terça-feira, 13 de outubro de 2015

ANJOS E DEMÔNIOS (II): SANTA GEMMA GALGANI


Um dos dogmas mais consoladores da nossa crença é o dos Anjos Custódios. Depois do pecado original, o homem, enfraquecido e miserável, tinha necessidade de auxílio e conselho para andar pelo caminho do bem e atingir o fim para que foi criado. Em sua misericórdia infinita e paternal ternura, o Senhor veio em auxílio dos pobres filhos de Eva que queria salvar, colocando-os sob a proteção dos Anjos, ministros da Sua Corte Celeste. Cada um de nós é assistido por um destes puros espíritos, que chamamos com razão 'o nosso bom Anjo'. Toma-nos pela mão, logo que entramos na vida, para não mais nos deixar durante a nossa peregrinação pelo mundo. 'Eis', diz o Senhor, 'que Eu envio o meu Anjo para ir adiante de ti, para te proteger no caminho e introduzir no lugar que te preparei'.

Se Deus provê com solicitude as necessidades de todas as suas criaturas, tem um particular cuidado com as eleitas que, como Ele mesmo diz, lhe são tão queridas como as meninas dos seus olhos e, entre os escolhidos, tem ainda preferências. Daí resultam os diferentes graus de importância da missão misericordiosa dos Anjos Custódios. Estando Gemma predestinada para um grau muito elevado de glória e felicidade celeste, era natural e conforme à sabedoria divina que o anjo proposto para a guardar tivesse com ela um cuidado muito especial. A graça que já se manifestava nesta alma ditosa por fenômenos tão prodigiosos, ia aumentar de um modo não menos prodigioso com a assistência do seu bom Anjo.

Quem não conhecesse pelos Sagrados Livros a tocante história de Tobias e pela hagiografia cristã a sua frequente repetição na vida dos santos canonizados, seria tentado talvez a supor exagerados os detalhes maravilhosos que vou referir. Mas o Senhor prodigaliza todos os dias aos seus filhos bens muito preciosos sem que ninguém se lembre de lhe dizer: 'por que Vos mostrais tão bom'? Gemma estava admiravelmente preparada para os favores do seu Anjo pelas mais belas virtudes: inocência, pureza, candura, simplicidade de criança, e, acima de tudo, uma fé muito viva que lhe deixava ver quase a descoberto os mistérios da eternidade. Com certeza o espírito celeste devia encontrar na sua feliz protegida alguma semelhança com a natureza angélica que lhe permitia, sem se rebaixar muito, conservar com ela relações familiares. O mais maravilhoso neste suave comércio era a presença sensível e quase contínua do Anjo da Guarda.

Gemma via-o com os olhos do corpo, tocava-o com as mãos, como se fosse uma pessoa viva, conversava com ele como com um amigo. Escrevia-me o seguinte: 'Há seis dias que não vejo Jesus. Ele porém não me deixou completamente só; o Anjo da Guarda conserva-se sempre visível junto de mim'. Com que fervor dava graças a Deus por este benefício, e testemunhava ao espírito protetor o seu reconhecimento! 'Se alguma vez for má, querido Anjo', lhe dizia ela, 'não te zangues. Quero mostrar-te a minha gratidão'. – 'Sim', respondia o celeste guarda, 'serei teu guia e teu companheiro inseparável. Não sabes quem te confiou à minha guarda? Foi o misericordioso Jesus'. A estas palavras a santa menina, não podendo conter os sentimentos da sua alma, perdia os sentidos e entrava em êxtase na companhia do seu Anjo. O que se passava então ela mesma o conta por estas simples palavras: 'Permanecíamos ambos com Jesus. Oh! Se estivésseis conosco Padre...'. 

Permanecer com Jesus era mergulhar-se, com o espírito e o coração, no oceano imenso da Divindade para aí aprender e contemplar inefáveis mistérios. De ordinário, Gemma e o Anjo da Guarda passavam os seus colóquios a orar juntamente ou a louvar o Altíssimo. Os Anjos, segundo um santo Doutor, deleitam-se em assistir às almas em oração. O arcanjo Rafael disse ao velho Tobias que durante as suas orações ele mesmo as oferecia secretamente ao Senhor. Que objeto de complacência devia ser para o seu Anjo da Guarda esta admirável menina cujo coração, como a lâmpada do Santuário, velava sempre diante do seu Deus com extraordinária vivacidade de fé? Gostava de lhe aparecer, uma vezes ajoelhado ao seu lado, outras elevado da terra, com as asas abertas e as mãos estendidas sobre ela, ou juntas na atitude de orar. Recitavam alternadamente as orações vocais e os salmos, e, se diziam jaculatórias, 'era' [ele], segundo as próprias palavras de Gemma, 'quem com mais força exclamava: Viva Jesus! Bendito seja Jesus! E outras afetuosas aspirações'.

Nas horas de meditação, o Anjo infundia-lhe no espírito luzes altíssimas, dava ao seu coração suaves e fortes impulsos para que o santo exercício fosse perfeito, e, como a Paixão do Salvador era quase sempre o assunto da meditação, descobria-lhe os seus profundos mistérios. 'Considera', dizia ele, 'quanto Jesus sofreu pelo homem, considera uma por uma estas chagas. Foi o amor que as abriu todas. Vê quão horrível é o pecado cuja expiação custou tanta dor e tanto amor'. Estes belíssimos pensamentos iam ferir o coração da donzela como outros tantos raios de luz e de fogo. Tendo assistido pessoalmente muitas vezes às orações e às meditações de Gemma e do seu Anjo da Guarda, pude convencer-me, só pelas minhas observações exteriores, da realidade de todos os detalhes que ela me dava depois do exercício nas suas comunicações de consciência.

Notei igualmente que todas as vezes que ela levantava os olhos para o Anjo a fim de o ouvir ou lhe falar, mesmo fora da oração, perdia o uso dos sentidos. Nesses momentos, podia-se picar, queimar sem que a sua sensibilidade fosse despertada. Mas vinha a si logo que afastava os olhos do Anjo ou cessava o colóquio. Este fenômeno renovava-se infalivelmente em cada uma das suas comunicações celestes, por mais próximas que fossem. Sempre e por toda a parte, no meio das ocupações, no caminho, mesmo à mesa, o Anjo esta à disposição de Gemma e Gemma à disposição do Anjo. Nenhum sinal exterior manifestava os seus santos colóquios, exceto a absoluta imobilidade da vidente e o brilho sobrehumano do seu olhar. Bastava tocá-la para nos convencermos, em atenção à sua insensibilidade, que estava fora dos sentidos e em relações com o sobrenatural. Estes colóquios respiravam muitas vezes a maior simplicidade, e a familiaridade do Anjo só tinha igual na do Arcanjo Rafael com o jovem Tobias.

'Dizei-me, meu Anjo', interrogava a donzela, 'o que tinha esta manhã o meu confessor para ser tão severo e recusar ouvir-me? E o Padre, responderá de Roma à carta urgente em que lhe peço uma regra de conduta sobre tal ponto? Dize-me, meu querido Anjo, quando é que Jesus me converterá este pecador por quem me interesso? Que devo responder a tal pessoa que me pede conselho? E o que vos parece de mim? Jesus está contente? Como poderei agradar-Lhe'? O Anjo, acomodando-se com uma encantadora condescendência a esta ingenuidade algo tanto importuna, respondia a tudo. E os acontecimentos não tardavam a mostrar a origem sobrenatural das respostas. Seria preciso um volume para referir estas diversas comunicações, mas talvez me fosse preciso um outro para defender a sua realidade, tão extraordinárias parecem muitas vezes e tão difíceis de aceitar pelo racionalismo contemporâneo.

Pode dizer-se, de um modo geral, que o Anjo da Guarda era para Gemma um segundo Jesus. Ela expunha-lhe as suas necessidades e as dos outros, queria-o incessantemente junto de si durante os seus temores e sobretudo durante as lutas contra o infernal inimigo; confiava-lhe diversas mensagens para Deus, para a Virgem Santíssima, para os santos seus advogados, dava-lhe até cartas fechadas e lacradas com destino a um ou outro destes advogados, pedindo-lhe que a seu tempo trouxesse a resposta, e a maravilha é que estas cartas eram levadas realmente por um ser invisível. Depois de ter tomado todas as precauções para me certificar da intervenção de uma causa sobrenatural no seu desaparecimento, vi que me devia convencer de que, neste ponto, como em outros não menos prodigiosos, o Céu, para assim dizer, queria brincar com uma menina, cuja simplicidade lhe era tão querida.

Muitas vezes encarregava o Anjo da Guarda de um negócio particular perante alguma pessoa deste mundo, e qual não era a sua admiração quando não via chegar a resposta! 'E não obstante', escrevia ela, 'há já tantos dias que vo-lo mandei dizer pelo Anjo; como não fizeste caso? Ao menos podíeis mandar-me dizer por ele que não era vossa intenção ocupar-vos deste negócio. Em todo o caso não vos zangueis, insisto de novo por meio deste carta'.

Deste modo o mensageiro celeste encontrava-se constantemente preparado para o serviço desta jovem virgem de inefável candura. Além disso, prestava-se de bom grado a todos os seus desejos, acudia, mesmo sem ser invocado, ao menor perigo, à menor necessidade; refreava a audácia do demônio, sempre pronto a maltratar a sua protegida, e algumas vezes lutava para tirá-la das suas mãos brutais. Eis alguns fatos relativos a esta assistência: uma vez, estando à mesa ainda em casa de seus pais, uma das pessoas presentes, deixando-se levar pelos maus costumes do nosso tempo, proferiu uma blasfêmia contra o adorável Nome de Deus. Logo que Gemma a ouviu perdeu os sentidos com a dor e ia a cair da cadeira; antes, porém, que batesse com a cabeça no chão, o Anjo a acudiu e com uma só palavra dita ao coração fez-lhe retomar imediatamente os sentidos. Por outra vez, perdida na contemplação, encontrava-se ainda na igreja, sendo já tarde; o Anjo advertiu-a e na volta acompanhou-a, sob uma forma visível, até à porta de casa.

Um dia o demônio tinha-lhe batido tão cruelmente no momento da oração da noite que a pobre menina ficou impossibilitada de se mover. O Anjo da Guarda ofereceu-lhe o seu auxílio, ajudou-a a subir para o leito e pôs-se de guarda à cabeceira. O Anjo avisava-a em muitas circunstâncias em que a sua vida podia correr perigo e indicava-lhe as precauções a tomar. Sem a sua intervenção, por mais de uma vez teria sido vítima de algum acidente, tão pouco era o cuidado que tinha de si. Um dia disse-lhe [o Anjo] em tom de amável censura: 'Pobre pequena, como és imperfeita; tenho de velar continuamente por ti'.

A missão dos Anjos Custódios tem como objeto principal os interesses espirituais das almas. Eles devem ser, segundo os desígnios da Providência, instrumentos de santificação para nos conduzir pelos caminhos difíceis da virtude. O Anjo de Gemma não perdia uma ocasião de a repreender, de a aconselhar e mesmo de a instruir por ensinamentos cheios de celeste sabedoria, que a menina conservou em parte nas relações que enviava ao diretor espiritual. Uma vez, para que não se perdesse uma sílaba, o Anjo fez-lhe escrever alguns destes ensinamentos que ia ditando. Por sua ordem, Gemma sentou-se à mesa, tomou a pena e o papel, enquanto que ele, de pé a seu lado, como um professor junto do aluno, começava: 'Lembra-te que aquele que ama verdadeiramente a Jesus fala pouco e sofre tudo. Ordeno-te, da parte de Jesus, que nunca digas a tua opinião, se não te for pedida, que nunca sustentes o teu sentimento, mas que cedas depressa. Quando cometeres qualquer falta, acusa-te imediatamente sem ser preciso que outros te avisem. Obediência pontual e sem réplica ao teu confessor, sinceridade com ele e com os outros; não te esqueças de guardar a vista, lembrando-te que os olhos mortificados contemplarão as belezas do Céu'.

O santo Anjo sabia usar de rigor com a sua discípula; não lhe deixava passar nenhuma imperfeição e corrigia-a sem piedade, a ponto dela me dizer: 'O meu Anjo é um pouco severo, mas sinto-me bem com isso. Nos últimos dias chegou a repreender-me três a quatro vezes por dia'. Parece até que o vigilante guarda saiu dos justos limites em uma ocasião: 'Ontem', escrevia-me Gemma, 'durante a refeição levantei os olhos e vi o Anjo lançar-me olhares severos, não falava. Mais tarde ,quando fui repousar, olhei outra vez para ele, mas baixei a vista depressa; meu Deus como estava irritado'! Disse: ‘Não tens vergonha de cometer faltas em minha presença?’ Lançava-me alguns olhares tão severos... eu não fazia senão chorar. Supliquei a Deus e a minha celeste Mãe que o tirasse de diante de mim, pois não podia resistir mais. De quando em quando repetia: ‘Envergonho-me de ti.’ Pedi para que ninguém o veja neste estado, pois os que o vissem com certeza não quereriam mais aproximar-se de mim. Sofri um dia inteiro, não pude recolher-me um só momento; o seu aspecto permanecia tão severo que eu não tinha coragem para lhe falar. Ontem de noite não consegui adormecer até que, finalmente, pelas duas horas da manhã, o vi aproximar-se; pôs-me a mão sobre a fronte dizendo: ‘Dorme, má.’ E não o vi mais'.

Não se pode dizer quanto fruto tirava deste magistério angélico a santa menina, sempre sedenta de virtude e de santidade. Atenta ás menores palavras do Anjo, cumpria de todo o coração as penitências que ele muitas vezes impunha, para ver se lhe agradava. 'Repugnava-me muito', dizia-me ela, 'andar a dizer ao meu confessor certas coisas, como o Anjo me ordenava por penitência; todavia obedeci e, logo de manhã, violentando-me, corri a dizer-lhas. Depois desta vitória sobre mim mesma, o Anjo, muito contente, tornou-se bom para mim'. Gemma amava este guarda tão dedicado pelo bem da sua alma. Tinha constantemente o seu nome nos lábios como no coração. 'Querido Anjo', dizia ela, 'quanto vos amo'! – 'E por quê'? perguntava ele. – 'Porque me ensinais a ser boa e a conservar-me na humildade'.

Excertos da obra 'Gema Galgani, Virgem de Luca', do Pe. Germano de Santo Estanislau, tradução do Pe. Matos Soares, 1923).