos os cinco sentidos. Pecaram com o ouvir, ouvindo a serpente; pecaram com o ver, olhando para a fruta; pecaram com o tato, retirando-a; pecaram com o olfato, cheirando-a; pecaram com o gosto, comendo-a. Com todos os cinco sentidos pecaram nossos primeiros pais, e nós, tão herdeiros de suas misérias como de suas culpas, em todos pecamos infinitas vezes. E como Cristo vinha pagar pelo pecado de Adão e pelos nossos, quis padecer também em todos os cinco sentidos.

Padeceu no sentido de ver, vendo fugir todos os seus discípulos: vendo que um o entregou tão aleivosamente; vendo que outro o negou três vezes; vendo-se atar e levar preso, e a tantos tribunais; vendo-se tapar os olhos; vendo-se despir no Pretório, e estar despido no Calvário tantas horas à vista de todo o mundo, e no meio de dois ladrões; sobretudo, vendo a desconsolada Mãe ao pé da cruz, em cujo coração e em cujos olhos estava outras três vezes crucificado. Finalmente, vendo os meus pecados e os vossos, com que tão ingratos havíamos de dar a tanto amor, uma vez que todos naquela hora lhe eram presentes.

Padeceu no sentido do ouvir, ouvindo o 'Deus te salve' murmurado da boca de Judas; ouvindo os crimes e testemunhos falsos com que foi acusado; ouvindo as vozes e brados com que os mesmos que hoje o aclamaram rei lhe pediam a morte; ouvindo a sentença com que o iníquo juiz o entregou à vontade de seus inimigos; ouvindo o pregão do malfeitor e alvoroçador do povo; ouvindo as injúrias e blasfêmias dos príncipes dos sacerdotes na cruz, e as dos mesmos ladrões que com ele estavam crucificados, e não ouvindo em todo este tempo uma só palavra de consolação aquele mesmo Senhor que, com palavras e obras, tinha consolado a tantos.

Padeceu no sentido do olfato ou de cheirar, porque morreu entre os ascos e horrores do Monte Calvário, chamado assim das caveiras e ossos dos malfeitores que ali se justiçavam, os quais, ou porque os enterravam mal os algozes, ou porque depois os desenterravam os cães, estavam espalhados por todo o monte, e de mistura com a corrupção do sangue faziam aquele infame lugar horrendo, hediondo, asqueroso e insuportável ao cheiro. E como divino pagador de nossos pecados, não só escolheu o gênero da morte, senão também a circunstância do lugar; para satisfazer nele pelos excessos do olfato, quis que fosse tão infeccionado e malcheiroso.

Padeceu no sentido do gosto, não só pelo fel e vinagre que lhe deram a beber, senão muito mais por aquela ardentíssima sede, maior incomparavelmente que todos os outros tormentos, porque só ela obrigou ao pacientíssimo Redentor pedir alívio. Mas podendo mais o desejo de padecer por nós, que a força da natureza na humanidade enfraquecida e exausta, provou o azedo do vinagre e o amargoso do fel, para mortificar o gosto, para não moderar o ardor e nem aliviar a sede.

Padeceu, finalmente, no sentido do tato, não ficando em todo o seu sagrado corpo parte alguma que não fosse martirizada com particular tormento. Padeceu nos braços as cordas e cadeias; no rosto, as bofetadas; na cabeça, a coroa de espinhos; nos ombros, o peso da cruz; nas costas, os milhares de açoites; nas mãos e nos pés, os cravos e, em todos os ossos, em todos os nervos, em todas as veias, em todas as artérias a suspensão, a aflição, a violência mais que mortal de estar três horas no ar pendente de um madeiro, até expirar nele.

Pois, se estes são os dias em que o meu Deus padeceu tão cruelmente em todos os cinco sentidos, e tão amorosamente por mim, não será justo que eu também em todos os sentidos padeça alguma coisa por ele? Nenhum coração me parece que haverá tão ingrato e tão insensível, que se não deixe mover desta razão: Hoc enim sentite in vobis, quod et in Christo Jesu, diz São Paulo - o que Cristo Jesus sentiu em si, devemos nós sentir em nós - ele por amor de nós, e nós por amor dele. E se a vossa devoção deseja saber e me pergunta de que modo poremos em prática este recíproco sentimento, mortificando-nos também em todos os nossos sentidos, digo primeiramente que mortifiquemos o ver, andando nestes dias com grande modéstia e recato, e negando aos olhos as vistas de todas as criaturas, e apartando-os principalmente daquelas que mais nos agradam e mais nos apartam de Deus. 

Os olhos têm dois ofícios: ver e chorar; e mais parece que os criou Deus para chorar que para ver, pois os cegos não veem e choram. Já que tantos dias damos aos olhos para ver, já que tão cansados andam os nossos olhos de ver, não lhes daremos alguns dias de férias, para que descansem em chorar? Chorem os nossos olhos os nossos pecados nestes dias, e chorem muito em particular o não haverem antes cegado que ofendido a Deus. Ah! Senhor, quanto melhor fora não ter olhos, que ter-vos ofendido com eles!

O sentido de ouvir mortificá-lo-emos, retirando-nos esta semana de todas as práticas e conversações, não só ilícitas e ociosas, mas ainda das lícitas. Troquemos o ouvir pelo ler, lendo todos estes dias algum livro espiritual em que Deus nos fale e nós o ouçamos. A quem não está muito exercitado no orar, é mais fácil o ler, e muitas vezes mais proveitoso. Na oração falamos nós com Deus; na leitura, fala Deus conosco. E de quantas coisas - que fora melhor não ouvir - ouvimos todo o ano aos homens; estes dias ao menos, melhor bem é que ouçamos a Deus.

No sentido do olfato, pouco têm que mortificar os homens nesta terra, porque não vejo nela este vício. Nas mulheres, se nelas há alguma demasia, lembrem-se de que nesta semana derramou a Madalena os seus cheiros e os seus unguentos aos pés de Cristo. E para os aborrecerem e detestarem para sempre, saibam que a última disposição da morte do mesmo Senhor foram estes cheiros. Porque a Madalena derramou os unguentos, se excitou a cobiça de Judas; porque em Judas se excitou a cobiça, tratou da venda; porque vendeu a seu Mestre, o prenderam e o mataram. Por isso o Senhor disse - e este é o sentido literal: Mittens haec unguentum hoc in corpus meum, ad sepeliendum me fecit, como se dissera: Estes unguentos são para a minha sepultura, porque destes unguentos  me há de ocasionar a morte.

O sentido do gosto, ainda que se tenha mortificado por toda a quaresma com o jejum ordinário, nestes dias é bem que haja para ele alguma particular mortificação. Muitos santos do ermo passavam esta semana inteira sem comer, e pessoas de muitos diferentes estados, não no ermo, senão nas cortes, passam em jejum de quinta-feira até sábado. Nos maiores dias desta semana, é padrão das mesas dos grandes príncipes não se porem nelas mais que ervas; para estes dias se fizeram propriamente os jejuns de pão e água: ao menos estes dias não são para regalo. O cordeiro mandava Deus que se comesse com alfaces agrestes, porque o agreste e desabrido no comer destes dias é a melhor disposição para se alimentar na quinta-feira o Divino Cordeiro sacramentado.

O sentido do tato, como o mais vil e mais delinquente que todos, é razão que seja nestes dias mais mortificado. Quando Urias veio do exército com aviso a el-rei Davi, disse-lhe o rei que fosse descansar à sua casa. E ele, que respondeu? Pois bem, Senhor: 'está o meu general dormindo sobre a terra na campanha, e eu que me haja de deitar em cama? Não farei tal desatino'. E foi-se deitar em uma tábua no corpo da guarda. A cama em que dormiu o último sono da morte o nosso Jesus, bem sabeis qual foi. Pois, será justo que quando ele tem por cama o duro madeiro da cruz, descanse o nosso corpo tão regaladamente como nos outros dias? 

Alguma diferença é bem que haja nestes dias. Ao menos o nosso rei e os seus filhos, de quinta-feira até domingo não se deitam em cama, nem se assentam, senão no chão, assistindo sempre ao Senhor, sem sair nunca da Capela Real, nem de dia, nem de noite. Estas são as noites e os dias para que se fizeram as penitências: para estas noites se fizeram os pés descalços, para estas noites as disciplinas, e para estes dias e para estas noites os cilícios. Que poucos cilícios deve haver no Maranhão? Não vos escuseis com isto.

('Sermão de Dia de Ramos', Pe. Antônio Vieira, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656)

domingo, 28 de março de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: DOMINGO DE RAMOS

  

'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?' (Sl 21)

 28/03/2021 - Domingo de Ramos

18. 'HOSANA AO FILHO DE DAVI!'


No Domingo de Ramos, tem início a Semana Santa da paixão, morte e ressurreição de Nosso senhor Jesus Cristo. Jesus entra na cidade de Jerusalém para celebrar a Páscoa judaica com os seus discípulos e é recebido como um rei, como o libertador do povo judeu da escravidão e da opressão do império romano. Mantos e ramos de oliveira dispostos no chão conformavam o tapete de honra por meio do qual o povo aclamava o Messias Prometido: 'Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito seja o reino que vem, o reino de nosso pai Davi! Hosana no mais alto dos céus!' (Mc 11, 9 - 10).

Jesus, montado em um jumento, passa e abençoa a multidão em polvorosa excitação. Ele conhece o coração humano e pode captar o frenesi e a euforia fácil destas pessoas como assomos de uma mobilização emotiva e superficial; por mais sinceras que sejam as manifestações espontâneas e favoráveis, falta-lhes a densidade dos propósitos e a plena compreensão do ministério salvífico de Cristo. Sim, eles querem e preconizam nEle o rei, o Ungido de Deus, movidos pelas fáceis tentações humanas de revanche, libertação, glória e poder. Mas Jesus, rei dos reis, veio para servir e não para reinar sobre impérios forjados pelos homens. '... meu reino não é deste mundo' (Jo 18, 36). Jesus vai passar no meio da multidão sob ovações e hosanas de aclamação festiva; Jesus vai ser levado sob o silêncio e o desprezo de tantos deles, uns poucos dias depois, para o cimo de uma cruz no Gólgota.

Neste Domingo de Ramos, o Evangelho evoca todas as cenas e acontecimentos que culminam no calvário de Nosso Senhor Jesus Cristo: os julgamentos de Pilatos e Herodes, a condenação de Jesus, a subida do calvário, a crucificação entre dois ladrões e a morte na cruz...'Eli, Eli, lamá sabactâni?' (Mt 27, 46). Na paixão e morte de cruz, Jesus revela seu amor desmedido pela criação do Pai e desnuda a perfídia, a ingratidão, a falsidade e a traição dos que se propõem a amar com um amor eivado pelos privilégios e concessões aos seus próprios interesses e vantagens. 

A fé é forjada no cadinho da perseverança e do despojamento; sem isso, toda crença é superficial e inócua e, ao sabor dos ventos, tende a se tornar em desvario. Dos hosanas de agora ao 'Seja crucificado!' (Mt 27, 22 - 23) de mais além, o desvario humano fez Deus morrer na cruz.  O mesmo desvario, o mesmo ultraje, a mesma loucura que se repete à exaustão, agora e mais além no mundo de hoje, quando, em hosanas ao pecado, uma imensa multidão, em frenesi descontrolado, crucifica Jesus de novo em seus corações! 

sábado, 27 de março de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: SENHOR DOS PASSOS


Nosso Senhor dos Passos é a devoção celebrada pela Santa Igreja, desde a Idade Média, em memória à Via Crucis percorrida por Jesus na sua Paixão e Morte no Calvário. Jesus é representado com a cruz às costas, símbolo maior da fé cristã: pela cruz, fomos resgatados do pecado; pela cruz, nos foi legada a salvação da humanidade. A devoção teve início com a visita dos cruzados aos lugares santos do caminho para o Calvário percorrido por Jesus, fixados nas 14 estações da Via sacra, no século XVI:

I. Jesus é condenado à morte
II. Jesus carrega a Cruz às costas
III. Jesus cai pela primeira vez
IV. Jesus encontra a sua Mãe
V. Simão Cirineu ajuda Jesus a carregar a Cruz
VI. Verônica limpa o rosto de Jesus
VII. Jesus cai pela segunda vez
VIII. Jesus encontra as mulheres de Jerusalém
IX. Terceira queda de Jesus
X. Jesus é despojado de suas vestes
XI Jesus é pregado na Cruz
XII. Morte de Jesus na Cruz
XIII. Descida do corpo de Jesus da Cruz
XIV. Sepultamento de Jesus

Neste tempo da Quaresma e às vésperas da Semana Santa, esta devoção é comumente celebrada sob a forma de duas procissões distintas:

(i) a primeira é a chamada 'Procissão do Depósito' (comumente realizada no 'Sábado dos Passos', que antecede o Domingo de Ramos), em que a imagem velada de Nosso Senhor dos Passos é conduzida até uma determinada igreja (procissão similar é comumente realizada no dia anterior, com a imagem de Nossa Senhora das Dores);

(ii) a segunda é a chamada 'Procissão do Encontro', na qual a imagem do Senhor dos Passos é levada ao encontro de sua Mãe Santíssima (representada em outra procissão, vinda de direção diferente, como Nossa Senhora das Dores), que haviam sido previamente encerradas em igrejas próximas, pelas respectivas procissões de depósito.

A procissão do encontro, em muitas regiões, acontece na Quarta-feira Santa à noite; em outras, é comumente realizada na tarde do Domingo de Ramos. De acordo com uma tradição muito antiga, são as mulheres que devem fazer a procissão que conduz a imagem de Nossa Senhora das Dores, com cantos penitenciais e com figuras bíblicas representando Maria Madalena, Verônica e outras mulheres que acompanharam a caminhada de Jesus para o Calvário. A outra procissão fica ao encargo dos homens, que carregam a imagem do Senhor dos Passos, figura de Jesus Cristo coroado de espinhos e carregando uma cruz. 

As duas procissões, convergem, então, para o local do encontro, onde é proferido o chamado 'Sermão do Encontro', no qual são relembrados os fatos ocorridos na Sexta-feira Santa e se recorda as dores de Nossa Senhora e o sofrimento de Jesus, conclamando o povo à penitência e à conversão. Nesta exortação, o pregador proclama o chamado 'Sermão das Sete Palavras', alusão direta às sete breves frases pronunciadas por Jesus durante a sua crucificação: 

1. 'Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem' (Lc 23,34 a);
2. 'Hoje estarás comigo no paraíso' (Lc 23,43);
3. 'Mulher eis aí o teu filho, filho eis aí a tua mãe' (Jo 19,26-27);
4. 'Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonastes?!' (Mc 15,34);
5. 'Tenho sede' (Jo 19,28 b);
6. 'Tudo está consumado' (Jo 19,30 a);
7. 'Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito' (Lc 23,46 b).

Após o sermão, Verônica entoa um hino e mostra a toalha ensanguentada com a face de Cristo. A parte final da procissão consiste na condução conjunta de ambas as imagens até um destino final, representando os Passos da Paixão no caminho do Calvário. O evento é, então, finalizado, com o chamado 'Sermão do Calvário', que proclama as dores e sofrimentos de Jesus ao longo de sua condenação, paixão, crucificação e morte na cruz.

ORAÇÕES A NOSSO SENHOR DOS PASSOS

'Ó Jesus, relembro tua Paixão, teu Calvário e tuas dores. Olhando as imagens do Senhor carregando a Cruz, imagens com as quais te invocamos sob o título de Nosso Senhor dos Passos e veneramos como símbolos de teu sacrifício e representação de teu ato de amor salvífico, que foi teu sacrifício na cruz, te pedimos como teu discípulo Pedro: Senhor, salva-nos! Salva-nos por tua Cruz, salva-nos por teu sangue; salva-nos por tua misericórdia; salva-nos por teu amor e cura-nos de nossas feridas tanto físicas quanto espirituais, emocionais e psíquicas. Amém'.

'Meu Jesus, Senhor dos Passos, açoitado, coroado de espinhos, escarnecido e cuspido, condenado à morte, carregado com a cruz, caído por terra, pregado no madeiro! Vós sois a Vítima das nossa iniquidades. Eu quero acompanhar os vossos dolorosos passos rumo ao Calvário, em cujo cimo consumiu-se a vossa vida. Mas, do vosso sacrifício, brotou a nossa salvação. Senhor dos Passos, perdoai as minhas maldades e apagai os pecados de todo o mundo. Meu Jesus, Senhor dos Passos, tende piedade de nós. Amém'.