quarta-feira, 24 de julho de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (VII)

 

47. Todo santo pode, num dado momento, tornar-se pecador, se for vaidoso da sua santidade; e o pecador pode, com a mesma rapidez, tornar-se santo, se for contrito e humilhar-se pelo seu pecado. Quantos são os que, no fervor da sua oração, 'sobem aos céus' e, logo a seguir, à menor ocasião de pecado, 'descem aos abismos'! [Sl 106,26]. Quantos há também que, entregues à vaidade e manchados pelos pecados mais profundos, transformam-se subitamente, abrindo os olhos para o conhecimento da verdade e atingindo assim a perfeição cristã! De fato, os altos conselhos de Deus devem ser adorados e não escrutinados, porque 'o Senhor humilha e exalta; levanta do pó o mendigo; e ergue o pobre do esterco' [1Sm 2,7-8].

Quem sabe se aquele que julgo e de quem falo mal não é mais querido por Deus do que eu? Se um outro a quem tenho pouca estima e desprezo por seus defeitos físicos ou morais não está destinado a ser muito feliz com Deus por toda a eternidade? Quem sabe se eu não estarei condenado às dores do inferno por toda a eternidade? Com esta incerteza, como é que posso ter a presunção de me considerar melhor do que qualquer outro? Ninguém vale mais do que aquilo que vale aos olhos de Deus, e como posso saber se sou um objeto de ódio ou de amor para Deus? 'Pois, contudo, o homem não sabe se é digno de amor ou de ódio' [Ecl 9,1]. Como é que eu sei se Deus vai moldar um vaso de honra ou de desonra a partir do barro de que sou feito? 'O que há de superior em ti?' [1 Cor 4,7] e 'Mas para que servem estes vasos? O Oleiro será o juiz' [Sb 15,7].

Quando leio sobre São Paulo, arauto do Espírito Santo e grande doutor dos gentios, que dizia de si mesmo que vivia com medo de cair em pecado e de se tornar um náufrago, depois de ter convertido tantos milhares de almas a Deus: Se o próprio São Paulo, que foi arrebatado ao terceiro céu e podia dizer que 'Cristo vivia nele' e 'agora vivo, não eu, mas Cristo que vive em mim' [Gl 2,20], devia temer assim, que direi de mim mesmo, que sou tão desprezível? No dia do juízo, quantos veremos à direita de Deus, a quem considerávamos náufragos, e quantos veremos à sua esquerda, a quem julgávamos estar entre os seus eleitos! Mas seria bom para nós, quando fazemos comparações entre nós e os outros, dizer o que Juda disse de Thamar: 'Ela é mais justa do que eu' e, em alguma circunstância ou outra, isso sempre se mostrará verdadeiro. São Tomás ensinou que um homem pode dizer e acreditar com verdade que é pior do que os outros, em parte devido aos defeitos ocultos que sabe que possui e, em parte, devido aos dons de Deus que estão ocultos nos outros [xxii, qu. 161, art. 6 ad 2].

48. Quem me garante que não cairei em breve num pecado mortal? E, uma vez caído, quem me garante que não morrerei em pecado e serei condenado ao castigo eterno? Enquanto viver neste mundo, não posso ter a certeza de nada. Tenho esperança de salvar a minha alma, mas também tenho medo de a perder. Ó minha alma, não pretendo deprimir-te; não, nem quero encher-te de desespero pusilânime com estes pensamentos. Desejo apenas que sejas humilde. E quanta razão tens para te humilhares nesta incerteza, não sabendo que tipo de morte será a tua, nem qual será o teu destino por toda a eternidade? É somente na medida de tua humildade que podes esperar agradar a Deus e salvar a ti mesmo, porque é certo que Deus 'salvará os humildes' [Sl 17,28] e 'salvará os humildes de espírito' [Sl 33,19].

Há quem pense que meditar sobre o mistério da predestinação é suscetível de nos encher de desespero; mas parece-me, como também a Santo Agostinho, que este pensamento é um meio muito eficaz de praticar a humildade [Lib. de Praedest. et Grat.] porque, quando medito sobre a minha salvação eterna, vejo que ela não depende do poder do meu livre arbítrio, mas apenas da misericórdia divina. Não confiando em mim mesmo, mas pondo toda a minha esperança em Deus, devo dizer com a sabedoria de Judite: 'E, portanto, humilhemos as nossas almas perante Ele, e continuando com um espírito humilde no seu serviço, peçamos ao Senhor que mostre a sua misericórdia para conosco' [Jt 8, 16-17].

49. É um dom especial de Deus saber como governar a língua, como diz o pregador em seus Provérbios: 'É o Senhor que governa a língua' [Pv 16,1] e, quando Deus quer conferir este seu dom a alguém, o faz por meio da humildade. E o Salvador ensina-nos ainda que 'a boca fala do que lhe transborda do coração' [Mt 12,34]. Portanto, se o coração estiver bem regulado pela humildade, a língua também estará bem regulada.

Aquele que é humilde de coração não tem senão uma má opinião de si mesmo e uma boa opinião dos outros; é por isso que nunca se elogia nem censura os outros. O homem humilde fala pouco, pondera e mede as suas palavras para não dizer mais do que a verdade e a modéstia exigem e, como o seu coração está livre de vaidade, assim é a sua fala. Argumentamos, portanto, que pode haver pouca ou nenhuma humildade em nossos corações quando há pouca ou nenhuma continência em nossa fala. 'O seu coração é vão' - diz o profeta e é por isso que ele acrescenta - 'a sua garganta é um sepulcro aberto' [Sl 5,10]. Falamos das coisas que enchem o coração: 'a boca fala daquilo de que o coração está cheio' [Lc 6,45] e o nosso falar determinará se no nosso coração predomina a verdade ou a vaidade. É bom pedir a Deus que refreie a nossa língua, mas peçamos-lhe também que nos dê humildade ao nosso coração, pois isso por si só já será um autocontrole muito poderoso.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)