terça-feira, 9 de julho de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (VI)

 

44. Embora o pecado seja, em si mesmo, um grande mal - de fato, o maior de todos os males - ainda assim, sob uma certa forma, pode ser um alimento para nós, se soubermos servir-nos dele como um meio de exercitar a humildade. Quantos grandes pecadores tornaram-se grandes santos sem terem feito nada mais do que manter os seus pecados constantemente diante dos olhos e humilhar-se na vergonha e na confusão perante Deus e os seus semelhantes! Essas palavras: 'Contra Vós somente tenho pecado', que Davi trazia no seu coração, contribuíram mais do que qualquer outra coisa para fazer dele um santo. E o angélico São Tomás, assim explica o versículo de São Paulo aos Romanos 'todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus' [Rm 8, 28]: 'Este é o bem que aproveita aos que amam a Deus porque, quando caem do amor de Deus pelo pecado, voltam a Ele mais humildes e mais prudentes' [3 par, qu. lxxxix, art. 2 ad 1].

É nisto que se manifesta mais admiravelmente a bondade e a sabedoria de Deus, que nos oferece um meio de nos santificarmos por meio de das nossas próprias misérias, e nunca poderemos invocar a desculpa de que não pudemos tornar-nos santos porque cometemos pecados graves, quando esses mesmos pecados poderiam ter sido o meio de nos santificar, incitando-nos a uma humildade mais profunda. Quão grande é a misericórdia de Deus ao dar-nos assim o meio de nos santificar apenas lembrando-nos de que pecando, podemos sempre meditar, à luz da nossa fé, sobre o que significa ser pecador! 

Santa Maria Madalena não se tornou santa tanto pelas lágrimas que derramou mas pela humildade do seu coração. A sua santificação começou quando ela começou a ser humilde no conhecimento de si mesma e de Deus: 'Ela sabia' [Lc 7,37]. Avançou em santidade à medida que avançava em humildade, pois quando não se atrevia a aparecer diante de Jesus Cristo, permanecia atrás dEle [Lc 7,38] e completou a sua carreira de santidade pela sua humildade, pois, como diz São Gregório, não fez outra coisa durante todo o resto da sua vida senão meditar sobre o grande mal que tinha cometido ao pecar. 'Ela considerava o que tinha feito' [Hom. 20 in Evang.].

45. Quando nos sentimos envergonhados e perturbados por termos caído em pecado, isso não passa de uma tentação do demônio, que procura aproveitar-se da nossa angústia para nos arrastar talvez a algum pecado mais grave. A dor que sentimos por termos ofendido a Deus não angustia a alma, mas deixa-a calma e serena, porque é uma dor unida à humildade, que traz consigo a graça; mas sentir-se angustiado e oprimido pela tristeza, seja pela vergonha que sentimos por termos cometido alguma ação vergonhosa, seja pelo reconhecimento súbito da nossa possibilidade de cair, precisamente quando nos julgávamos mais fortes e mais fiéis do que nunca, é orgulho simplesmente, que nasce de um amor-próprio excessivo. Temos uma opinião demasiado boa de nós próprios, e é por isso que nos perturbamos quando vemos a nossa reputação ferida por outros ou diminuída pelas nossas próprias ações. Se eu refletir bem, sempre que me angustiar com as minhas faltas, verei que a minha angústia se deve apenas ao orgulho, que me persuade, pelo artifício sutil do amor-próprio, de que sou melhor do que os próprios justos, de quem está escrito: 'o homem justo cairá sete vezes' [Pv 24,16].

Aquele que é humilde, mesmo que caia por fragilidade, logo se arrepende com tristeza e implora a assistência divina para ajudá-lo a emendar-se; nem se espanta por ter caído, porque sabe que por si mesmo só é capaz de fazer o mal, e faria muito pior se Deus não o protegesse com sua graça. Depois de ter pecado, é bom humilhar-se diante de Deus e, sem perder a coragem, permanecer na humildade para não voltar a cair, e dizer como Davi: 'Estou muito humilhado, Senhor, conservai-me na graça segundo a vossa palavra' [Sl 118,107]. Mas afligirmo-nos sem medida e cedermos a uma certa melancolia pusilânime, que nos leva à beira do desespero, é uma tentação do orgulho, insinuada pelo demônio, de quem está escrito que é rei 'sobre todos os filhos da soberba' [Jó 41,25].

46. Por mais íntegros que sejamos, nunca devemos nos escandalizar ou nos espantar com a conduta dos malfeitores, nem nos considerarmos melhores do que eles, porque não sabemos o que está ordenado para eles ou para nós nas disposições supremas de Deus, 'que faz coisas grandes e insondáveis, maravilhas incalculáveis' [Jó 5, 9]. Quando Zaqueu só pensava em usura e em oprimir os pobres, quando Madalena enchia Jerusalém de escândalos, quando Paulo amaldiçoava e perseguia a religião cristã, quem poderia imaginar que eles se tornariam santos? E, por outro lado, quem acreditaria que Salomão, o oráculo da sabedoria divina, morreria no meio da devassidão e dos ídolos? Que Judas, um dos Apóstolos, traísse o seu Divino Mestre e depois se entregasse ao desespero? Ou que muitos homens santos, avançados em santidade, se tivessem tornado apóstatas? São exemplos que nos devem fazer tremer, quando refletimos sobre o mistério insondável do julgamento e da misericórdia de Deus: 'A um abate, e a outro exalta' [Sl 74,8] e ainda, 'Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes' [Lc 1,52].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)