terça-feira, 30 de março de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: SERMÃO DO DIA DE RAMOS (II)


E a alma, o que há de fazer? O corpo, imitar; a alma, meditar: o corpo com os ramos da palma, a alma com os da oliveira. A alma nestes santos dias há de fazer do coração um Monte Calvário, levantar nele um Cristo crucificado, e pôr-se desta maneira a contemplar suas dores. Oh! quem pudera explicar-se agora com o pensamento, e falar com o silêncio! Quando os amigos de Jó o foram visitar nos seus trabalhos - diz a Escritura Sagrada - ficaram uma semana inteira olhando só para ele, sem falarem palavra. Assim o hão de fazer nossas almas esta semana, se são amigas de Jesus: olhar, calar e pasmar. Oh! que vista! Oh! que silêncio! Oh! que admiração! Oh! que pasmo! Só três coisas dou licença a nossas almas que se possam perguntar a si mesmas no meio desta suspensão: Quem padece? O que padece? Por quem padece? E que meditação esta para uma eternidade!

Quem padece? Deus, aquele ser eterno, infinito, imenso, todo poderoso, aquele que criou o céu e a terra com uma palavra, e o pode aniquilar com outra; aquele, diante de cujo acatamento, os principados, as potestades e as dominações, e todas as hierarquias estão tremendo. Este Deus, cuja grandeza; este Deus, cuja majestade; este Deus, cuja soberania incompreensível só ele conhece inteiramente, e todos os entendimentos criados com infinita distância de nenhum modo podem alcançar, este, este é o que padece. 

Aqui se há de fazer uma pausa, e pasmar. São Bernardo, cheio de pasmo e assombro nesta mesma consideração, rompeu dizendo: Ergo ne credendum est, quod iste sit Deus, qui flagellatur, qui conspuitur, qui crucifigitur? [por que não cremos que é esse Deus que é flagelado, que é cuspido, que é crucificado?] É possível que se há de crer que este, que padece tantas injúrias e afrontas e tal morte é aquele mesmo Deus imortal, impassível, eterno, que não teve princípio, e é o princípio e fonte de todo ser? Este, este é; que nem ele seria Deus, nem a nossa fé seria fé, se assim não fosse, e nós não creríamos o que excede toda a capacidade humana. Por isso Isaías, quando entrou a falar da Paixão, como profeta que entre todos era o mais eloquente, o exórdio por onde começou foi aquela pergunta: Quis credidit auditui nostro? [quem acreditou na nossa pregação?]. Quem haverá que dê crédito ao que há de ouvir de minha boca? Tão alheio é quem padece do que padece, e este é Deus. Vede se há bem de que pasmar aqui.

Depois de considerarmos que é Deus quem padece, então se segue a consideração do que padece. E não só havemos de trazer à memória o que já vimos que padeceu exteriormente em todos os sentidos do corpo, mas muito mais devemos considerar e ponderar o que padeceu no interior da alma e em todas suas potências. Com dois nomes, ou com duas semelhanças nos declarou nosso amorosíssimo Redentor o que padeceu em sua Paixão, com nome e semelhança de cálice, quando disse a São Pedro: Calicem, quem dedit mihi Pater, non vis ut bibam illum? - o cálice que me deu o meu Pai, não queres que o beba? E com nome e semelhança de Batismo, quando disse a todos os discípulos: baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor usque dum perficiatur - Eu hei de ser batizado em um batismo, o qual desejo com grandes ânsias e aperto do coração até que chegue. 

De sorte que declarou o Senhor o que havia de padecer por nós, já chamando-lhe cálice, já batismo, e por quê? Porque o batismo recebe-se por fora, o cálice bebe-se por dentro, e Cristo, Redentor nosso, em toda sua Paixão não só padeceu por fora os martírios do corpo, senão também, e muito mais, por dentro os tormentos da alma. Por fora padeceu os tormentos dos açoites, dos espinhos, dos cravos, da lança, que o banharam todo em sangue, e por isso lhes chamou Batismo; por dentro, padeceu as tristezas, os tédios, os temores, as angústias e agonias, que, sem ferro, lhe tiraram também sangue no Horto, e lhe penetravam mortalmente a alma: Tristis est anima mea usque ad mortem [Minha alma está triste até a morte (Mc 14, 34].

Oh! quem pudesse entrar profundamente no interior da alma de Jesus, e entender o que naquele consistório sacratíssimo e secretíssimo das suas três potências passava e sofria por tantas horas! A memória, desde o princípio do mundo, representava os pecados de todos os homens, por quem satisfazia a divina justiça; o entendimento ponderava o pouco número dos mesmos homens que se haviam de aproveitar do preço infinito daqueles tormentos, e a vontade se desfazia com dor de ver perder tantas almas por sua culpa, sem achar consolação alguma a tamanha perda; e esta era a tristeza que ocupava toda a alma do Salvador e com três cravos mais agudos e penetrantes a crucificava. Aqui havemos de fazer a segunda pausa, e pasmar tanto daquele infinito amor, como da nossa infinita cegueira. Oh! Senhor, quantos pode ser que vísseis então, dos que agora se acham nesta mesma igreja, que, por que haviam de desprezar e condenar as suas almas, agonizavam a vossa! Considere cada um se porventura, ou eterna desventura, é algum destes, e vejam bem o seu perigo enquanto têm tempo.

Este é o Deus que padece, estas são as penas e dores que padece, e só resta ver por quem padece. Se a fé me não ensinara outra coisa, cuidara eu que padecia Deus pelo céu, porque vejo o sol eclipsado e coberto de luto; cuidara que padecia pela terra, porque a vejo tremer e arrancar-se de seu próprio centro; cuidara que padecia pelas pedras, porque as vejo quebrarem-se umas contra as outras e abrirem-se as sepulturas; cuidara que padecia pelo Templo de Jerusalém, porque vejo rasgar-se de alto a baixo o véu do Sancta Sanctorum; cuidara que padecia por este mundo elementar, porque vejo confusos, perturbados, atônitos e com prodígios de sentimento e assombro todos os elementos. 

Mas não são estas as criaturas por quem padece Deus, posto que todas confessam que padece o seu Criador; e, como seres irracionais e insensíveis, quiseram acabar como Ele quando o veem morrer. Quem são logo aqueles por quem padece o Autor da natureza, e por quem morre o Autor da vida? Sou eu, sois cada um de vós, e somos todos os homens. Por nós, e só por nós Deus padece; por nós, e só por nós padece quanto padece. Por nós que, depois de nos criar, o não respeitamos; por nós que, depois de nos sustentar, o não servimos; por nós que, depois de nos remir, o não obedecemos; por nós que, depois de morrer por nosso amor, o não amamos; por nós que, depois de se pôr em uma cruz por nós, o tornamos a crucificar mil vezes; por nós que, esperando-nos assim, e chamando-nos com os braços abertos, não queremos acudir às suas vozes; por nós, enfim, que, sabendo que nos há de julgar e nos prometeu o céu se o não ofendermos, queremos antes o inferno sem ele, que o céu com ele. Isto é o que faz todo o homem que peca mortalmente, e isto o que continua a fazer enquanto se não se livra do pecado, para que vejais se tem razão, não só de pasmar, mas de perder o juízo.

('Sermão de Dia de Ramos' - Parte II, Pe. Antônio Vieira, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656)