sábado, 17 de outubro de 2015

ANJOS E DEMÔNIOS (III): SANTA GEMMA GALGANI


Não admira que este vivo afeto, numa alma simples e ingênua, desse origem a uma familiaridade que pode parecer excessiva. Ao ouvir as conversas de Gemma com o seu querido Anjo, ao ouvi-la discutir vivamente para o levar a ter a sua opinião, dir-se-ia que se tratava com um igual. Eu mesmo a princípio fiquei admirado, adverti-a de que era mau o seu proceder e disse-lhe que era orgulhosa, pois levava a familiaridade até ao ponto de tratar por ‘tu’ a um espírito puro em vez de tremer diante dele. Para a experimentar, proibi que ultrapassasse certos limites. A donzela baixou a cabeça e respondeu com toda a humildade: 'Tendes muita razão, Padre; hei de corrigir-me. Daqui por diante direi sempre ‘vós’ ao Anjo; e quando me for dado vê-lo, testemunhar-lhe-ei grande reverência, conservando-me a cem passos atrás dele'.

Na primeira visita do celeste guarda, Gemma advertiu-o da norma de conduta: 'Tende paciência, querido Anjo, o Padre não está contente, preciso de mudar de procedimento'. E absteve-se de ultrapassar o limite marcado enquanto não levantei a proibição. Pela força do hábito, acontecia-lhe muitas vezes enganar-se e misturar o ‘tu’ com o ‘vós’, mas corrigia-se, mesmo em êxtase. Algumas vezes o Anjo não aparecia só, mas com outros espíritos celestes para fazerem alegre companhia à angélica irmãzinha. Logo que tive conhecimento disso, mostrei estar muito descontente e escrevi a Gemma dizendo, sempre para por à prova a sua virtude, que era tempo de acabar. Gemma respondeu: 'Na verdade, Padre, não compreendo nada disso. Os outros, quando estão a rezar, vêem o seu Anjo da Guarda. Se eu também o vejo, ralhais e afligi-vos. Mas ontem, dia em que eles se festejavam, despedi-os a todos. O meu não quis partir, nem o outro em que vos falei; ora que hei de eu fazer? Não vos zangueis outra vez, serei boa e obediente'.

A familiaridade de Gemma com o Anjo da Guarda era simples, espontânea, cheia de humildade, como testemunham as duas seguintes aparições, tomadas entre mil e contadas pela própria menina: 'Estava eu no leito, muito atormentada, quando me senti subitamente possuída de um profundo recolhimento. Juntei as mãos e com toda a força do meu fraco coração fiz o ato de contrição com uma viva dor dos meus inúmeros pecados. Estando o meu espírito absorvido pela lembrança das minhas ofensas, notei o Anjo junto do leito. Fiquei envergonhada de me ver em sua presença. Ele, ao contrário, com uma amabilidade cheia de encanto, disse-me: 'Jesus tem uma grande afeição por ti, ama-O muito'. Depois acrescentou: 'Amas a Mãe de Jesus? Envia-lhe muitas vezes as tuas saudações. Ela fica muito contente em as receber e nunca deixa de as retribuir. Se não o faz sempre sensivelmente, é para experimentar a tua fidelidade'. Abençoou-me e desapareceu'.

Outra visão: 'Enquanto fazia as minhas orações da noite, o Anjo da Guarda aproximou-se de mim e, batendo-me no ombro, disse: ‘Gemma, como é que tu levas tanto desgosto para a oração'? – 'Não é desgosto', respondi, 'há dois dias que não me sinto bem'. Ele continuou: ‘Faze o teu dever com cuidado e Jesus te amará mais'. Roguei-lhe que fosse pedir a Jesus permissão para passar a noite junto de mim. Desapareceu imediatamente e, obtida a permissão, voltou para o meu lado. Oh! Como se mostrou bom! Quando estava para partir, pedi-lhe que não me deixasse ainda. ‘Não posso', respondeu, 'é conveniente que eu vá’. – 'Está bem, ide', eu lhe disse, 'saudai a Jesus por mim'. Lançando-me um último olhar, acrescentou: ‘Não quero que tenhas conversações com as criaturas. Quando quiseres falar, fala com Jesus e com o teu Anjo da Guarda'.

Tal é, pouco mais ou menos, o gênero das outras aparições. Daqui se pode concluir como devia ser amada de Deus esta virgem que recebia a honra de ser assim visitada, assistida e dirigida por espíritos angélicos nos caminhos da santidade. Não lhe tenhamos inveja, porque também nós recebemos do mesmo Pai celeste um Anjo para nos guardar, e se formos, como Gemma, muito puros, muito humildes, simples de coração, cheios de fé e de santos desejos de perfeição, ele também nos cercará da mesma solicitude e do mesmo amor.

(...)

Diz-nos o Espírito Santo que satanás, nos últimos momentos da nossa vida, sabendo que tem pouco tempo para [nos] fazer mal, nos assalta com pérfidas tentações, como um leão que vê a presa prestes a escapar-lhe. Que supremos e furiosos ataques não devia dirigir contra a angélica donzela, a quem tinha perseguido durante toda a vida com ódio mortal, e procurado vencer ou ao menos desanimar com uma guerra sem tréguas! De outros santos se lê que, no fim dos seus dias, tiveram que suportar assaltos do demônio mais ou menos longos e terríveis, mas passageiros. Gemma, porém, suportou um ataque contínuo de sete meses, apenas interrompidos por curtos intervalos de trégua. O fato é aterrador, mas absolutamente certo, porque é unanimemente atestado por todas as pessoas que assistiram a jovem virgem durante a sua última doença. 

O espírito das trevas perturbava-lhe a imaginação com mil fantasmas próprios para encher o seu coração de tristeza, de ansiedades, de temor. O seu fim era levá-la ao desespero. Representava-lhe, sob os mais tétricos aspectos, o quadro de sua vida tão cheia de angústias, as desgraças da sua família, as privações de toda ordem; fazia-lhe passar por diante dos olhos os agentes da força pública indo, depois da morte de seu pai, acompanhados pelos credores, sequestrar os bens da sua casa, depois exclamava: 'Eis o resultado de todas as tuas fadigas no serviço de Deus'. Aproveitando o estado de extrema aridez espiritual em que, durante a maior parte do tempo, o Senhor a deixava para mais purificar a sua alma, o anjo das trevas empregava todos os artifícios para a persuadir de que estava irremediavelmente abandonada por Deus e que, de modo algum, escaparia à condenação. O tentador astucioso insinuava-lhe que as suas heróicas virtudes e mesmo os mais insignes favores divinos não eram mais que ilusão e hipocrisia. (...)

Procurou mais uma vez [o infernal inimigo] insultar o pudor virginal da santa menina. Sabia muito bem com que amor e cuidado este anjo tinha guardado, durante toda a vida, o casto tesouro, com que heroísmo tinha já sustentado, neste campo, lutas terríveis, coroadas sempre de triunfo, mas queria, senão alcançar uma vitória que julgava impossível, ao menos vingar-se das suas derrotas por meio daquelas tentações que sabia serem as mais próprias para encher de amargura os últimos dias da inocente pomba. 

O quarto da enferma pareceu então estar convertido num vestíbulo do inferno. Não eram pensamentos, imaginação, impulsos lascivos, aos quais não podia ser sensível uma alma daquela têmpera; eram aparições reais sob formas sempre novas e de um cinismo brutal. 'Padre, Padre, escrevia-me Gemma do seu leito de dor, este sofrimento é muito intenso para mim. Pedi a Jesus que o troque por qualquer outro. Enviai, mesmo de longe, maldições e esconjuros para afastar o velhaco do demônio, ou ordenai ao vosso Anjo da Guarda que venha afastá-lo para longe daqui'. 

Vencido em todos os campos, terminou por afligi-la com cruéis vexações exteriores. A enfermeira da Serva de Deus escrevia-me por várias vezes: 'Esta besta hedionda acaba-nos com a querida Gemma. Saio sempre de junto dela a chorar; este horrível demônio consome-a, e não vejo nenhum remédio a opor. São pancadas ensurdecedoras, figuras espantosas de animais ferozes; mata-a com certeza. Corremos em seu auxílio, lançando água-benta no quarto, o barulho cessa, mas para recomeçar pouco depois com mais raiva'.

Até onde o invisível inimigo do homem levou a crueldade para com a doce vítima! Gemma sentiu melhoras quanto à dificuldade de ingerir os alimentos. Satanás, porém, estava de atalaia; logo que apresentavam a comida à doente, parecia-lhe coberta de insetos repugnantes, de tudo quanto possa imaginar-se de nojento. Perante a repugnância do estômago, era forçoso retirar tudo. Animais repelentes, reais ou imaginários, entravam-lhe no leito, iam-lhe para o corpo e torturavam-na de mil maneiras, sem que se pudesse ver livre deles. Dizia muitas vezes à irmã enfermeira, com acentos de terror, que sentia uma serpente a envolvê-la da cabeça até aos pés e procurando sufocá-la. 

Pediu muitas vezes que se fizessem exorcismos mas, como julgassem que não deviam atender aos seus pedidos, ela mesma, voltando-se para o inimigo com o rosto inflamado, exclamou: 'Espíritos perversos, ordeno-vos que entreis no lugar que vos está destinado, aliás, desgraçados de vós! Acuso-vos ao meu bom Deus'.” Depois, voltada para a sua Mãe Celeste, começou a dizer: 'Minha Mãe, encontro-me em poder do demônio que me fere, me flagela, trabalha por me arrancar das mãos de Jesus. Não, não, Jesus, não me abandoneis, ser-vos-ei fiel. Ó minha Mãe, pedi a Jesus por mim. De noite, estou só, cheia de terror, oprimida e como que ligada em todas as potências da alma e em todos os sentidos do corpo, sem me poder mexer. Viva Jesus'!

De tempos a tempos, o Divino Mestre vinha reanimar-lhe a coragem e sossegá-la, fazendo-lhe sentir a sua doce presença e dizendo-lhe algumas palavras: 'Minha filha, por que é que, em vez de te entristeceres com as perseguições do inimigo, não aumentas a tua esperança em Mim? Humilha-te sob a minha poderosa mão, não te deixes abater pelas tentações. Resiste sempre, sem desânimo, e, se a tentação perseverar, persevera também na resistência; a luta levar-te-á à vitória'. 

Outras vezes era o Anjo da Guarda que vinha confortá-la. Mas estes momentos felizes duravam pouco, em breve a sua alma recaía nas trevas e o tentador aparecia de novo, mais furioso que nunca. Deste modo se passavam, para a pobre donzela, os dias, as semanas, os meses. Que exemplo admirável de resignação e que motivo de salutar receio para nós, que não temos os méritos de Gemma, na hora terrível da morte!

Excertos da obra 'Gema Galgani, Virgem de Luca', do Pe. Germano de Santo Estanislau, tradução do Pe. Matos Soares, 1923).

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