quinta-feira, 29 de agosto de 2019

SUMA TEOLÓGICA EM FORMA DE CATECISMO (XXXVII)

TERCEIRA PARTE

JESUS CRISTO

Único caminho para o homem voltar para Deus

I

O MISTÉRIO DE JESUS CRISTO OU DA ENCARNAÇÃO TEM POR FIM CONDUZIR O HOMEM PARA DEUS

Que significa o mistério incompreensível da Encarnação?
Que a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Verbo e Filho único de Deus, unido desde toda a Eternidade ao Pai e ao Espírito Santo na indivisão de Deus, criador e governador soberano do universo, se encarnou e nasceu da Santíssima Virgem Maria, viveu a nossa vida mortal, evangelizou o povo judeu da Palestina ao qual havia sido pessoalmente enviado por seu Pai; foi desprezado, vendido e entregue ao governador romano Pôncio Pilatos, condenado à morte, crucificado e sepultado; desceu aos infernos, e ao terceiro dia ressuscitou dentre os mortos; subiu aos céus quarenta dias depois, e está assentado à direita de Deus Pai, donde governa a Igreja por Ele fundada, à qual enviou o seu Espírito, que é também o do Pai, santificando-a com os sacramentos da graça e dispondo-a para a segunda vinda no fim dos tempos; então julgará os vivos e os mortos, depois de os ressuscitar; e estabelecerá a separação definitiva entre os bons, que com Ele gozarão eternamente as delícias de seu Pai, e os maus, que feridos com a sua maldição, receberão digno castigo nos suplícios do fogo eterno.

II

CONVENIÊNCIA, NECESSIDADE E HARMONIA DA ENCARNAÇÃO

Harmoniza-se bem a Encarnação com o que sabemos a respeito de Deus?
Sim, Senhor; porque sabemos que Deus é o bem por essência; é próprio e característico do bem o comunicar-se e Deus não pode comunicar-se às criaturas de modo mais inefável e sublime que no mistério da Encarnação (1,1)*.

Foi necessária a Encarnação do Filho de Deus?
Considerada em si mesmo, não Senhor; porém, suposto que o gênero humano caiu do primitivo estado de justiça original; se se queria reabilitá-lo e, sobretudo, dar satisfação completa e abundante por aquele pecado, era absolutamente indispensável que um Deus- Homem tomasse a seu cargo a empresa (1, 2).

Logo, o motivo da Encarnação foi remir os homens do pecado?
Sim, Senhor (I, 2, 3).

Nestas condições, por que não se encarnou o Filho de Deus, desde o princípio da queda dos nossos primeiros pais?
Porque era necessário que o homem reconhecesse a sua desdita e a necessidade de um Deus Salvador e para dar tempo aos anúncios e conveniente preparação ou apresto de sua vinda (1, 5, 6).

Em que consiste essencialmente o mistério da Encarnação?
Na união substancial e indissolúvel das naturezas divina e humana em unidade de pessoa divina, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, conservando cada natureza todas as suas propriedades (II, 1,6).

Por que se encarnou a pessoa do Filho com preferência à do Pai e à do Espírito Santo?
Porque, sendo o Filho, Verbo de Deus, e simbolizando o Verbo, por apropriação, a ciência e a sabedoria divinas, pelas quais todas as coisas foram feitas, a Ele parece que pertencia reparar os estragos que na natureza humana havia produzido o pecado; e, além disso, porque, procedendo do Pai, Este podia enviá-Lo e Ele por sua vez enviar o Espírito Santo (III, 8).

III

DO QUE JESUS CRISTO SE APROPRIOU OU TOMOU NO MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO

Que significam as expressões: o Filho de Deus se encarnou, o Verbo se fez carne, se fez homem, etc.?
Que assumiu e se apropriou da nossa natureza humana, concreta, individual, tal como se encontra nos descendentes do primeiro homem depois do pecado, para incorporá-la à pessoa divina (IV, 1-6).

Logo no Verbo Encarnado há indivíduo humano?
De modo algum; há natureza individual, não indivíduo ou pessoa humana, porque esta natureza está individualizada na Pessoa do Verbo, o Filho de Deus (IV, 3).

A natureza humana, que o Filho de Deus assumiu, consta dos dois elementos essenciais que integram a de todos os outros homens?
Sim, Senhor (V, 1-4).

Logo, o Filho de Deus Encarnado tem corpo, carne, ossos, membros, sentidos e órgãos, como nós?
Sim, Senhor (V, 1, 2).

Tem, como nós, alma dotada de inteligência e vontade com as demais faculdades? 
Sim, Senhor; tem alma exatamente igual a que descrevemos no estudo do homem (V, 3, 4).

O Filho de Deus incorporou simultaneamente todos os elementos que integram a natureza humana individual?
Sim, Senhor; porém com certa ordem (VI, 1-6).

Em que consiste esta ordem?
Em que tomou o corpo mediante a alma, e a alma e suas potências mediante o espírito e o corpo, alma e espírito mediante a natureza humana por eles formada (VI, 1-5).

A união da natureza humana com a pessoa do Verbo realizou-se direta e imediatamente, sem intervenção, nem interposição de alguma coisa criada?
Sim, Senhor; porque o fim da união é a comunicação do ser divino à natureza humana (VI, 6).

referências aos artigos da obra original

('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

28 DE AGOSTO: SANTO AGOSTINHO DE HIPONA


'...Inquieto está o nosso coração enquanto não repousar em Ti'

Dia 28 de agosto é a festa de um dos grandes santos da Igreja, um dos fundadores da chamada Patrística (a fase inicial da formação da Teologia Cristã e seus dogmas). Santo Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, na pequena cidade de Tagaste, perto de Hipona, na Numídia (atual Argélia), filho de Patrício e Mônica (santa da Igreja Católica, cuja festa é celebrada em 27 de agosto). Da vida promíscua ao desvario da sua inclusão em seitas maniqueístas, Santo Agostinho experimentou desde a indiferença até a descrença completa nas coisas de Deus. A resposta da sua mãe, profundamente dolorosa diante a perspectiva da perda eterna da alma do filho amado, foi sempre a mesma: oração, oração, oração!

E a conversão de Agostinho foi lenta e profunda: no ano de 382, em Milão, então com 32 anos de idade, o santo foi finalmente batizado, junto com um amigo e o seu filho Adeodato (que morreria pouco tempo depois) por Santo Ambrósio. E que conversão! Sobre o tapete dos pecados passados, da vida desregrada da juventude (que descreveria com imenso desgosto em sua obra máxima ‘Confissões’), nasceria um santo dedicado por inteiro à glória de Deus, pregando como sacerdote e, mais tarde, como bispo de Hipona, que a verdadeira fonte da santidade nasce, renasce e se fortalece na humildade. Combateu com tal veemência as diversas frentes de heresias do seu tempo, incluindo o arianismo e o maniqueísmo, que foi alcunhado de Escudo da Fé e Martelo dos Hereges. Santo Agostinho, Doutor da Igreja e Defensor da Graça, morreu em 28 de agosto de 430, aos 76 anos de idade.

Excertos da Obra: 'Confissões', de Santo Agostinho:

'Amo-te, Senhor, com uma consciência não vacilante, mas firme. Feriste o meu coração com a tua palavra, e eu amei-te. Mas eis que o céu, e a terra, e todas as coisas que neles existem me dizem a mim, por toda a parte, que te ame, e não cessam de o dizer a todos os homens, de tal modo que eles não têm desculpa. Tu, porém, compadecer-te-ás mais profundamente de quem te compadeceres,e concederás a tua misericórdia àquele para quem fores misericordioso: de outra forma, é para surdos que o céu e a terra entoam os teus louvores. Mas que amo eu, quando te amo? Não a beleza do corpo, nem a glória do tempo, nem esta claridade da luz, tão amável a meus olhos, não as doces melodias de todo o gênero de canções, não a fragrância das flores, e dos perfumes, e dos aromas, não o maná e o mel, não os membros agradáveis aos abraços da carne. Não é isto o que eu amo, quando amo o meu Deus, E, no entanto, amo uma certa luz, e uma certa voz, e um certo perfume, e um certo alimento, e um certo abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume, alimento, abraço do homem interior que há em mim, onde brilha para a minha alma o que não ocupa lugar, e onde ressoa o que o tempo não rouba, e onde exala perfume o que o vento não dissipa, e onde dá sabor o que a sofreguidão não diminui, e onde se une o que o que a saciedade não separa. Isto é o que eu amo, quando amo o meu Deus'.

'Aterrorizado com os meus pecados e com o peso da minha miséria, tinha considerado e meditado no meu coração fugir para a solidão, mas tu proibiste-me e encorajaste-me, dizendo: Cristo morreu por todos, a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele que morreu por eles. Eis, Senhor, que eu lanço em ti a minha inquietação, a fim de que viva, e considerarei as maravilhas da tua Lei. Tu conheces a minha incapacidade e a minha fragilidade: ensina-me e cura-me. O teu Unigênito, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência, redimiu-me com o seu sangue. Não me caluniem os soberbos, porque penso no preço da minha redenção, e como, e bebo, e distribuo, e, pobre, desejo saciar-me dele entre aqueles que dele se alimentam e saciam: e louvam o Senhor aqueles que o procuram'.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

FOTO DA SEMANA

'Uma mulher virtuosa, quem pode encontrá-la? Superior ao das pérolas é o seu valor. Confia nela o coração de seu marido, e jamais lhe faltará coisa alguma. Ela lhe proporciona o bem, nunca o mal, em todos os dias de sua vida' (Pv 31, 10-12)

COMPÊNDIO DE SÃO JOSÉ (XIX)


91. Se São José é cultuado nas igrejas, o que dizer de sua presença na Basílica de São Pedro no Vaticano? 

Se São José foi proclamado por Pio IX, em 1870, Patrono da Igreja Universal com o Decreto Quemadmodum Deus e se o mesmo Papa, em 1847, tinha estendido a Festa do Patrocínio para toda a Igreja Universal com o Decreto Inclytus Patriarcha Joseph, quis também o Papa João XXIII, em 19 de março de 1963, que no maior templo do cristianismo houvesse um altar com sua imagem para acender ainda mais a devoção a São José, Protetor da Santa Igreja e também do Concílio Vaticano II. Além desta presença central na basílica vaticana, encontramos um mosaico de 1647 representando o 'sonho de São José', onde o Anjo revela a José a prodigiosa concepção de Maria por obra do Espírito Santo. Também na chamada 'Capela do Crucifixo', foi colocado em 19 de março de 1851 uma tela que representa São José com o Menino Jesus nos braços. Encontramos também na parte esquerda do Colonnato del Bernini, quase no início da praça de São Pedro, uma belíssima estátua de São José representando um homem vigoroso, com os olhos voltados para os céus, com a mão direita sobre o peito e tendo na esquerda um bastão florido. Uma outra representação no átrio da basílica apresenta a 'morte de São José'. Tudo isto mostra a necessidade de dar a São José um lugar de destaque, correspondente à sua dignidade. Digno de consideração é o fato que no altar de São José, 'Patrono da Igreja Universal', é celebrada diariamente uma missa para a paz. 

92. Dentre as várias representações que a arte fez sobre São José, quais são as que chamam mais atenção? 

Há algumas raras iconografias sobre São José, não tanto pela beleza da arte, mas pelo motivo representado, como aquela que enfoca José ensinando a Torá ou a Lei a Jesus, fato raro, porém em perfeita harmonia com a tarefa que a Sagrada Escritura e a tradição hebraica asseguram ao pai, ou seja, de ensinar ao filho as leis divinas. É fácil encontrar José representado entre as suas ferramentas na carpintaria, porém é raro vê-lo como um 'instruído', um conhecedor das Escrituras. Esta nova visão pela arte começou no Renascimento (1450-1600), onde ele é representado com um lírio na mão ou lendo. Desta forma, o bastão com o qual se identificava o nosso santo não foi a única forma que os artistas encontraram para representá-lo.

93. Ao representar São José lendo um livro, os artistas abandonaram as características onde ele é representado com o bastão florido, o lírio ou no trabalho da carpintaria? 

Não. Encontramos diversas obras onde São José é reconhecido pelo lírio na mão direita e tendo um livro na mão esquerda, ou ainda representado sentado ao lado de sua mesa de carpinteiro cheia de ferramentas e concentrado, à luz de uma vela, na leitura de um livro. Um outro afresco de 1524 representa a Virgem com o Menino à esquerda de José com uma auréola, tendo um ramo florido na mão direita e de novo um livro fechado na mão esquerda. Por fim, encontra-se na National Gallery de Londres uma obra atribuída a João Batista Moroni, morto em 1578, onde José é representado como jovem com um turbante no lugar da auréola, segurando na mão direita um ramo florido e na esquerda um livro fechado. Tudo isso indica que, embora os artistas quiseram exprimir outros particulares da vida de José, não esqueceram de realçar conjuntamente aqueles que lhes foram mais característicos. 

94. Podemos afirmar que a arte sacra evolui em relação a São José na medida em que a Teologia e a devoção josefina também evoluíram? 

Em certo sentido sim, pois nos séculos em que a teologia de São José estava ainda em germe, a figura do nosso santo é enfocada no conjunto das cenas evangélicas da infância de Jesus; depois, na medida em que as reflexões teológicas se concentram sobre ele, a arte lentamente começa a representá-lo intimamente ligado à Sagrada Família, onde vem reconhecida a sua missão de esposo e chefe e em atitudes paternas para com Jesus. Um bom exemplo disto é o quadro de Gabriel Wüger de 1892 onde São José é representado com um rosto jovem, com uma farta barba e cabelo, olhar sereno e voltado para o Menino, o qual é sustentado sem dificuldades no seu braço esquerdo, enquanto Jesus tem a mão apoiada no peito de José e com a outra acaricia o seu rosto num gesto de delicadeza, confiança, respeito, amor e admiração. Portanto, evidencia fortemente a paternidade de José. Por outro lado, sua cabeça é ornada com uma auréola assinalando o prêmio que recebeu de Deus pelas suas virtudes e também para realçar sua realeza humana, descendente de Davi, de estirpe real, a qual José transmitiu a Jesus dando-lhe o título de 'Filho de Davi'. José é ilustrado ainda neste quadro com o bastão na mão direita, símbolo de sua eleição divina e de sua autoridade: o bastão florido com um ramo de amendoeira indicam a sua vigilância sobre a Sagrada Família. O lírio encontra-se aos pés de São José, perto das ferramentas de trabalho, para indicar que a virtude de sua castidade e a fadiga diária foram os instrumentos com os quais ele exerceu sua paternidade. 

95. A arte moderna continua acompanhando a evolução da teologia josefina? 

Podemos dizer que sim e um exemplo significativo disso encontra-se no grandioso afresco que ocupa a parte central da capela da Casa Geral dos Oblatos de São José em Roma, executado pelo pintor romano Pagliardini no ano de 1960, no clima de preparação do Concilio Vaticano II, cujo tema é expresso no afresco com a frase: quasi arcus refulget Joseph - José resplandece como um arco-íris, uma expressão acomodada do livro do Eclesiástico (Eclo 50,8), num elogio ao sumo sacerdote Simeão II. O arco-íris é um símbolo conhecido na Bíblia como sinal de aliança de Deus com o povo depois do dilúvio. A presença de São José na história da salvação dá-se no momento em que Deus faz pessoalmente a sua aliança com os homens através do dom de seu Filho; por isso, José ocupa o centro da cena sustentando o Filho de Deus com seu braço vigoroso, tendo na mão esquerda o lírio, símbolo de sua castidade. O Menino se agarra confiante em José que manifesta uma expressão de tranquila segurança. Dois Anjos seguram uma faixa com a frase: Te Joseph celebrent agmina coelitum - 'te celebrem, ó José, as cortes celestes', um convite às potestades celestes para festejarem José, o arco-íris da paz. À esquerda uma outra frase: Protector Sanctae Ecclesiae - Protetor da Santa Igreja e o espaço é ocupado por João XXIII, apresentando a São José a Igreja representada pela Basílica de São Pedro, ele que o declararia, depois, em 19 de março de 1961, o Protetor do Concílio Vaticano II. O quadro apresenta ainda outras representações referentes ao patrocínio de São José sobre a Congregação dos Oblatos de São José. Esta obra de notável valor artístico indica a consonância da arte com a atual teologia josefina.

('100 Questões sobre a Teologia de São José', do Pe. José Antonio Bertolin, adaptado)

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

SOBRE O ANIQUILAMENTO INTERIOR

Quando nos falam de renunciarmos a nós mesmos, de aniquilar-nos; quando nos dizem ser esse o fundo da moral cristã, consistir nisso a adoração em espírito e verdade, tal palavra nos parece dura e até injusta: não queremos ouvi-la e repelimos quem no-lo prega da parte de Deus. Convençamo-nos, uma vez por todas, de que esse preceito nada de injusto encerra e na prática é mais suave do que pensamos. Em seguida, humilhemo-nos se nos faltar coragem para pô-lo em prática e, ao invés de condená-lo, condenemos a nós mesmos.

Que nos pede o Senhor, ordenando que nos aniquilemos? Pede fazermos justiça a nós mesmos, colocarmo-nos em nosso lugar e reconhecermo-nos tais quais somos... Tudo quanto possuo, tudo quanto sou, não pertence propriamente a mim; que só tenho de meu o nada e a quem nada se pode tirar. Se assim encarássemos, sempre do lado de Deus e jamais do nosso, tudo que nos acontece, não seríamos tão melindrosos, tão sensíveis, tão sujeitos a nos queixarmos e irritarmos. Toda a desordem vem sempre de supormos que somos alguma coisa, de nos arrogarmos direitos que nos falecem, de em tudo começarmos sempre por nos considerarmos diretamente e não prestarmos atenção aos direitos e aos interesses de Deus, os únicos lesados no que nos concerne.

Confesso que isso é de prática muito difícil e para consegui-lo faz-se mister renunciarmos, absoluta e completamente, a nós mesmos. Mas, em suma, é justo e a razão coisa alguma pode opor. Deus, portanto, nada exige de nós que não seja razoável, quando a seu respeito e a respeito do próximo quer que nos portemos como nada sendo, nada tendo, nada pretendendo... Acrescento que semelhante forma de aniquilamento, contra a qual a natureza tanto se insurge e clama, ao invés de tão penosa como imaginamos, é até suave, porque antes de tudo Jesus Cristo a declarou tal: 'Tomai sobre vós o meu jugo', disse Ele; 'que é doce e leve'. Por mais pesado que seja esse jugo, Deus o suaviza para os que o tomam de boa vontade e consentem em carregá-lo por seu amor. O amor não nos impede de sofrer, mas faz como que amemos o sofrimento e torna-o preferível e a todos os prazeres.

A recompensa presente do aniquilamento é a paz do coração, a calma das paixões, a cessação de todas as agitações do espírito, das murmurações, das revoltas interiores. Vejamos, em pormenores, a prova disto. Qual é o maior mal do sofrimento? Não é a própria dor, é a revolta, a sublevação interior que a acompanha. A alma aniquilada sofreria todos os males imagináveis sem perder o repouso conexo ao seu estado: é fato de experiência. Custa-nos conseguir o nosso aniquilamento, temos que fazer grandes esforços sobre nós mesmos: mas também gozamos da paz na proporção das vitórias alcançadas.

O hábito de renunciarmos a nós mesmos, de não atendermos ao nosso eu, torna-se cada dia mais fácil; admiramo-nos de que não nos faça mais sofrer, no fim de certo tempo, aquilo que nos parecia intolerável, assustava a imaginação, sublevava as paixões e punha a natureza em estado violento. Nos desprezos, nas calúnias e humilhações, o que no-las torna tão duras de suportar é o nosso orgulho; é o nosso desejo de ser estimados, considerados, tratados com certas atenções; é o pavor que temos das zombarias e do desprezo do próximo. Eis o que nos agita e enche de indignação, o que nos torna a vida amarga e insuportável. Trabalhemos com afinco para aniquilar-nos; não demos alimento nenhum ao orgulho, deixemos caírem todos os artifícios de estima e amor próprio, aceitemos interiormente as pequenas mortificações que se apresentarem.

Pouco a pouco chegaremos a não mais nos inquietarmos com o que se pensa e diz de nós, nem com o modo pelo qual nos tratam. Um morto nada sente; para ele não há honra nem reputação; os louvores e as injúrias lhe são indiferentes. A maior parte dos sofrimentos e desgostos por que passamos no serviço de Deus provém de não estarmos bastante aniquilados em sua presença, de conservarmos certa vida própria no meio dos nossos exercícios, de imiscuir-se um secreto orgulho em nossa devoção. E por isso não somos indiferentes às consolações e à sua falta; sofremos quanto Deus parece afastar-se de nós; esgotamo-nos em desejos e esforços tendentes a fazê-lo voltar; ficamos abatidos e desolados, se o afastamento perdura muito. 

Por isso também temos falsos alarmes a respeito do nosso estado. Afigura-se-nos estarmos mal com Deus porque Ele nos priva de algumas doçuras sensíveis. Julgamos más as nossas comunhões, porque as fazemos sem gosto, a mesma coisa acontecendo quanto às nossas leituras, orações e outras práticas. Sirvamos a Deus com espírito de aniquilamento; sirvamo-lo por Ele e não em atenção a nós; sacrifiquemos os nossos interesses à sua glória e ao seu bel-prazer; então, estaremos sempre contentes com o seu modo de tratar-nos, persuadidos de que nada merecemos e de ser imensa a bondade de sua parte, não digo aceitando, porém suportando os nossos serviços.

Nas grandes tentações contra a pureza, a fé e a esperança, o que há de mais penoso para nós não é precisamente o temor de ofender a Deus, senão o medo de perder-nos, ofendendo-o. É o nosso interesse que nos ocupa muito mais do que a sua glória. Eis a razão de ter um confessor tanta dificuldade em tranquilizar-nos e reduzir-nos à obediência. Cremos que ele nos engana, transvia e perde, porque nos obriga a deixar de lado as nossas vãs apreensões. Aniquilemos o nosso conceito; não julguemos por nós mesmos. Encontraremos a paz e paz perfeita, no esquecimento total de nós mesmos. Nada há no céu, na terra, nem do inferno, capaz de perturbar a alma verdadeiramente aniquilada.

(Excertos da obra 'Manual das Almas Interiores', do Pe. Grou, 1932)

domingo, 25 de agosto de 2019

PÁGINAS COMENTADAS DOS EVANGELHOS DOS DOMINGOS

Filho, realiza teus trabalhos com mansidão e serás amado mais do que um homem generoso. Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade e assim encontrarás graça diante do Senhor (Eclo 3, 19-20)

sábado, 24 de agosto de 2019