O autor inspirado apresenta repetidamente o dilúvio como universal: ele leva de roldão a humanidade (Gn 6,7), todos os viventes (Gn 6, 13) e tudo que há sôbre a terra (Gn 6,17), todos os seres (Gn7,4), tudo que respira hálito vital (Gn 7,22), e as águas cobriram todos os montes altos que estão abaixo de todo céu (Gn 7,19).
Estas expressões não são realmente tão categóricas assim, como podem parecer à primeira vista. Há exemplos na linguagem bíblica, em que a palavra 'todo' refere-se a uma parte que o autor considera no seu conjunto. Referindo-se ao próximo ingresso dos hebreus na Palestina, Deus promete ao seu povo: 'hoje principio a esparramar o terror e o medo de ti entre os povos debaixo de todo o céu' (Dt 2,25). Aqui se trata evidentemente apenas dos povos das várias regiões da Palestina. A escassez, ao tempo de José, 'era grande em toda a terra e de todos os países vinham para comprar trigo' (Gn 41,57). Aqui o horizonte é mais amplo que no exemplo anterior, mas não muito mais. A luta entre os fiéis a Davi e os partidários de Absalão alastrou-se 'pela face da terra' (2Sm 18,8). Aqui o horizonte é muitíssimo restrito: trata-se de uma parte da Palestina. Não faltam outros exemplos; e uma tal elasticidade de linguagem aparece também no Novo Testamento, no episódio do Pentecostes, do qual participavam pessoas pertencentes de 'todas as nações que existem sob o céu' (At 2,5), evidentemente no âmbito do Império Romano, como decorre da enumeração que segue (At 9-11).
Afirmar que o autor sagrado, quando diz 'toda a terra' dá a êstes termos o sentido mais óbvio para nós, é abusar de suas palavras: em primeiro lugar porque apreende-se, como se viu, a elasticidade de tal expressão na linguagem bíblica; em segundo lugar porque as palavras 'toda a terra' têm para nós um significado concreto correspondente às nossas adiantadas noções geográficas, que o autor sagrado nem ao menos suspeitava nem podia por isso exprimir por suas palavras. Não há pois que pensar num dilúvio que cobrisse de água todo o globo até o Everest, desde o Alasca até a Nova Zelândia! O Gênesis não conhece nem o Everest nem a Nova Zelândia e nem mesmo o globo. Cabe por isso excluir a universalidade geográfica, não tanto pelos inúmeros e retumbantes milagres que seriam necessários, como porque, realmente, isto não corresponde à intenção do autor sagrado. Mas, qual é então o alcance das palavras bíblicas? Até onde se estende o horizonte dessa universalidade?
Há duas correntes entre os estudiosos católicos. Alguns afirmam: todos os homens (universalidade antropológica) e, portanto, toda a terra então habitada pelos homens e todos os animais que se encontravam naquela região. Realmente o autor apresenta o dilúvio como castigo por causa da conduta dos homens: os animais perecem por se encontrarem na mesma zona e sua ruína é repetidamente lembrada porque acrescenta algo de trágico à grandiosidade do castigo divino. Paralela a essa menção encontra-se, além disso, a dos animais salvos na arca, evidentemente para um rápido repovoamento daquelas terras.
Outros julgam que o autor não pretendia sequer falar da destruição de todos os homens, mas apenas daquela porção de que provém a família de Noé e, portanto, os antepassados do povo eleito (universalidade antropológica relativa), observando que:
(i) o autor sagrado em todo Gênesis adota o sistema de restringir pouco a pouco o âmbito de sua conjectura. Isto é claro do dilúvio em diante. Depois de ter enumerado os povos descendentes de Jafé, Cam, Sem (Gn 10), abandonando todos os outros ao próprio destino, interessa-se apenas por uma linhagem, aquela que de Sem, através de Arfaxad, conduz a Tare ou Terá (Gn 11). Dos filhos de Tare considera Abraão, e abandona os outros totalmente depois de algumas indicações (Gn 11,27-32; 2,1-5). Abraão tem dois filhos, Ismael e Isaac. Depois de recordar apenas com uma genealogia (Gn 25,12-18) a posteridade de Ismael, o autor prossegue com Isaac (Gn 25,19); Isaac tem dois filhos, Esaú e Jacó; após referir alguns episódios interessantes relativos ao dois patriarcas, o autor apresenta uma longa descendência de Esaú (Gn 36), que assim sai do campo de seu interesse, para prosseguir depois com a história de Jacó e dos seus doze filhos. Assim o horizonte vai aos poucos restringindo-se até abranger somente o povo de Israel. Este plano é maravilhoso e não tem paralelo em nenhuma outra obra do antigo Oriente. Ele mostra que o autor inspirado, antes de se interessar por seu povo, tem em mira a humanidade toda, e que é o mesmo Deus de Israel - Aquele que dirige os destinos do Universo.
Porém, tal processo eliminatório inicia-se apenas depois da narrativa do dilúvio, ou já antes? Segundo estes estudiosos católicos o autor sagrado, ao dar a descendência de Caim, já elimina um ramo da humanidade; pode-se imaginar que os cainitas não voltarão mais ao horizonte dele. Depois menciona-se Set e outros filhos e filhas de Adão (Gn 5,3-4). Os outros filhos e filhas são abandonados e é tomado em consideração apenas Set. Set gera Enós, e outros filhos e filhas; estes também são desprezados e prossegue-se com Enós. Assim vai até Lamec e Noé. Teremos então, por ocasião do dilúvio, uma humanidade já subdividida em ramos, dos quais o autor sagrado considera apenas a descendência de Set ou suas últimas ramificações em cujo meio vivem os 'filhos de Deus' (Gn 6,2).
(ii) um outro argumento seria oferecido pela listagem dos povos que se segue à narrativa do dilúvio (Gn 10). Aí, o autor sagrado enumera os povos da terra, colocando-os em relação aos três filhos de Noé! Dizemos colocando-os em relação, e não outra coisa, porque aqui, muito mais que em outro qualquer lugar nas genealogias, a palavra 'filho' tem significado muito vago. Realmente os descendentes de Sem, Cam e Jafé ora são indivíduos, mais frequentemente são povos e são, algumas vezes, até cidades. Em certos casos, tratar-se-á de pertinência racial; porém, em outros casos, a relação pode ser puramente extrínseca, como o assimilar da mesma civilização ou o continuar da mesma hegemonia (caso coletivo da descendência jurídica). De qualquer modo estes setenta nomes estranhos, muitos dos quais apenas recentemente foram trazidos à luz pelas escavações arqueológicas (basta pensar nos hititas, amorritas e cretenses), compreende apenas povos do Mediterrâneo, da Ásia Menor, Cáucaso, Mesopotâmia, Arábia e Egito. Todos povos de raça branca (Europóides). Os outros não se acham no horizonte do escritor sagrado* e, portanto, não estariam incluídos por ele no dilúvio. É realmente difícil aceitar que ignorasse a existência dos negros, frequentemente representados nos monumentos egípcios, onde eram também empregados como escravos.
Não é fácil decidir qual das duas hipóteses seja preferível, visto que o texto não fornece elementos suficientes para uma opinião correta. A idéia fundamental do autor sagrado manifesta-se entretanto preservada em ambas interpretações, se bem que, supondo a destruição total da humanidade, esteja-se mais em harmonia com a tonalidade universalística dos capítulos que precedem a história de Abraão.
* que os povos amarelos derivam de Sem, os negros de Cam e oa brancos de Jafé é uma suposição que não encontra qualquer apoio na Bíblia.
(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)