sábado, 19 de outubro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XC)

 

Capítulo XC

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Caso do Arcebispo Sandoval em Louvain - O Advogado que Renunciou ao Mundo - A Aparição do Irmão Latti ao Dr. Verdiano

Citemos aqui outro exemplo, tanto mais digno de menção quanto um grande papa, Clemente VIII, viu nele o próprio dedo de Deus e recomendou sua publicação para a edificação da Igreja. 'Vários autores' - diz o Padre Rossignoli - 'relataram a maravilhosa assistência que Cristóvão Sandoval, Arcebispo de Sevilha, recebeu das almas do Purgatório'. Ainda criança, ele tinha o costume de distribuir parte do seu dinheiro de bolso em esmolas para o benefício das santas almas. A sua piedade aumentava com a idade; por amor das pobres almas sofredoras, dava tudo o que podia dispor, chegando mesmo a privar-se de várias pequenas coisas úteis ou necessárias. Quando prosseguia os seus estudos na Universidade de Louvain, aconteceu que algumas cartas que esperava de Espanha se atrasaram, pelo que se viu reduzido a tais dificuldades pecuniárias que mal tinha dinheiro para comprar comida. Nesse momento, um pobre pediu-lhe uma esmola por amor das almas do Purgatório e, o que nunca lhe tinha acontecido, viu-se obrigado a recusar.

Afligido por esta circunstância, entrou em uma igreja. 'Se' - disse ele - 'não posso dar uma esmola pelas minhas pobres almas, posso pelo menos dar-lhes a ajuda pelas minhas orações'. Mal tinha acabado a sua oração quando, ao sair da igreja, foi abordado por um belo jovem, vestido como um viajante, que o saudou com respeitosa afabilidade. Cristóvão experimentou um sentimento de temor religioso, como se estivesse na presença de um espírito em forma humana. Mas foi logo tranquilizado pelo seu amável interlocutor, que lhe falou com a maior convicção do Marquês de Denia, seu pai, dos seus parentes e amigos, tal como o faria um espanhol recém-chegado da Península. Terminou pedindo-lhe que o acompanhasse a um hotel, onde poderiam jantar juntos e estar mais à vontade. Sandoval, que não comia nada desde o dia anterior, aceitou de bom grado a oferta. Sentaram-se então à mesa e continuaram a conversar agradavelmente. Depois da refeição, o forasteiro deu a Sandoval uma quantia em dinheiro, pedindo-lhe que a aceitasse e que a utilizasse para o fim que quisesse, acrescentando que o Marquês, seu pai, o indenizaria assim que regressasse à Espanha. Depois, com o pretexto de tratar de algum negócio, retirou-se e Cristóvão nunca mais o viu. Apesar de todas as suas indagações sobre o estrangeiro, nunca conseguiu obter qualquer informação a seu respeito. Ninguém, nem em Louvain nem na Espanha, tinha visto ou conhecido um jovem que correspondesse à sua descrição. Quanto à soma de dinheiro, era exatamente a quantia de que o piedoso Cristóvão necessitava para fazer face às despesas até à chegada das suas cartas, e esse dinheiro nunca mais foi reclamado à sua família.

Estava, por isso, convencido de que o Céu tinha feito um milagre em seu favor e tinha enviado em seu auxílio uma daquelas almas que ele próprio tinha aliviado com as suas orações e esmolas. Esta opinião foi confirmada pelo Papa Clemente VIII, a quem contou o fato quando foi a Roma receber as Bulas de elevação ao Episcopado. Este Pontífice, impressionado com as circunstâncias extraordinárias do caso, aconselhou-o a dar a conhecer o fato a todos para a edificação dos fiéis; considerou-o como um favor do Céu, que provava quão preciosa é, aos olhos de Deus, a caridade para com os defuntos.

Tal é a gratidão das almas santas que deixaram este mundo, que elas a testemunham até mesmo pelos favores que lhes foram concedidos enquanto ainda estavam nesta vida. Conta-se nos Anais dos Frades Pregadores que, entre os que foram receber o hábito das mãos de São Domingos em 1221, havia um advogado que abandonara a sua profissão em circunstâncias extraordinárias. Estava unido por laços de amizade a um jovem de grande piedade, a quem assistiu caridosamente durante a doença de que morreu. Isto foi suficiente para levar o falecido a obter para ele o maior de todos os benefícios, o da conversão e vocação à vida religiosa. Cerca de trinta dias depois da sua morte, apareceu ao advogado e implorou a sua ajuda, porque estava no Purgatório. 'Os teus sofrimentos são muitos?' - perguntou ao seu amigo. 'Ai de mim!' - respondeu este último - 'se toda a terra, com suas florestas e montanhas, estivesse em chamas, não formaria uma fornalha como aquela em que estou mergulhado'. Tomado de medo, a sua fé reanimou-se e, pensando apenas na sua própria alma, perguntou: 'Em que estado me encontro aos olhos de Deus?' 'Num mau estado' - respondeu a alma - 'e numa profissão perigosa'. 'Então, o que é que eu devo fazer? Que conselho me dás?' 'Abandona o mundo perverso em que estás envolvido e ocupa-te apenas com os assuntos da tua alma'. O advogado, seguindo este conselho, deu todos os seus bens aos pobres e tomou o hábito de São Domingos.

Vejamos como um santo religioso da Companhia de Jesus manifestou a sua gratidão, mesmo depois da morte, ao médico que o assistiu na sua última doença. Francisco Lacci, Irmão Coadjutor, morreu no Colégio de Nápoles em 1598. Era um homem de Deus, cheio de caridade, paciência e terna devoção para com a Santíssima Virgem. Algum tempo depois de sua morte, o Dr. Verdiano entrou na igreja do Colégio para assistir à missa, antes de iniciar as suas visitas. Era o dia em que se celebravam as exéquias do rei Filipe II, falecido quatro meses antes. Quando, ao sair da igreja, se preparava para levar a água benta, aproximou-se um religioso e perguntou-lhe por que razão estava preparado o catafalco e em intenção de quem era a missa a ser celebrada. 'É a missa para o rei Filipe II' - respondeu ele.

Mas, ao mesmo tempo, Verdiano ficou espantado com o fato de um religioso fazer tal pergunta a um desconhecido, e não distinguindo as feições do seu interlocutor na obscuridade do lugar onde se encontrava, perguntou-lhe quem era. 'Sou' - respondeu ele - 'o Irmão Lacci, a quem o senhor assistiu na minha última doença'. O médico olhou-o atentamente, reconhecendo então as feições do religioso. Tomado de espanto, disse: 'Mas tu morreste dessa doença! Então estás a sofrer no Purgatório e vens pedir os nossos sufrágios?' 'Bendito seja Deus, já não tenho dores nem sofrimentos. Não preciso dos vossos sufrágios. Estou nas alegrias do Paraíso'. 'E o rei Filipe, também já está no Paraíso?' 'Sim, ele está lá, mas colocado tão abaixo de mim quanto foi elevado acima de mim na Terra. Quanto ao senhor, Dr. Verdiano, onde pensa fazer a sua primeira visita médica hoje?' Tendo Verdiano respondido que ia atender uma certa pessoa, que estava perigosamente doente, Lacci avisou-o para se precaver de um grande perigo que o ameaçava à porta da casa que ele ia visitar. De fato, o médico encontrou ali uma grande pedra disposta em posição tão perigosa, que tendia a se deslocar a qualquer momento, de modo a feri-lo mortalmente. Esta circunstância material parece ter sido concebida pela Providência para provar a Verdiano que ele não tinha sido vítima de uma ilusão.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog