A Evacuação de Dunquerque constitui um dos grandes eventos épicos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. A França foi ocupada numa operação blitzkrieg [guerra-relâmpago] das divisões alemãs no início de maio de 1940, através da fronteira com a Bélgica. Na invasão, os alemães imprimiram derrotas avassaladoras sobre as tropas aliadas em batalhas sucessivas, que permitiram um avanço muito rápido do exército alemão pelo norte da França e que culminou na conquista de todos os portos ao longo do Canal da Mancha. Acuados e empurrados pelo exército alemão, as tropas aliadas se entrincheiraram no porto de Dunquerque, ao longo de uma estreita faixa de mar separando o continente e a Inglaterra, como único e último refúgio disponível contra a morte ou captura pelo inimigo.
Em pouco tempo, um contingente gigantesco de tropas aliadas (formado basicamente por soldados britânicos e franceses) ficou encurralado na praia de Dunquerque e a operação de resgate e evacuação desse exército ficou conhecida como 'Operação Dínamo', que mobilizou inicialmente grandes navios e contratorpedeiros que, em função do grande porte, não tinham como acessar a praia para efetuar o resgate dos soldados e tiveram, então, que permanecer em compasso de espera em alto mar. Centenas de embarcações menores (essencialmente barcos civis) foram mobilizadas em tempo recorde para a transferência dos soldados da praia até os navios ancorados em alto mar. No período entre 26 de maio e 04 de junho de 1940, cerca de 340.000 soldados (de um total estimado de 400.000 homens) atravessaram o canal e chegaram em segurança à Inglaterra.
A questão clássica colocada pelos registros históricos do evento, muitas vezes abordada pelo contexto de um 'milagre', é como tal travessia de magnitude tão extremada foi possível. Os soldados amontoados na praia, as pequenas embarcações e os grandes navios ancorados em alto mar constituíam alvos frágeis e completamente desprotegidos contra os ataques da Luftwaffe, a força aérea de Hitler. Por que essa operação de fuga não redundou então num massacre completo?
A resposta dos registros históricos é absolutamente simplista: 'porque Hitler evitou isso mandando abortar a ofensiva aérea e o avanço dos panzers [tanques de guerra alemães], mesmo contra a opinião de muitos dos seus oficiais'. Dez de dez descrições atuais sobre o tema limitam-se a explicar o imponderável com essa justificativa insossa. A obra 'Dunkirk - A História Real por trás do Filme' (2017), de autoria de Joshua Levine, que aborda o evento à luz das filmagens de 'Dunkirk' (2017), filme dirigido por Cristopher Nolan, desmistifica esse cenário e joga por terra a teoria insossa de uma 'ponte dourada' para garantir a evacuação em massa dos soldados aliados:
'Ao longo dos anos, tem-se argumentado que a principal motivação de Hitler
para deter os panzers era fornecer à BEF [Força Expedicionária Britânica] uma 'ponte dourada' para retornar em
segurança para a Inglaterra. Que, em outras palavras, ele estava interessado em
deixar a BEF escapar. Ninguém discutiu isso com mais insistência do que o
próprio Hitler, depois que a maioria dos britânicos já tinha escapado. O chefe de
gabinete de Rundstedt também fez essa afirmação depois da guerra. Ambos
tiveram suas razões; Hitler para justificar seu erro de julgamento, o assessor de
Rundstedt para isentar a si e a seu chefe.
Não havia ponte dourada. A teoria é falsa e é um insulto aos soldados que
escaparam e àqueles que os trouxeram para casa... dos cerca de novecentos navios e embarcações envolvidos na
evacuação final, mais de um terço foram afundados ou danificados por bombas,
minas, torpedos ou projéteis. Além disso, cerca de 3.500 soldados britânicos,
marinheiros e civis foram mortos no mar ou nas praias entre 26 de maio e 4 de
junho. Muitos mais foram mortos no perímetro de Dunkirk [transcrição do nome do porto para o inglês] pelas tropas de Hitler,
que atacaram ferozmente. Afinal, que maneira melhor para forçar a mesa de
negociações do que destruir um exército? Nenhum desses fatores sugere a
existência de uma ponte dourada... Um relato sobre um
navio-hospital sendo metralhado enquanto ajudava um aviador abatido é
suficiente para dissipar qualquer suspeita de que Hitler estava permitindo que os
britânicos escapassem. Histórias como essa deixam pouca evidência de pontes
douradas sendo construídas em maio e junho de 1940'.
Se a explicação para um evento tão singular e extraordinário não é essa abordagem simplista e insossa, quais fatos realmente induziram a epopeia da evacuação de Dunquerque? A mesma obra dá pistas interessantes sobre fatos pouco conhecidos da Operação Dínamo, e sistematicamente não contemplados pelos registros históricos oficiais, pelas transcrições seguintes:
'Estive no canal da Mancha, e é um braço de mar difícil. Para
mim, o primeiro milagre de Dunkirk foi o clima. O que tornou tudo possível foi
essa ridícula aparência de mar calmo, como o Canal nunca é. Não foi tão absurdo
Hitler acreditar que a evacuação não teria como ser bem-sucedida: quem poderia
esperar que alguém fosse conseguir atravessar o canal em um barco a remo?' [Joshua Levine, autor do livro].
Durante a filmagem, uma tempestade danificou o molhe reconstruído [especialmente para o filme] e arrancou
a passarela de madeira no topo. 'O mar é poderoso'', contou Nathan [Nathan Crowley, produtor de design do filme], 'foi o que
descobrimos. Foi uma grande preocupação'. Nosso engenheiro da Warner Brothers
disse: 'É uma estrutura incrível, mais forte do que a maioria dos cais permanentes
em que já estive'. Mas, como era uma estrutura aberta, as ondas bateram embaixo
e arrebentaram as tábuas'...Chris [Cristopher Nolan, diretor do filme] e sua equipe não tiveram o bom tempo milagroso da evacuação, mas, se
não ficaram satisfeitos historicamente, conseguiram satisfação artística: 'Tempo
ruim fica muito melhor no filme', explicou Nathan, 'ter o sol no cinema não é
bom, embora fosse mais historicamente verdadeiro'.
A Luftwaffe, que foi impedida pelas condições climáticas naquele 28 de maio,
também saiu prejudicada na manhã seguinte, cheia de nuvens baixas. Goering [Hermann Göring, comandante da Luftwaffe] ficou furioso mas, apesar de todo o seu poder, não conseguia fazer retroceder as
nuvens. Entretanto, uma melhora no clima, ao meio-dia, permitiu que os alemães
lançassem ataques maciços consecutivos, dois dos quais não encontraram
resistência. Foi o dia em que o Crested Eagle afundou, bem como muitos outros
navios, e o molhe foi erroneamente abandonado durante várias horas...
Por outro lado, 'na maior parte do tempo, nuvens baixas e chuvas tempestuosas ocasionais davam aos Aliados cobertura contra ataques aéreos alemães. Dos nove dias de evacuação, a Luftwaffe teve apenas dois dias e meio de condições claras de voo. O clima também desempenhou um papel importante nas operações marítimas, com ventos fracos que proporcionaram mar calmo ao longo do Canal, crucial para os pequenos barcos em particular'*.
* (Weather eye: Low cloud and light winds aided Dunkirk evacuation, The Times, 26/05/2020)
O fato singular e extraordinário da evacuação de Dunquerque foi o clima - o bom tempo milagroso - que permitiu o mar calmo, o tráfego controlado e ordenado de centenas de pequenas, médias e grandes embarcações apinhadas de homens e na direção segura de uma mesma rota, enquanto, ao mesmo tempo, uma barreira de nuvens espessas e baixas impediu a ofensiva alemã em grande parte do tempo em que ocorreu o resgate por mar de milhares de homens. O Milagre de Dunquerque não foi obra da vontade de um genocida mas a intervenção direta da Providência Divina para fazer nascer ali o farol que iluminaria a Inglaterra e a resistência aliada para, mais tarde, derrotar definitivamente Hitler e o odioso regime nazista.