sábado, 20 de julho de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXXV)

Capítulo LXXXV

Razões e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Santo Ambrósio - São João da Cruz: Dar Esmolas por Amor de Si Mesmo - Santa Brígida e o Beato Pedro Lefevre

Acabamos de ver como a caridade para com as almas dos falecidos é santa e meritória diante de Deus - sancta cogitatio. Resta mostrar como é salutar, ao mesmo tempo, para nós mesmos - salubris cogitatio. Se a excelência da obra em si mesma é um incentivo tão poderoso, as preciosas vantagens que dela derivam não são menos estimulantes. Consistem, por um lado, nas graças que recebemos em recompensa da nossa generosidade e, por outro, no fervor cristão que esta boa obra nos inspira. 'Bem aventurados' - disse o nosso Salvador - 'os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia' (Mt 5,7); 'Feliz quem se lembra do necessitado e do pobre, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará' (Sl 40,2); 'Todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes' (Mt 25, 40); 'O Senhor use convosco de misericórdia, como vós usastes com os que morreram' (Rt 1,8). Todas estas diferentes frases exprimem, no seu sentido mais forte, a caridade para com os defuntos.

Tudo o que oferecemos a Deus pela caridade para com os mortos - diz Santo Ambrósio no seu Livro dos Ofícios - transforma-se em mérito para nós e nos reverte centuplicado depois da nossa morte -  Omne quod defunctis impenditur, in nostrum tandem meritum commutatur, et illud post mortem centuplum recipimus duplicatum. Podemos dizer que o espírito da Igreja e os argumentos dos doutores e dos santos, estão expressos nestas palavras: 'O que fizerdes pelos mortos, fazeis de modo excelente por vós mesmos'. A razão disto é que esta obra de misericórdia nos será revertida centuplicada, no tempo da alição. Podemos aplicar aqui as célebres palavras de São João de Deus quando pediu aos habitantes de Granada que lhe dessem uma esmola por amor de si mesmos. Para prover às necessidades dos doentes que acolhia no seu hospital, o caridoso santo percorria as ruas de Granada, gritando: 'Dai esmolas, meus irmãos, dai esmolas por amor de vós mesmos'.

As pessoas ficavam espantadas com esta nova forma de expressão porque sempre tinham estado habituadas a ouvir: esmola por amor de Deus. 'Por que' - perguntaram ao santo - 'nos pedes que demos esmola por amor de nós mesmos?' Ao que ele espondeu: 'Porque este é o grande meio de redimir os vossos pecados, conforme as palavras do Profeta: redime os teus pecados com esmolas e as tuas iniquidades com obras de misericórdia para com os pobres' (Dn 4,24). Dando esmolas, trabalhais no vosso próprio interesse, pois assim diminuís os terríveis castigos que os vossos pecados mereceram. Não devemos concluir que tudo isso se aplica também às esmolas dadas às almas do Purgatório? Ajudá-las é preservar-nos das terríveis expiações a que de outro modo não poderíamos fugir. Podemos, pois, clamar com São João de Deus: 'Dai-lhes a esmola dos vossos sufrágios; assisti-as por amor de vós mesmos'. A generosidade para com os falecidos é sempre retribuída; encontra a sua recompensa em toda a espécie de graças, cuja fonte é a gratidão das almas santas e a de Nosso Senhor, que considera como feito a si mesmo tudo o que fazemos pelas almas penitentes.

Santa Brígida declara nas suas Revelações - e o seu testemunho é citado por Bento XII (Serm. 4, 12) - que ela ouviu uma voz das profundezas das chamas do Purgatório pronunciando estas palavras: 'Sejam bem aventurados e sejam recompensados os que nos aliviam nestas dores!' E em uma outra ocasião: 'Ó Senhor Deus, mostrai o vosso poder onipotente em recompensar cem vezes mais aqueles que nos ajudam com os seus sufrágios, e fazei brilhar sobre nós os raios da luz divina'. Em outra visão, a santa ouviu a voz de um anjo que dizia: 'Abençoados sejam na terra aqueles que, pelas suas orações e boas obras, aprestam-se em auxílio das pobres almas sofredoras!"

O Beato Pedro Lefevre, da Companhia de Jesus, tão conhecido pela sua devoção para com os santos anjos, tinha também uma devoção especial para com as almas do Purgatório. 'Essas almas' - dizia ele - 'têm anelos de caridade que estão sempre dirigidos para aqueles que ainda caminham entre os perigos desta vida; elas estão cheias de gratidão para com aqueles que as ajudam. Elas podem rezar por nós e oferecer os seus tormentos a Deus em nosso favor'. É uma excelente prática invocar as almas do Purgatório para que possamos obter de Deus, por sua intercessão, um verdadeiro conhecimento dos nossos pecados e uma perfeita contrição por eles, fervor no exercício das boas obras, cuidado em produzir frutos dignos de penitência e, em geral, praticar todas as virtudes, cuja ausência foi a causa dos seus atuais e terríveis castigos.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog