sábado, 16 de fevereiro de 2019

DAS VERDADEIRAS AMIZADES

Ah! quanto é bom amar já na Terra o que se amará no Céu e aprender a amar aqui estas coisas como as amaremos eternamente na vida futura. Não falo simplesmente do amor cristão, que devemos ao nosso próximo, todo e qualquer que seja, mas aludo à amizade espiritual, pela qual duas, três ou mais pessoas comunicam mutuamente as suas devoções, bons desejos e resoluções por amor de Deus, tornando-se um só coração e uma só alma.

Com toda a razão podem cantar então as palavras de Davi: 'Oh! quão bom e agradável é habitarem juntamente os irmãos!' Sim, Filoteia, porque o bálsamo precioso da devoção está sempre a passar de um coração para o outro através de uma contínua e mútua participação; de tal modo que se pode dizer que Deus lançou sobre esta amizade a sua bênção, por todos os séculos dos séculos.

Todas as outras amizades são como as sombras desta e os seus laços são frágeis como o vidro, ao passo que estes corações ditosos, unidos em espírito de devoção, estão presos por uma corrente toda de ouro. Filoteia, todas as tuas amizades sejam desta natureza, isto é, todas aquelas que dependem da tua livre escolha, porque não deves romper nem negligenciar as que a natureza e outros deveres te obrigam a manter, como em relação aos teus pais, parentes, benfeitores e vizinhos.

Hás de ouvir que não se deve consagrar afeto particular ou amizade a ninguém, porque isto ocupa demais o coração, distrai o espírito e causa ciúmes; mas é um mau conselho, porque, se muitos autores sábios e santos ensinam que as amizades particulares são muito nocivas aos religiosos, não podemos, no entanto, aplicar o mesmo princípio a pessoas que vivem no meio do mundo — e há aqui uma grande diferença.

Num mosteiro onde há fervor, todos visam o mesmo fim, que é a perfeição do seu estado, e por isso a manutenção das amizades particulares não pode ser tolerada aí, para precaver que, procurando alguns em particular o que é comum a todos, passem das particularidades aos partidos. Mas no mundo é necessário que aqueles que se entregam à prática da virtude se unam por uma santa amizade, para mutuamente se animarem e conservarem nesses santos exercícios. Na religião, os caminhos de Deus são fáceis e planos e os que aí vivem se assemelham a viajantes que caminham numa bela planície, sem necessitar de pedir a mão em auxílio. 

Mas os que vivem no meio do mundo, onde há tantas dificuldades a vencer para ir a Deus, parecem-se com os viajantes que andam por caminhos difíceis, escabrosos e escorregadios, precisando sustentar-se uns nos outros para caminhar com mais segurança. Não, no mundo nem todos têm o mesmo fim e o mesmo espírito e daí vem a necessidade desses laços particulares que o Espírito Santo forma e conserva nos corações que lhe querem ser fiéis. Concedo que esta particularidade forme um partido, mas é um partido santo, que somente separa o bem do mal: as ovelhas das cabras, as abelhas dos zangões, separação esta que é absolutamente necessária.

Em verdade não se pode negar que Nosso Senhor amava com um amor mais terno e especial a São João, a Marta, a Madalena e a Lázaro, seu irmão, pois o Evangelho o dá a entender claramente. Sabe-se que São Pedro amava ternamente a São Marcos e a Santa Petronila, como São Paulo ao seu querido Timóteo e a Santa Tecla.

São Gregório Nazianzeno, amigo de São Basílio, fala com muito prazer e ufania da sua íntima amizade, descrevendo-a do modo seguinte: 'Parecia que em nós havia uma só alma, para animar os nossos corpos, e que não se devia mais crer nos que dizem que uma coisa é em si mesma tudo quanto é e não numa outra; estávamos, pois, ambos em um de nós e um no outro. Uma única e a mesma vontade unia-nos nos nossos propósitos de cultivar a virtude, de conformar toda a nossa vida com a esperança do Céu, trabalhando ambos unidos como uma só pessoa, para sair, já antes de morrer, desta Terra perecedora'. Santo Agostinho testemunha que Santo Ambrósio amava a Santa Mônica unicamente devido às raras virtudes que via nela e que ela mesma estimava este santo prelado como um anjo de Deus.

Mas para quê deter-te tanto tempo numa coisa tão clara? São Jerônimo, Santo Agostinho, São Gregório, São Bernardo e todos os grandes servos de Deus tiveram amizades particulares, sem dano algum para a sua santidade. São Paulo, repreendendo os pagãos pela corrupção de suas vidas, acusa-os de gente sem afeto, isto é, sem amizade de qualidade alguma. São Tomás de Aquino reconhecia, com todos os bons filósofos, que a amizade é uma virtude e entende a amizade particular, porque diz expressamente que a verdadeira amizade não pode se estender a muitas pessoas. A perfeição, portanto, não consiste em não ter nenhuma amizade, mas em não ter nenhuma que não seja boa e santa.

(Excertos da obra 'Filoteia ou Introdução à Vida Devota, de São Francisco de Sales)