terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

TRÊS REFLEXÕES PARA A QUARESMA 2021 - I

SOBRE O NÚMERO DOS ELEITOS

Pois bem! exclama a razão, poucos serão os eleitos? Perder-se-á eternamente a multidão do gênero humano? Seria frustra para a maioria da humanidade a redenção que o sangue de Jesus Cristo operou? Seria a misericórdia de Deus dalgum modo vencida pela justiça divina? Recolheria ela apenas poucos eleitos e deixaria cair no abismo eterno a avalancha dos condenados?

Assim fala a razão, seguindo o impulso da sensibilidade natural. Ora essa linguagem não é sóbria nem judiciosa. O número dos eleitos é uma questão de fato, sobre que o raciocínio perde todos os direitos. Dá-nos a Sagrada Escritura – expressão do pensamento divino – algum esclarecimento sobre o problema dos destinos humanos? Eis o que se deve buscar com espírito submisso, e uma vez exposta à luz meridiana a resposta da Sagrada Escritura, à razão só lhe cabe inclinar-se e adorar.

Na Sagrada Escritura se encontram a respeito do problema dos eleitos textos concordantes que sempre nos pareceram peremptórios.

Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição e muitos são os que entram por ela. Que estreita é a porta, e que apertado o caminho que conduz à vida, e quão poucos são os que acertam com ele (Mt 7, 13-14).

São muitos os chamados, e poucos os escolhidos (Mt 20, 16 e 22, 14).

E alguém lhe perguntou: 'Senhor, são poucos os que se salvam?' E ele disse-lhes: 'Esforçai-vos por entrar pela porta estreita (da penitência); porque vos digo que muitos procurarão entrar, e não o poderão' (Lc 13, 23-25).

Ao nosso ver, as declarações do Salvador são de uma clareza indubitável. Como negar que não se está falando da salvação das almas? Estão abertos os dois caminhos: o largo que conduz à perdição, e o apertado que conduz à vida. E é com dor que Nosso Senhor atesta, numa concepção abrangente, que muitos caminham no primeiro e poucos seguem o segundo.

E se alguém alegar que a misericórdia divina há de impedir à beira do abismo a maioria dos homens que nele se precipita? Nosso Senhor destroçou essa ilusão, quando à pergunta dos discípulos: 'São poucos os homens que se salvam?', respondeu ele: 'Procurai entrar pela porta estreita; porque, digo-vos, muitos procurarão entrar e não o conseguirão'. Assim quem não se esforça a fim de entrar pela porta estreita, não há de ser um esforço tardio que lhe vai permitir a entrada, ficando deste modo do lado de fora.

Esses textos se nos apresentam – nunca é demais repetir – com tal clareza que nenhuma agudeza os poderia obscurecer. Mas é preciso interpretar a Sagrada Escritura de acordo com o ensinamento da Igreja que, revigorando-se a cada época, constitui a chamada Tradição. Em qualquer ponto em que haja ambiguidade, a Tradição em último caso fixa a doutrina que os fiéis devem considerar de fato como a palavra de Deus. Se o problema é o número dos eleitos – consultemos a Tradição.

Se a voz dos primeiros padres, dos doutores da Igreja, dos escolásticos da Idade Média, dos teólogos e dos célebres pregadores modernos nos declara que os eleitos, i. e. os salvos, são poucos em relação aos condenados, é evidente que o problema está resolvido. A Sagrada Escritura de per si já era bem clara; por seu lado, a Tradição não permite que nos desviemos do sentido óbvio dos textos, por isso estabelece de uma vez para sempre a interpretação e a impõe como regra para os cristãos.

... Os dois caminhos – o largo e o apertado – que Nosso Senhor descreveu no Evangelho reaparecem a todo instante nos escritos da época apostólica. Os antigos autores os simbolizavam na forma da letra Y, que designava uma bifurcação. O documento velhíssimo intitulado Doutrina dos Doze Apóstolos [Didaqué] começa com a parábola dos dois caminhos: o caminho de luz e o de morte e trevas.

Nas homilias atribuídas a São Clemente, lê-se o seguinte: Existem dois caminhos. Um é o caminho dos que perecem: ele é largo e plano, e nele nos perdemos sem cansaço; o outro é o caminho dos salvos: ele é estreito e acidentado, e com muito trabalho nos conduz à salvação.(Hom. VII)

A epístola atribuída a São Barnabé contém o mesmo ensinamento: Há dois caminhos: um de luz e outro de trevas. Grande é a diferença entre eles. O primeiro está marginado pelos anjos de Deus, e o segundo pelos anjos de satã. O autor descreve as obras opostas pelas quais se vão a um ou a outro caminho. Ele chama claramente o segundo de 'o caminho da morte eterna e do suplício infindo' (II Pars. C. XVIII.)

A parábola dos dois caminhos estava de tal forma gravada no espírito dos herdeiros imediatos da Tradição Apostólica que Clemente de Alexandria a insere logo no início de sua obra: Um é apertado, porque o encurtaram os mandamentos e as proibições; o outro é largo e espaçoso, porque nele se dá plena liberdade à voluptuosidade e à cólera. Pitágoras aqui nos proíbe de seguir o sentimento da multidão que, segundo ele, é amiúde temerário e absurdo (Strom., lib. V, c. 5) .

Orígenes não é menos claro ao explicar os dois caminhos e o pequeno número relativo de cristãos verdadeiros. Agora que nos multiplicamos, tornou-se difícil que todos sejamos verdadeiramente bons, e impossível que a palavra de Jesus – muitos serão chamados, e poucos os escolhidos – não se cumpra: dentre as pessoas que professam a fé cristã, poucas encontramos que tenham verdadeira fé e sejam dignas da beatitude (Hom. IV. in Jer.).

Até o poeta semi-cristão Ausônio menciona duas vezes em seus versos a letra simbólica Y, e descreve as duas rotas em que se abre esta bifurcação. Escreveu Lactâncio, para instrução do imperador Constantino, um tratado inteiro sobre os dois caminhos que, à semelhança da letra Y, representam o curso bifurcado das vidas humanas. Um braço dobra para o oriente e indica a boa vida; o outro para o ocidente e indica a vida má; só quem segue a justiça e a verdade há de receber a recompensa imortal e entrará na posse da luz eterna. Ora, segundo o Salvador, o número dos que caminham nesta direção é pequeno (Inst., lib. VI, c. 3). São Jerônimo menciona essa obra de Lactâncio, e também se serve do simbolismo da letra Y, 'que, observa ele, representa uma bifurcação da vida, que se orienta à direta ou à esquerda' (Epist. LVXI ad Pam., CVII ad Laet).

Nós como que amontoamos estes textos concordantes dos primeiros Padres, a fim de deixar claro que o pensamento deles estava mui apegado às palavras de Nosso Senhor, às quais consideravam as mais austeras e práticas; não tinham eles dúvidas de que tais palavras indicavam manifestamente a salvação ou a perdição das almas. Que respondem os modernos, segundo os quais essa célebre passagem do Salvador aludiria tão-somente ao reduzido número de judeus que aceitariam o ensinamento e entrariam na Igreja? Não era este o entendimento dos antigos Padres, que enxergavam nesta doutrina a apreciação do Salvador relativa aos caminhos opostos da vida humana; portanto, essas palavras ainda são atuais. Agora vamos apresentar citações taxativas dos Padres sobre o pequeno número dos eleitos.

Tertuliano: 'Nem todos são salvos, apenas uns poucos judeus e cristãos'

Santo Irineu: 'Tanto hoje em dia quanto no tempo do Antigo Testamento, Deus não se agrada do grande número: muitos serão os chamados mas poucos os escolhidos' (Contra haer., c. XXXVI.)

Santo Hilário: 'Toda carne será julgada; bem-aventurado serão os escolhidos, pois segundo o Evangelho muitos serão os chamados mas poucos os escolhidos' (Enar. in Psal., LXIV.)

São Basílio faz uma exortação sobre o comportamento do religioso: 'Fica ao lado dos poucos. O bem é raro: apenas uns poucos entram no reino dos céus. Não acredites que quem habita nas celas está salvo, a despeito da boa ou má vida que leva' (Sermão da renúncia do século; PG 31, 646.)

Santo Efrém comenta no mesmo sentido sobre a porta estreita e o caminho apertado. São Gregório Nazianzeno chama aqueles que se perdem de poeira infinita, em comparação com os vasos de eleição. (Sermão 42 para 150 bispos; PG 36, 467). Santo Ambrósio, à pergunta do salmo 'Senhor, quem habitará em vosso tabernáculo, quem repousará na vossa montanha santa?', responde: 'Alguém será, mas poucos; non utique nullus, sed rarus' (In Apol. pro Davide, c. IX.)

Ao pregar para o povo de Antioquia, exclamava São João Crisóstomo: Quantos pensais que se irão salvar nesta cidade nossa? O que vou dizer é doloroso, mas ainda assim vou dizê-lo. Entre tantos milhares de pessoas, não haverá cem que serão salvas; e mesmo assim não estou certo desse número: a perversidade é muita entre os moços, e muita a negligência entre os velhos. (Homilia 24 acerca dos Atos dos Apóstolos; PG 60, 189)

... De acordo com a palavra do Salvador, haverá tanta penúria de santos – muitos serão os chamados, mas poucos os escolhidos – que seu minguado número é comparado às raríssimas oliveiras que ficam de pé após serem sacudidas e colhidas: ou então aos cachos, ou antes, aos bagos espalhados que os pobres se põem a catar depois da vindima (In Isai., c. XXIV, 13-14; PL 24, 294.)

Mais adiante vamos transcrever longos trechos de Santo Agostinho a respeito do número dos salvos. Por enquanto nos basta a transcrição da passagem seguinte, que é mui significativa: Decerto são poucos os que se salvam. Recordai-vos da pergunta que está nos Evangelhos: 'Senhor, são poucos os que se salvam?' Que respondeu o Senhor? Ele não disse: não vos amofineis, pois os salvos são muitos! Não, ele não disse isso. E o que foi que disse? 'Esforçai-vos por entrar pela porta estreita'. Ao falar assim, confirma o que se acabou de escutar. São poucos os que passam pela porta estreita. Mais ainda, disse ele: 'Estreita é a porta e apertado o caminho da vida e raros os que acertam com ele'. De que nos serve desfrutar com as multidões? Escutai-me, vós que sois poucos. Sois muito inclinados a me escutar, mas pouco a me obedecer. Eu vos peneiro e cato os grãos de trigo, mas é raro enxergar algum grão quando bate o vento: no entanto, toda a palha é vã. São poucos os que se salvam, se comparados aos muitos que perecem (Sermão 106, ou De Verbis Domini 32; PL 38, 641-642.)

São Leão Magno explica também – e sem hesitar – a parábola do Senhor acerca dos dois caminhos, e da imensidão daqueles que se perdem eternamente: Enquanto a multidão frequenta o caminho largo que conduz à morte, nas sendas da salvação só vemos as raras pegadas dos poucos que nele entram. (Sermão 49, c.2; PL 54, 302.). São Gregório Magno, entre outras passagens típicas, nos proporciona este fragmento dum sermão dirigido ao povo: Muitos vêm até a fé, mas poucos vão até o reino dos céus. Estais reunidos aqui em grande número para a presente solenidade; lotais o recinto desta igreja: quem sabe quão poucos dentre vós são os escolhidos de Deus? (Homilia sobre o Evangelho 19, pár.5; PL 76, 1157.)

Ainda há necessidade de citar os últimos Padres da Igreja, os doutores São Beda o Venerável, São Pedro Damião, Santo Anselmo e São Bernardo? Neles se encontra exatamente a mesma linguagem e maneira de interpretar a Santa Escritura. Santo Anselmo em particular é bem instrutivo; escreve ele aos seus discípulos Odão e Lanzão: Estamos certos de que entre os muitos chamados existem poucos escolhidos, pois a Verdade assim o disse; mas quão poucos, nós não temos certeza, pois a Verdade não o disse. Por isso quem não viva ao estilo do pequeno número, quem não se corrija e se ponha de par com o pequeno número, esteja certo da condenação. Quanto a quem esteja com o pequeno número, não se sinta seguro da eleição, uma vez que ninguém sabe ao certo se faz ou não parte do número dos escolhidos, embora sua vida já se assemelhe à do pequeno número e difira da vida da multidão dos chamados (Epist. II, lib. I; PL 158, 1065.)

Conclusão: em qualquer estado, esforcemo-nos para ficar cada vez mais seguros da eleição. Nesses mesmos termos escreve o santo doutor à condessa Ida (Epist., XVIII, libr. III; PL 159, 43). Era-lhe muito cara essa recomendação, que lhe parecia importantíssima. Assim são unânimes os Padres: unânimes acerca da afirmação do pequeno número dos eleitos e do grande número dos condenados; unânimes na interpretação dos textos da Santa Escritura em torno do assunto.

Para eles a sentença escriturária 'Muitos serão os chamados, mas poucos os escolhidos' dirige-se ao pequeno número dos salvos; para eles não existe a fantasiosa distinção entre escolhidos e salvos; no ensinamento deles ambos os termos são idênticos. Para eles os dois caminhos, o caminho largo e o caminho apertado, são os caminhos que conduzem os homens à perdição eterna ou à salvação eterna; para eles a resposta de Nosso Senhor à pergunta: 'São poucos os homens que se salvam?' é sem dúvida afirmativa.

Nunca os Padres tiveram contato com as explicações ambíguas e enviesadas de alguns modernos, segundo as quais – como já dissemos – Nosso Senhor simplesmente aludira ao estado do judaísmo coetâneo e ao ingresso dos judeus na Igreja que Ele fundara. Longe de pensar que esses textos já se não aplicam a nós – o que seria aborrecer e destruir a virtude da Palavra Divina, que pertence a todos os tempos e lugares – ensinaram os Padres que eles se dirigem a todos nós, conforme a intenção do Salvador, que era indicar as precondições da salvação; logo devemos tê-los sempre diante dos olhos e meditá-los.

Por conseguinte, não hesitavam em pregar às gentes o número relativamente pequeno dos eleitos, i. e., dos salvos. Propunham-se, deste modo, a inspirar nos ouvintes um temor salvífico. Diziam: 'Rompei com o mundo, separai-vos da multidão para não perecer com ela, que caminha para a perdição por caminhos licenciosos; esforçai-vos para chegar à vida pelo caminho do sacrifício'. Quem ousaria ir contra uma linguagem diametralmente oposta à dos Padres da Igreja?

(Pe. Bernard Marechaux, excertos de artigo publicado originalmente no site Permanência)

Observação (do autor do blog): são palavras duras e, mais que duras, verdadeiras e amparadas pela mais sólida Tradição da Igreja. Ai dos homens que serão julgados pela justiça divina! Existe, diante de tudo isso, uma opção, uma opção a ser adotada como regra de vida: colocar a disposição completa de nossas vidas aos cuidados e proteção da misericórdia infinita do Coração de Jesus, sob a intercessão diária e constante da Virgem Santíssima. Esse é o caminho seguro, mais fácil e mais confiável de todos para entrar pela porta estreita. E oração, muita oração, pelos que não trilham estes caminhos!