segunda-feira, 26 de agosto de 2019

SOBRE O ANIQUILAMENTO INTERIOR

Quando nos falam de renunciarmos a nós mesmos, de aniquilar-nos; quando nos dizem ser esse o fundo da moral cristã, consistir nisso a adoração em espírito e verdade, tal palavra nos parece dura e até injusta: não queremos ouvi-la e repelimos quem no-lo prega da parte de Deus. Convençamo-nos, uma vez por todas, de que esse preceito nada de injusto encerra e na prática é mais suave do que pensamos. Em seguida, humilhemo-nos se nos faltar coragem para pô-lo em prática e, ao invés de condená-lo, condenemos a nós mesmos.

Que nos pede o Senhor, ordenando que nos aniquilemos? Pede fazermos justiça a nós mesmos, colocarmo-nos em nosso lugar e reconhecermo-nos tais quais somos... Tudo quanto possuo, tudo quanto sou, não pertence propriamente a mim; que só tenho de meu o nada e a quem nada se pode tirar. Se assim encarássemos, sempre do lado de Deus e jamais do nosso, tudo que nos acontece, não seríamos tão melindrosos, tão sensíveis, tão sujeitos a nos queixarmos e irritarmos. Toda a desordem vem sempre de supormos que somos alguma coisa, de nos arrogarmos direitos que nos falecem, de em tudo começarmos sempre por nos considerarmos diretamente e não prestarmos atenção aos direitos e aos interesses de Deus, os únicos lesados no que nos concerne.

Confesso que isso é de prática muito difícil e para consegui-lo faz-se mister renunciarmos, absoluta e completamente, a nós mesmos. Mas, em suma, é justo e a razão coisa alguma pode opor. Deus, portanto, nada exige de nós que não seja razoável, quando a seu respeito e a respeito do próximo quer que nos portemos como nada sendo, nada tendo, nada pretendendo... Acrescento que semelhante forma de aniquilamento, contra a qual a natureza tanto se insurge e clama, ao invés de tão penosa como imaginamos, é até suave, porque antes de tudo Jesus Cristo a declarou tal: 'Tomai sobre vós o meu jugo', disse Ele; 'que é doce e leve'. Por mais pesado que seja esse jugo, Deus o suaviza para os que o tomam de boa vontade e consentem em carregá-lo por seu amor. O amor não nos impede de sofrer, mas faz como que amemos o sofrimento e torna-o preferível e a todos os prazeres.

A recompensa presente do aniquilamento é a paz do coração, a calma das paixões, a cessação de todas as agitações do espírito, das murmurações, das revoltas interiores. Vejamos, em pormenores, a prova disto. Qual é o maior mal do sofrimento? Não é a própria dor, é a revolta, a sublevação interior que a acompanha. A alma aniquilada sofreria todos os males imagináveis sem perder o repouso conexo ao seu estado: é fato de experiência. Custa-nos conseguir o nosso aniquilamento, temos que fazer grandes esforços sobre nós mesmos: mas também gozamos da paz na proporção das vitórias alcançadas.

O hábito de renunciarmos a nós mesmos, de não atendermos ao nosso eu, torna-se cada dia mais fácil; admiramo-nos de que não nos faça mais sofrer, no fim de certo tempo, aquilo que nos parecia intolerável, assustava a imaginação, sublevava as paixões e punha a natureza em estado violento. Nos desprezos, nas calúnias e humilhações, o que no-las torna tão duras de suportar é o nosso orgulho; é o nosso desejo de ser estimados, considerados, tratados com certas atenções; é o pavor que temos das zombarias e do desprezo do próximo. Eis o que nos agita e enche de indignação, o que nos torna a vida amarga e insuportável. Trabalhemos com afinco para aniquilar-nos; não demos alimento nenhum ao orgulho, deixemos caírem todos os artifícios de estima e amor próprio, aceitemos interiormente as pequenas mortificações que se apresentarem.

Pouco a pouco chegaremos a não mais nos inquietarmos com o que se pensa e diz de nós, nem com o modo pelo qual nos tratam. Um morto nada sente; para ele não há honra nem reputação; os louvores e as injúrias lhe são indiferentes. A maior parte dos sofrimentos e desgostos por que passamos no serviço de Deus provém de não estarmos bastante aniquilados em sua presença, de conservarmos certa vida própria no meio dos nossos exercícios, de imiscuir-se um secreto orgulho em nossa devoção. E por isso não somos indiferentes às consolações e à sua falta; sofremos quanto Deus parece afastar-se de nós; esgotamo-nos em desejos e esforços tendentes a fazê-lo voltar; ficamos abatidos e desolados, se o afastamento perdura muito. 

Por isso também temos falsos alarmes a respeito do nosso estado. Afigura-se-nos estarmos mal com Deus porque Ele nos priva de algumas doçuras sensíveis. Julgamos más as nossas comunhões, porque as fazemos sem gosto, a mesma coisa acontecendo quanto às nossas leituras, orações e outras práticas. Sirvamos a Deus com espírito de aniquilamento; sirvamo-lo por Ele e não em atenção a nós; sacrifiquemos os nossos interesses à sua glória e ao seu bel-prazer; então, estaremos sempre contentes com o seu modo de tratar-nos, persuadidos de que nada merecemos e de ser imensa a bondade de sua parte, não digo aceitando, porém suportando os nossos serviços.

Nas grandes tentações contra a pureza, a fé e a esperança, o que há de mais penoso para nós não é precisamente o temor de ofender a Deus, senão o medo de perder-nos, ofendendo-o. É o nosso interesse que nos ocupa muito mais do que a sua glória. Eis a razão de ter um confessor tanta dificuldade em tranquilizar-nos e reduzir-nos à obediência. Cremos que ele nos engana, transvia e perde, porque nos obriga a deixar de lado as nossas vãs apreensões. Aniquilemos o nosso conceito; não julguemos por nós mesmos. Encontraremos a paz e paz perfeita, no esquecimento total de nós mesmos. Nada há no céu, na terra, nem do inferno, capaz de perturbar a alma verdadeiramente aniquilada.

(Excertos da obra 'Manual das Almas Interiores', do Pe. Grou, 1932)