XIX
ESPÉCIES DA JUSTIÇA PARTICULAR: JUSTIÇA COMUTATIVA E DISTRIBUTIVA
Quantas espécies compreende a justiça particular?
Duas: a distributiva e a comutativa (LXI, 1)*.
Que entendeis por justiça distributiva?
A justiça particular que estabelece o equitativo nas relações do grupo ou sociedade com as partes ou indivíduos (Ibid).
Que entendeis por justiça comutativa?
A justiça particular que governa as relações entre duas partes na mesma sociedade (Ibid).
Que espécie de justiça preside às relações dos homens considerados como partes ou indivíduos subordinados ao todo ou sociedade?
A grande virtude da justiça legal (LXI, 1-acl 4).
XX
DA RESTITUIÇÃO COMO ATO DE JUSTIÇA COMUTATIVA
Existe algum ato característico da justiça comutativa?
Sim, Senhor; a restituição (LXII, 1).
Que entendeis por esta palavra 'restituição'?
O ato de restabelecer a igualdade exterior entre os homens, quando algum a quebra, apoderando-se do alheio (Ibid).
O ato de restituir envolve sempre a reparação de uma injustiça?
Não, Senhor; porque compreende também o ato de devolver com exatidão e escrúpulo o que em espécie se havia tomado.
Poderíeis dar-me em poucas palavras as regras essenciais da restituição?
Ei-las aqui como as dita a equidade natural: a restituição tem por objeto dar ou devolver o que a outro pertence ou que injustamente se lhe tirou. Deve devolver-se o subtraído ou o seu equivalente exato, no estado e forma em que atual ou virtualmente o possuía seu dono, antes do ato que modificou a posse, com mais a obrigação de compensar os estragos e prejuízos que naquele ato, ou em consequência dele, tenham sobrevindo em prejuízo do legítimo possuidor. Está obrigado a restituir o detentor ou causante voluntário da injustiça cometida. Excetuando-se a impossibilidade, deve restituir-se sem demora (LXII, 2, 8).
XXI
DA ACEPÇÃO DE PESSOAS: VÍCIO OPOSTO À JUSTIÇA DISTRIBUTIVA — VÍCIOS OPOSTOS À JUSTIÇA COMUTATIVA: DO HOMICÍDIO, DA PENA DE MORTE, MUTILAÇÃO, VERBERAÇÃO E ENCARCERAMENTO
Entre os vícios opostos à virtude da justiça, há algum particularmente oposto à distributiva?
Sim, Senhor; a acepção de pessoas (LXIII).
Que entendeis por acepção de pessoas?
A injustiça que comete o governante em conceder ou negar mercês e em impor ou isentar de impostos, em atenção às pessoas e não à dignidade e merecimentos que possam fazê-las dignas (LXVIII, 1).
Quais são os vícios opostos à justiça comutativa?
São muito numerosos e classificam-se em dois grupos (LXIII-LXXVIII).
Quais são os que figuram no primeiro grupo?
Os que prejudicam o próximo contra sua vontade (LXIV-LXVI).
Poderíeis dizer-me o primeiro deles?
O primeiro é o homicídio, pecado de ação contra o próximo e que consiste em arrebatar-lhe o maior bem que possui, que é a vida (LXIV).
É muito grave o pecado de homicídio?
É o maior dos pecados contra o próximo.
Nunca é lícito atentar contra a vida do próximo?
Não, Senhor.
É a vida do homem um bem que nunca é lícito arrebatar-lhe?
Nunca, exceto quando por um crime mereça ser privado dela (LIV, 2, 6).
Quem tem neste caso o direito de a tirar?
Somente a autoridade pública (Ibid).
Em que se baseia este direito da autoridade pública?
Na obrigação que tem de velar pelo bem comum (Ibid).
Pode erigir o bem comum que se imponha a um homem a pena de morte?
Sim, Senhor; porque bem pode ocorrer o caso em que não haja outro meio eficaz de por termo à arrogância dos criminosos ou em que a consciência pública exija esta satisfação por alguns crimes odiosos e execráveis (Ibid).
Logo é o crime a única razão que pode invocar a autoridade pública para impor a pena de morte?
Sim, Senhor (LIV, 6).
A razão do bem público não poderia em algum caso justificar a morte do inocente?
Não, Senhor; porque o bem supremo da sociedade é o bem da virtude (Ibid).
É lícito aos particulares matar ao injusto agressor em defesa de suas pessoas ou bens?
Não, Senhor; exceto quando seja necessário para defender a própria vida e a dos seus e não haja nenhum outro meio de repelir a agressão; e ainda neste caso, o que se defende não há de ter intenção de tirar a vida alheia, senão defender a própria (LXIV, 7).
Quais são os outros pecados contra o próximo?
Os de mutilação ou atentado contra a integridade; verberação, que consiste em privá-lo do repouso e tranquilidade e o encarceramento ou privação da liberdade (LXV, 1-3).
Quando são pecaminosos estes atos?
Quando os impõe quem não tem autoridade sobre o paciente ou se a tem, quando se excede no castigo (Ibid).
XXII
DO DIREITO DE PROPRIEDADE E SEUS DEVERES ANEXOS — VIOLAÇÃO DO DIREITO DA PROPRIEDADE: O ROUBO E A RAPINA
Qual é o maior pecado contra o próximo, depois dos que o prejudicam na sua pessoa?
Os que lhe ocasionam prejuízo em seus bens.
Tem o homem direito de possuir alguma coisa como própria?
Sim, Senhor; tem o direito de propriedade e de administrar suas posses, como melhor entender, sem que os outros possam intrometer-se nos seus negócios ou coagir a sua liberdade de ação (LXVI, 2).
Em que se funda este direito?
Na natureza humana porque, sendo o homem um ser racional, criado para viver em sociedade, assim o exige o seu próprio bem, o da família e o da coletividade de que faz parte (LXVI, 1, 2).
Por que?
Porque a propriedade é condição necessária para ter independência e liberdade de ação; porque é o meio por excelência para constituir e perpetuar a família e, por último, porque a sociedade obtém grandes benefícios não só porque a propriedade individual evita inumeráveis litígios e desavenças que sobre o uso das coisas possuídas em comum se produziriam, mas também porque os bens serão melhor administrados e gozados em benefício da coletividade.
O direito de propriedade tem obrigações anexas?
Sim, Senhor, ei-las em poucas palavras: a primeira obrigação do proprietário é não deixar improdutivos os seus bens. Descontando dos produtos o que necessita para sua vida e decoro seu e de sua família, não lhe é permitido considerar o restante como propriedade privada, excluindo em absoluto de sua participação os demais membros da sociedade; tem, por conseguinte, o dever de justiça social de repartir o supérfluo com a maior equidade possível, principalmente facilitando trabalho e ocupação para o desenvolvimento do bem estar comum e como meio para que todos possam atender às suas necessidades. A razão do bem público autoriza o Estado a tomar da propriedade o que julga necessário e útil com o objetivo de socorrer as necessidades sociais, e neste caso, os súditos estão obrigados, em justiça estrita, a conformar-se e obedecer. As necessidades particulares não impõem ao proprietário deveres tão imperiosos como as públicas e não há nesta matéria lei positiva alguma, cujo cumprimento possa exigir-se por via judicial; porém fica de pé, com toda a sua força e vigor, a lei natural e peca contra ela, faltando à obrigação primária de amar e socorrer ao próximo, quem, possuindo bens supérfluos, se desinteressa da miséria e angustiosa situação do necessitado. Esta obrigação, rigorosa por lei natural, adquire o caráter de dever sagrado em virtude da lei positiva divina, e particularmente da lei evangélica, como se Deus quisesse corroborar, impondo sanção penal, o preceito que gravara nos corações humanos (conforme LXVII, 2-7; XXXII, 5,6).
Supostas as ditas obrigações, que direitos tem os proprietários?
Têm direito a que todos respeitem os seus bens e a que ninguém lhes arrebate o domínio legitimo contra a sua vontade (LXVI, 5,8).
Como se chama o ato de apropriar-se do alheio contra a vontade do proprietário?
Chama-se roubo e rapina (LXVI, 3-4).
Que entendeis por roubo?
O ato de tomar o alheio às escondidas do dono (Ibid).
E o que é a rapina?
O ato de despojar alguém de alguns dos seus bens, não às escondidas como no roubo, mas ostensiva e violentamente (LXVI. 4).
Qual dos dois pecados é o mais grave?
O segundo; todavia, tanto o roubo como a rapina são sempre, por sua natureza, pecados mortais, se não os escusa o pouco valor do objeto roubado (LXVI. 9).
Logo têm os homens obrigação de abster-se de todo ato que tenha aparência de roubo?
Sim, Senhor; porque assim o requer o bem da sociedade.
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)