sexta-feira, 6 de outubro de 2023

SERMÕES DO CURA D'ARS (XIII)





SOBRE OS INIMIGOS DA NOSSA SALVAÇÃO

''desencadeou-se sobre o mar uma tempestade tão grande, que as ondas cobriam a barca'' (Mt 8,24)

Este é o quadro da vida do cristão na Terra. Nossa alma, sujeita a milhares de paixões e exposta a milhares de tentações é, de fato, como um pequeno navio envolto pelas águas que nunca está seguro nem por um momento do naufrágio. Quem, então, meus irmãos, ficaria confortável diante dos perigos que nos expõem à condenação eterna? Quem de nós, meus irmãos, não sentiria a necessidade de vigiar incessantemente todas as emoções do seu coração, isto é, todos os seus pensamentos, palavras e ações, e de se certificar se estão orientados para agradar a Deus ou para agradar ao mundo? Muitos de nós, no entanto, em todas as suas ações, buscam agradar apenas ao mundo. E qual é a consequência, meus irmãos? Nada mais fácil seria para o demônio nos levar para o inferno como uma mãe pode levar uma criança para onde quiser. Sim, o cristão que deseja agradar a Deus e salvar a sua alma encontra duas coisas que o podem deixar perplexo: primeiro, o grande número de inimigos que o cercam e a ânsia com que eles induzem a sua ruína; e, segundo, o descuido e a indiferença com que vivemos entre esses muitos perigos, e aos quais estamos continuamente expostos. Agora, para vos ensinar a vigiar e a orar, mostrar-vos-ei quais são os inimigos que mais devemos temer e evitar.



Os nossos verdadeiros inimigos não são aqueles que prejudicam a nossa boa reputação, que nos roubam os nossos bens terrenos, ou mesmo que tentam tirar-nos a vida. Eles são apenas instrumentos que a Divina Providência utiliza para nos santificar, dando-nos a oportunidade de praticar a humildade, a mansidão, a caridade e a paciência. Se a salvação da nossa alma for cara ao nosso coração, em vez de odiarmos e nos queixarmos daqueles que nos causaram esses problemas, amá-los-íamos ainda mais. Naturalmente, é difícil para um cristão, cujo coração está voltado para os bens terrenos, ser privado de suas posses. Um homem ambicioso deve naturalmente sentir-se sensível ao ver o seu bom nome atacado. Sem dúvida, deve ser terrível para um homem, que sempre viveu como se a morte nunca fosse seu destino, sentir perto a sua aproximação. E, no entanto, meus irmãos, nem todos esses são inimigos reais. Pelo contrário, serão a causa da nossa chegada ao Céu se os aceitarmos com espírito cristão. Se quereis saber quais são os inimigos que devemos temer, eu vos explico e peço-vos toda a atenção.

Os nossos verdadeiros inimigos, meus irmãos, são aqueles que têm por objetivo roubar a inocência da nossa pobre alma, privá-la da graça, matá-la aos olhos de Deus e lançá-la no inferno. Oh! quão terríveis e assustadores são tais inimigos! E por mais perigosos que sejam, é enorme o número deles que rondam à nossa volta. Sim, levamos muitos dentro de nós mesmos; e este fato deve impelir-nos a estar constantemente em guarda, pois somente a morte nos pode libertar inteiramente deles. E são esses inimigos invisíveis os que mais devemos temer.

Contemplemos, em primeiro lugar, a tola autoestima que sucumbe a maioria de nós. Como nos orgulhamos dos nossos pequenos méritos, dos nossos bens, dos nossos talentos, da nossa família, e como estamos dispostos a menosprezar os outros! Quão ansiosos estamos para nos igualarmos aos nossos superiores nos padrões de vida e para deixarmos a posição que realmente pertencemos! E quantas vezes nos orgulhamos de que nosso trabalho é melhor do que o de qualquer outra pessoa! Observai, pois, meus irmãos, esse inimigo invisível, que vos persegue incessantemente e que vos faz cometer tantos erros.

Como somos orgulhosos quando temos um pouco mais do que o nosso vizinho, quando nos vestimos um pouco melhor do que ele! Como estamos prontos a vangloriar-nos dessas pequenas vantagens mundanas! Se um pobre se dirige a nós na rua, pedindo esmola, passamos orgulhosamente por ele, não lhe dando sequer o reconhecimento de uma negação. Tratamo-lo como se fosse um ser completamente diferente de nós. Vedes, então, meus irmãos, como estamos cheios de orgulho? E, mais uma vez, como somos sensíveis à maneira como somos tratados pelo nosso próximo! Uma palavra mal compreendida, uma brincadeira à nossa custa, um cumprimento frio, como tudo isso nos ofende e como nos queixamos amargamente desses pequenos desgostos e como passamos odiar as pessoas que tais coisas nos infligiram! Ó meu Senhor, que orgulho! Que amor próprio! Olhai para este homem que conseguiu uma fortuna. Como ele ergue a cabeça, como procura o reconhecimento daqueles que antes não se comunicavam com ele e como está disposto a abandonar todos os seus amigos de outrora! Lembrai-vos de como ficais tristes e submersos em aflições se o vosso vizinho prospera nos seus negócios mais do que vós nos vossos; se ele obtém uma vantagem que vós perdestes; mas se, ao contrário, lhe sobrevêm problemas e ele fica sobrecarregado de dificuldades, como vos trazeis alento e alegria ao coração! Vedes, meus irmãos, como sois perseguidos por esse espírito do amor próprio e da inveja?

Não gostamos de encontrar uma pessoa que nos tenha ofendido, talvez sem qualquer intenção de o fazer. Gostamos de pensar mal dela e de ouvir outras pessoas falarem mal dela. Sentimos uma grande satisfação quando surge uma ocasião para a irritar. Observai, pois, meus caros cristãos, este sentimento de ódio, este desejo de vingança, esta amargura que se entranha em nós e nos devora!

Quereis saber, meus irmãos, até que ponto estamos apegados a esta vida e aos bens deste mundo? Não fica a nossa mente ocupada, dia e noite, com assuntos mundanos, aquisições e ganhos comerciais? Não estais sempre ocupados pensando em como ganhar dinheiro e a vossa conversa não gira quase sempre em torno desse assunto? Não vos deixais distrair com tantos assuntos mundanos nas vossas orações e não os levais mesmo para a casa de Deus durante o santo sacrifício da missa? Quantas vezes não pensastes, durante um missa, em assuntos que deveríeis realizar em seguida , nos negócios em que deveríeis propor ou fazer? Como estais dispostos a percorrer quilômetros para auferir algum lucro e, no entanto, como não estais dispostos a caminhar alguns passos para fazer o bem ao vosso próximo ou para cumprir os vossos deveres religiosos! É necessário mencionar aqui o hábito da maioria das pessoas de inquirir curiosamente sobre os assuntos de seus vizinhos e de criticá-los por se intrometer nos assuntos alheios. Reconhecem em vós, meus caros amigos, este inimigo secreto que provoca a discórdia entre vizinhos e traz infelicidade às famílias?

Sabeis, então, meus irmãos, porque é que sabemos tão pouco desses inimigos secretos? Pela simples razão de que fechamos os olhos e os ouvidos, para não os vermos nem ouvirmos falar deles. Para aprender a conhecê-los a fundo, basta olhar para o nosso próprio coração. Aí está o esconderijo deles e também o que alimenta quase todos eles. Mencionei-vos apenas alguns dos mais visíveis; mas quanto mais examinardes o vosso coração, mais desses inimigos secretos encontrareis. O nosso pobre coração é como um grande oceano que contém uma multidão de peixes de todos os tipos e tamanhos. Da mesma forma, o nosso coração contém uma multidão de más inclinações, umas mais fortes do que outras, que são todas susceptíveis de causar a nossa ruína, se não as contermos com prontidão. Esses são os inimigos que vivem dentro de nós e nos é impossível fugir deles. A nossa única salvação contra eles está em combatê-los sempre.

Depois de vos ter falado dos nossos inimigos interiores, resta agora falar-vos dos nossos inimigos exteriores. Prestai atenção, para aprenderdes a conhecê-los e, com a graça de Deus, a vencê-los. Digamos, em primeiro lugar, que estes inimigos exteriores andam de mãos dadas com as nossas inclinações interiores. Sim, meus irmãos, tudo foi criado por Deus para uso e serviço do homem e tudo tenderá à sua salvação ou à sua ruína, conforme o uso que dele fizer. Vede este pobre homem que, por sua pobreza, deveria estar seguro de entrar no céu. Mas o que é que ele faz? Resmunga, queixa-se, inveja os ricos, fala mal deles, chama-os de cruéis e tiranos. Os sofrimentos e as mortificações que Deus lhe envia como tantas bênçãos, levam-no ao desespero. Por outro lado, olhai para os ricos e os abastados. Em vez de agradecerem a Deus a abundância que Ele lhes concedeu, e de fazerem bom uso dela, ajudando os pobres nas suas necessidades espirituais e temporais, que fazem eles? Suas riquezas os tornam orgulhosos e altivos, e os fazem viver em completo esquecimento das necessidades de sua alma. 

Assim, encontramos inimigos em todas as estações da vida que devem ser subjugados por um combate feroz. Aqui, os nossos ouvidos têm de ouvir calúnias; ali, os nossos olhos encontram maus exemplos. Quer estejamos acordados ou a dormir, quer bebamos ou comamos, estamos rodeados pelas armadilhas do demônio e devemos estar sempre prontos a lutar contra as tentações, mesmo nos divertimentos mais inocentes ou na companhia das pessoas mais virtuosas; sim, mesmo durante as funções mais sagradas e durante as nossas orações. Quantas distrações e quanto orgulho! Quantas vezes não nos julgamos melhores do que os nossos vizinhos! Que desculpas não arranjamos, quando confessamos os nossos pecados, para parecermos menos culpados do que realmente somos! Quantas vezes não vamos confessar-nos a um padre externo, somente para não sentirmos demasiada vergonha de nós próprios! Quantos sacrilégios nas comunhões! Que consideração e que medo da opinião do próximo! Ó meus irmãos, estas são algumas das armadilhas no nosso caminho de vida, e há muitas outras. O demônio, que está destinado a causar a nossa ruína, está constantemente à nossa volta e sempre pronto a abocanhar-nos na sua rede. Sim, meus irmãos, ele faz uso de tudo o que pode para nos levar ao pecado.

Agora, meus caros amigos, conheceis alguns dos inimigos da nossa salvação. Julgai por vós mesmos se eles devem ser temidos; mas julgai antes pela miséria que vos causaram e pela má condição em que tantas vezes vos deixaram. Deixai que os anos da vossa vida passem pela vossa mente e convencei-vos de que, desde os primeiros dias da vossa juventude, tendes sido a vítima, o escravo e o infeliz joguete do diabo, do mundo e das vossas próprias paixões. Meus irmãos, quem poderia contar todos os maus pensamentos que o demônio insufla no espírito do homem? Convencei-vos, pois, de que aquele que trabalha real e verdadeiramente pela salvação da sua alma, reconhecerá de pronto a verdade do que diz São João: 'Porque tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida'. Trazemos em nós a semente do vício, e cada um de nós pode ser tentado e seduzido pelas suas próprias más inclinações; tudo em nós pode no dar motivo para pecar. 

Se compreendêssemos plenamente os perigos a que estamos constantemente expostos, viveríamos em constante medo da perdição. Sim, meus irmãos, em tudo o que vemos e ouvimos, em tudo o que fazemos e dizemos, somos sempre atraídos para o mal. Quando tomamos as nossas refeições, somos tentados pela gula e pela intemperança. Nos momentos de lazer, somos tentados pela frivolidade e pela linguagem vã. Quando trabalhamos, fazemo-lo sobretudo por avareza, procura de lucro, inveja ou mesmo vaidade. Quando rezamos, temos de ter cuidado com o descuido, a distração, a falta de vontade e o cansaço. Se nos deparamos com o sofrimento ou a aflição, estamos prontos a resmungar e a queixar-nos. O elogio torna-nos orgulhosos. A exposição de defeitos nos incomoda. É por tudo isto que temeram e tremeram os maiores santos, o que povoou o deserto de eremitas, o que fez arrancar lágrimas copiosas e promover inúmeras orações e penitências. É claro que os santos, embora vivessem no deserto, não estavam livres de tentações, embora estivessem livres de tantos maus exemplos que nos rodeiam constantemente e que são a ruína de tantas almas. Mas vemos, meus irmãos, que eles estavam sempre vigilantes e rezavam fervorosamente, enquanto nós, pobres mortais iludidos, vivemos alegre e despreocupadamente no meio de tantos perigos para a salvação da nossa alma. Ó meus irmãos, quem será capaz de superar e confrontar todos estes perigos? Quem se salvará? Eu vos digo, meus irmãos, que não se pode viver tendo sempre diante dos olhos todos esses perigos, pois morreríamos de medo. Mas o que nos deve dar força e consolação é a ideia de que podemos recorrer ao nosso querido Pai do Céu, que nunca permitirá que sejamos tentados para além das nossas forças e que sempre ajudará a vencer as tentações aqueles que a Ele recorrem com confiança e oração. Vigiai e orai, pois, e vencereis. Amém.