sexta-feira, 28 de março de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XX)


93. Esforcemo-nos com todas as nossas forças para adquirir esta santa humildade; e se, com a ajuda de Deus, conseguirmos possuí-la apenas na medida em que o nosso estado de vida o exija, então ou alcançaremos impercetivelmente todas as outras virtudes ou esta humildade, por si só, bastará para compensar todas as nossas deficiências. Muitas pessoas desejam possuir a castidade ou a caridade, a doçura ou a paciência, ou qualquer outra virtude de que sejam mais necessitadas, e estão muito ansiosas por saber como devem adquiri-la; consultam vários diretores espirituais para saber que meios devem tomar, mas muito poucos exercem a devida prudência na escolha desses meios.

Desejais conhecer os meios mais eficazes para adquirir essas virtudes? Começai então por procurar adquirir a humildade; impregnai-vos de humildade, e vereis que todas as outras virtudes se seguirão sem qualquer esforço da vossa parte, e exclamareis com grande alegria 'com ela me vieram todos os bens' [Sb 7,11]. E mesmo quando, devido à fragilidade da tua própria natureza, fores deficiente em alguma virtude particular, humilha-te e essa humildade compensará plenamente as tuas outras deficiências.

Há quem se perturbe porque as suas orações estão cheias de distrações. Isso provém do orgulho, que é bastante presunçoso para se espantar com a fraqueza e a impotência do espírito. Quando perceberdes que o vosso pensamento está a divagar, fazei um ato de humildade e exclamai: 'Ó meu Deus, que criatura abjeta sou eu, não podendo fixar o meu pensamento em Vós, nem sequer por alguns instantes'. Renovai este ato de humildade todas as vezes que estas distrações ocorrerem e, se está escrito sobre a caridade que 'ela cobre uma multidão de pecados' (1Pd 4,8), o mesmo se aplica à humildade e contribui grandemente para a nossa perfeição. 'O próprio conhecimento da nossa imperfeição' - diz Santo Agostinho - 'tende ao louvor da humildade' [Lib. 3 ad Bonif., c. vii].

94. Temos mais oportunidades de praticar a humildade do que qualquer outra virtude. Quantas ocasiões temos de nos humilhar secretamente, em todos os lugares, em todos os momentos, em todas as ocasiões: para com Deus, para com os nossos semelhantes e até para conosco mesmos! Em relação a Deus: de quanto nos devemos envergonhar na nossa ignorância e ingratidão para com Ele, recebendo como recebemos contínuos benefícios da sua infinita bondade. Conhecendo a sua suprema e infinita majestade, merecedora de todo o temor; a sua infinita bondade, digna de todo o amor; quanto nos devemos humilhar ao pensar no pouco temor e amor que lhe temos! Em relação ao nosso próximo: se ele for mau, podemos humilhar-nos, pensando que somos capazes de nos tornarmos subitamente piores do que ele, e que, de fato, podemos considerar-nos já piores, se o orgulho predominar em nós. Se ele for bom, devemos humilhar-nos pensando que ele corresponde melhor do que nós à graça de Deus e é melhor do que nós por causa da sua humildade de coração. Em relação a nós mesmos, nunca nos faltam ocasiões de humildade quando recordamos os nossos pecados passados, ou consideramos as faltas que cometemos atualmente na nossa vida cotidiana, ou ainda quando refletimos sobre as nossas boas obras, todas elas manchadas de imperfeição, ou quando pensamos no futuro tão cheio de tremendas incertezas: 'Sei viver na penúria, e sei também viver na abundância' [Fp 4,12], diz São Paulo. É necessário que criemos o bom hábito de renovar frequentemente estes atos interiores de humildade. A humildade não é mais do que um hábito virtuoso, mas como adquiri-lo sem fazer repetidos atos de humildade? Como o hábito da humildade, o hábito do orgulho é adquirido pela repetição frequente de seus atos e, à medida que o hábito da humildade se fortalece, o hábito contrário do orgulho se enfraquece e diminui.

95. Lúcifer só pecou uma vez por orgulho de pensamento. Não deveríamos, pois, considerar-nos piores do que Lúcifer, uma vez que o nosso orgulho tornou-se habitual pela repetição frequente de seus atos? Não nos consideramos orgulhosos porque não nos parece que sejamos suficientemente imprudentes em nossas mentes para acreditar que nos assemelhamos a Deus ou para nos rebelarmos contra Deus; mas este é o maior erro que podemos cometer, porque estamos cheios de orgulho e não reconheceremos que somos orgulhosos. Mesmo que não tenhamos orgulho suficiente para nos revoltarmos, para pensarmos ou falarmos contra Deus, devemos estar plenamente conscientes de que o orgulho que nos leva a agir é muito pior do que o orgulho do pensamento, e é aquele orgulho que é tão condenado por São Paulo: 'Eles professam que conhecem a Deus, mas em suas obras o negam' [Tt 1,16].

Como é grande o nosso amor-próprio! Será que alguma vez mortificamos as nossas paixões por amor de Deus, como Ele próprio ordenou? Quantas vezes preferimos seguir a nossa própria vontade em vez da vontade de Deus, e como a sua vontade é contrária à nossa, colocamo-nos em oposição a Ele e desejamos obter a nossa própria vontade em vez de cumprir a sua, valorizando mais a satisfação dos nossos desejos do que a obediência que devemos a Deus! Não será este um orgulho pior do que o de Lúcifer? Pois Lúcifer só queria igualar-se a Deus, ao passo que nós queremos elevar a nossa vontade acima da de Deus. Deves humilhar-te, ó minha alma, até abaixo de Lúcifer, e confessar que és mais orgulhosa do que ele!

96. Podemos comparar-nos àqueles que, sofrendo de mau hálito em consequência de alguma doença, tornam-se desagradáveis aos que deles se aproximam, embora eles próprios não o saibam. Da mesma forma, quando estamos corrompidos pelo orgulho interior, exalamos os sinais exteriores dele em nossas palavras, olhares e gestos e de mil outras maneiras, conforme a ocasião e, no entanto, embora nosso orgulho seja visível para todos os que se aproximam de nós, nós mesmos o ignoramos. Os que me conhecem consideram-me orgulhoso, e não se enganam, pois demonstro isso pela minha vaidade, arrogância, petulância e altivez. Só eu não me conheço tal como sou e se me questiono: sou orgulhoso? 'Não', respondo, oferecendo a mim próprio um incenso que é mais nauseabundo do que qualquer outra coisa.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)