Cristo, Jesus, Verbo do Pai Eterno, e de quem seu mesmo Pai disse claramente: 'Ouvi-o' (Mt 17) e, que de si mesmo disse também claramente: 'Um só é o vosso Mestre, o Cristo' (Mt 23), para desempenhar cabalmente a sua missão, não só nunca deixou de ensinar, enquanto viveu; porém, mesmo da Cruz fez uma pregação curta, mas ardente, proveitosíssima, de muita eficácia e inteiramente digníssima de ser recolhida pelos cristãos no íntimo do coração, de lá ser guardada, meditada e posta em prática. A primeira sentença é esta: 'Pai perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem' (Lc 23, 34), a qual quis o Espírito Santo, que como nova e insólita fosse profetizada por Isaías naquelas palavras: 'E rogou pelos transgressores' (Is 53, 12).
Chama-lhe Pai e não Deus, ou Senhor, porque bem sabia, que para isto mais se precisava do amor de pai, do que da severidade de juiz; e que, para comover Deus, certamente irado por tão grandes atentados era necessário empregar o carinhoso nome de pai. Assim aquele Pai parece significar isto: 'Eu, teu Filho no meio dos tormentos que estou sofrendo, perdoo; perdoa tu também, meu Pai, em atenção a mim, teu Filho; concede este perdão, que para eles peço, apesar de que o não merecem, lembra-te que também deles és Pai, tendo-os criado à tua imagem e semelhança: não os excluas pois do teu amor paternal, porque, ainda que filhos indignos, são teus filhos'.
Perdoa: esta expressão encerra a suma do pedido, que o Filho de Deus, como advogado dos seus inimigos, dirige a seu Pai, e pode aquele termo 'perdoa' referir-se tanto à pena como à culpa. Referindo-se à pena, foi esta súplica ouvida, pois merecendo os judeus por esta maldade ser gravissimamente punidos ou com fogo que descesse do Céu e os consumisse; ou com um dilúvio, em que morressem afogados, ou com ferro e fome, que os exterminasse; passaram-se quarenta anos, sem serem castigados, e, se, entretanto aquela nação fizesse penitência, ficaria salva e livre: mas porque a não fez, determinou Deus, que imperando Vespasiano contra ela marchasse o exército romano, que destruiu a mais famosa cidade, fez morrer parte dos judeus à fome no cerco, passou à espada outros depois de tomada, outros os vendeu, outros fê-los escravos, e disseminou os outros por várias terras e países ... Quanto à culpa foi a sua súplica atendida, pois muitos, por merecimento dela, conseguiram de Deus a graça do arrependimento. Fazem parte deste número os que do Calvário se retiravam, batendo nos peitos (Lc 23); o centurião, que disse: 'Na verdade este Homem era Filho de Deus' (Mt 27, 54) e muitos outros, que depois, ouvindo as pregações dos Apóstolos se convertiam, confessando quem tinham negado, e adorando quem tinham tratado com desprezo.
Lhes. Esta palavra designa aqueles para quem Cristo pediu indulgência; e parece serem os primeiros os que o crucificaram e entre si repartiram as suas vestes; e depois destes os que foram causa da sua crucifixão; Pilatos, que o sentenciou; o povo, que gritou: 'crucifica-o, crucifica-o!'; os príncipes dos sacerdotes, os escribas que falsamente o acusaram; e, para subirmos mais alto, o primeiro homem, e toda a sua posteridade que, com os seus pecados, originaram a paixão de Cristo; assim, o Senhor na Cruz pediu perdão para todos os seus inimigos e neste número éramos incluídos também nós, segundo o dizer do Apóstolo: 'Sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho' (Rm 5, 10). Por isso todos nós, mesmo antes de virmos, a este mundo, somos incluídos naquele sacratíssimo memento com que, por assim dizer, Cristo, Sumo Pontífice, orou naquela sacrossantíssima missa, que celebrou no altar da Cruz.
Não sabem o que fazem. Jesus atenua ou desculpa Cristo o delito dos seus inimigos. Não podia certamente desculpar nem a injustiça de Pilatos, nem a crueldade dos soldados, nem a inveja dos príncipes dos sacerdotes, nem a astúcia e a ingratidão do povo, nem os falsos testemunhos dos perjuros; e por isso só restava dar desculpa a todos pela ignorância; certamente, pois, como diz o Apóstolo (1Cor 2), se eles o conhecessem, nunca teriam crucificado o Senhor da Glória; mas, posto que nem Pilatos, nem os príncipes dos sacerdotes, nem o povo, nem os executores, conheceram que Cristo era o Rei da Glória; reconheceu Pilatos, que Ele era um homem justo e santo e que, por isso, lhe tinha sido entregue por inveja pelos príncipes dos sacerdotes; e sabiam os príncipes dos sacerdotes que Ele era sem dúvida o Cristo, prometido na lei, como diz Santo Tomás, pois nem podiam negar, nem negavam, que Ele fazia muitos milagres, que os Profetas tinham anunciado que o Messias havia de fazer. Conheceu finalmente o povo, que Cristo era inocentemente condenado, pois bem claramente lhe disse Pilatos em alta voz: 'Não acho nele crime algum... 'Eu sou inocente do sangue deste justo' (Lc 23; Mt 27).
Não obstante, pois, não terem conhecido nem os judeus, nem os príncipes, nem a gente do povo que Cristo era o Senhor da Glória, contudo, se a malícia não lhes tivesse obcecado os corações, ainda assim poderiam tê-lo conhecido, pois assim disse São João: 'Mas, sendo tantos os milagres que fizera em sua presença, não criam nele, porque Isaías disse: Obceca o coração deste povo, e ensurdece-lhe os ouvidos, para que, tendo olhos, não veja, e tendo orelhas, não ouça, e se converta, e eu o sare' (Jo 12, 37-40).
Nem aquela cegueira desculpa o cego, porque é voluntária, e concomitante, e não precedente: assim todos aqueles que pecam por malícia, laboram sempre em alguma ignorância, que os não desculpamos, porque não é precedente, mas concomitante... Do mesmo modo todo o que obra mal, aborrece o esclarecimento da razão, e labora em ignorância voluntária, que não desculpa, por isso mesmo que é voluntária. Mas, se tal ignorância não desculpa, como é que o Senhor diz: 'Perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem'? A isto se responde, que aquelas palavras podem entender-se, em primeiro lugar, a respeito dos que o crucificaram, os quais eram prováveis que ignorassem completamente, não só a divindade de Cristo, mas também a sua inocência; e que só fizeram o que fizeram em cumprimento do seu ofício e, a favor destes, com toda a verdade disse o Senhor: 'Meu Pai perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem'. Em segundo lugar, se elas se entenderem a respeito de nós, que ainda não existíamos, ou a muitos pecadores ausentes, que certamente ignoravam o que então se estava passando em Jerusalém, com a mesma verdade disse também o Senhor: 'Não sabem o que fazem'.
Se finalmente se entenderem em relação ao que presenciavam aquele ato, que sabiam que Cristo era o Messias ou não ignoravam que era um homem inocente, há-se confessar-se, que a caridade de Cristo foi tão intensa, que quis atenuar, do modo quanto pôde, o malefício dos seus inimigos. Pois, ainda que aquela ignorância por si só não possa ter desculpa, muito mais grave seria o seu malefício se ele se desse sem ignorância nenhuma. Ainda que o Senhor não ignorasse que aquela desculpa não era senão uma sombra dela, quis contudo empregá-la para nós conhecêssemos a sua benevolência para com os pecadores, mesmo que fosse em favor de Caifás ou de Pilatos.
(Excertos da obra' As Sete Palavras de Cristo na Cruz', de São Roberto Belarmino)