quarta-feira, 19 de outubro de 2022

VERSUS: OS SETE GRAUS DA HUMILDADE (VII)

VII. A aversão aos frutos da vontade própria 

(São Bernardo*)

* (Obras Completas de San Bernardo, BAC Editorial, 1993)

'Fazer vossa vontade, ó meu Deus, é o que me agrada, porque vossa Lei está no íntimo de meu coração' (Sl 39, 9)

'Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito' (Rm 12,2)


Como vimos, a humildade do entendimento consiste na convicção de que nós não merecemos senão desprezo; a humildade da vontade, porém, consiste no desejo sincero de sermos realmente desprezados pelos outros e alegrarmo-nos quando desprezados. Justamente nisso está o mérito principal da humildade, pois se merece muito mais pelo ato da vontade que pelo do entendimento.

A humildade da vontade tinha principalmente em vista Jesus Cristo, quando disse: 'Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração' (Mt 11, 29). Muitos são humildes de boca; não, porém, de coração; confessam que são maus e merecem todos os castigos; quando, porém, os admoestamos, se enfurecem e negam ter defeito que se lhes imputa.

Eis, por exemplo, uma pessoa que protesta ser a maior pecadora do mundo e merecer mil vezes o inferno; quando, porém, seus superiores ou seus semelhantes, com palavras brandas, a admoestam de uma falta ou só lhe tocam em sua tibieza ou em seu procedimento pouco edificante, ela se defende imediatamente e responde em tom arrogante: Que mal fiz eu? Que escândalo o senhor me viu dar? Vá corrigir antes a outros, que cometem faltas que eu nunca tive! Mas que é isso, alma cristã, há pouco disseste que, por causa de teus pecados, mereceste mil infernos, e agora não podes suportar uma palavra sequer de censura? Tua humildade, portanto, é só uma humildade de boca e não aquela humildade de coração, recomendada por Jesus Cristo.

'Alguns se humilham maliciosamente', diz o Espírito Santo (Ecli 19, 23), não para serem repreendidos e humilhados, mas sim tidos em conta de humildes e louvados. Mas humilhar-se para ser louvado, diz São Bernardo (In Cant., s. 16), não é humildade, mas antes destrói toda a humildade, pois, assim, a própria humildade torna-se objeto de orgulho. São Vicente de Paulo dizia que a humildade é atraente na sua aparência, mas espantosa na prática; pois a verdadeira humildade consiste em se amar o desdém e o desprezo. Segundo São João Clímaco, para se ser humilde não basta apelar-se um miserável pecador, mas deve-se também desejar ser tido por tal e desprezado: 'É bom que fales mal de ti, diz ele, mas é melhor que aproves sem descontentamento e até te alegres quando outros falam mal de ti' (Scal. par. gr. 21). O mesmo já tinha dito, antes dele, São Gregório: 'O verdadeiro humilde reconhece que ele é um pecador e não o nega mesmo quando lhe lançam em rosto seus defeitos' (Mor., l. 22, c.14). São Bernardo exprime o mesmo pensamento da seguinte maneira (In Cant., s. 16): 'O verdadeiro humilde não quer ser louvado por isso, mas passar por um homem miserável, cheio de defeitos e desprezível; alegra-se se é humilhado e tratado como julga merecer, e, assim, a humilhação torna-o mais humilde'. Por isso dizia São José de Calazans: 'Quem ama a Deus não quer parecer santo, mas ser santo'. Se queres, pois, alma cristã, ser humilde de coração e vontade, então deves observar o seguinte. 

Primeiro: Nunca deves dizer coisa alguma em teu louvor, quer em relação ao teu proceder, teus talentos, tuas boas obras, quer em relação à tua família, falando de sua nobreza, riqueza ou parentesco. Ouve o que te diz o Sábio: 'ouve-te um outro e não a tua própria boca' (Pv 27, 2). De mais, cada um sabe que louvor próprio não traz honra, mas desonra. Quando, pois, deves falar de ti mesmo ou daquilo que te respeita, procura humilhar-te sempre e não te exaltar; se te humilhares nada terás a temer; mas se, à custa da verdade, te exaltares um pouquinho só, diz São Bernardo (In Cant., s. 37), poderás causar-te um grande mal. Quem atravessa uma porta e abaixa a cabeça mais do que preciso, não se causará nenhum mal; mas quem a ergue, ainda que só um dedo mais alto, dará com a fronte na porta e se ferirá.

Se, pois, falas de ti, procura dizer antes mal que bem, antes descobrir teus defeitos que aquilo que te fará parecer virtuoso. O melhor, porém, é nunca falar de si mesmo, nem bem, nem mal. Deves te considerar tão desprezível, que nem sequer mereças ser nomeado pelos outros. Mesmo quando falamos de coisas que servem para nossa vergonha, se imiscui, muitas vezes, um orgulho sutil e encoberto: a humilhação voluntária, que sofremos pela revelação de nossas faltas desperta em nós um desejo de sermos louvados pelos outros ou, no menos, de sermos tidos no número dos humildes.

Isso, porém, nada vale em relação ao confessor: a ele deves revelar as tuas faltas, tuas más inclinações e, geralmente, até os maus pensamentos que te sobrevêm. Pode também algumas vezes acontecer que devas revelar outras coisas que te causam confusão; faze-o então de boa vontade, seguindo o exemplo do Pe. Vilanova, da Companhia de Jesus, que não se envergonhava de dizer a todo o mundo que seu irmão era um pobre operário. De semelhante modo procedia o Pe. Sacchini, igualmente jesuíta, encontrando-se uma vez com seu pai, que era um pobre tropeiro, abraçou-o em plena rua, dizendo: Eis aqui meu pai.

Se fores louvada contra a tua vontade, alma cristã, procura humilhar-te ao menos interiormente, recordando-te de teus muitos defeitos. Os muitos orgulhosos alegram-se do louvor, ainda quando não o merecem, diz São Gregório (Mor., 1. 22, c. 9; 1. 26, c. 30), enquanto que os humildes coram e se entristecem, quando os louvamos, ainda que justamente. O humilde se entristece quando ouve seu louvor, acrescenta São Gregório; pois ele sabe que não possui as qualidades que se lhe atribuem e teme perder, pela complacência em tais louvores, algum merecimento que talvez tenha diante de Deus; poderá uma vez ser-lhe dito: não te esqueças que já recebeste tua recompensa em vida, ouvindo com prazer aqueles louvores. 'Como o ouro é provado na fornalha, diz o sábio, assim o homem pela boca do que o louva' (Pv 27, 21), isto é, o homem mostra sabedoria se ele, em vez de dar ouvidos e se vangloriar dos louvores recebidos, se confundir e entristecer por isso, como se dava com São Francisco de Borja, com São Luís Gonzaga e outros santos.

Se, pois, te louvam e honram, deves te humilhar profundamente e temer que essas honras não te sejam causa de quedas e ruína. Não te esqueças que a consideração por parte dos homens talvez seja a maior desgraça que te possa acontecer, visto que essa estima alimenta o teu orgulho e pode perverter teu coração e, assim, levar-te à condenação eterna. Deves ter sempre diante dos olhos as palavras de São Francisco de Assis: 'Eu sou unicamente aquilo que sou diante de Deus'. Julgas talvez ser alguma coisa mais diante de Deus se valeres alguma coisa mais diante dos olhos dos homens? Se te comprazes no louvor dos homens e te ensoberbeces por isso e te julgas melhor que outros, podes estar certo que no mesmo tempo que os homens te louvam, Nosso Senhor te repele para longe de si. Persuade-te, portanto, que não te tornas melhor pelo louvor dos outros. 'Como as ofensas e injúrias não nos roubam o merecimento das virtudes' - diz S. Agostinho (Cat. Petit, L. 3, C. 7) - 'assim os louvores dos outros não nos fazem melhores'. Quantas vezes pois, fores louvado, dize, com o mesmo santo: 'Eu me conheço melhor do que esses que dizem de mim'; sei que não mereço esse louvor, e Deus sabe melhor do que eu, desde que Ele sabe que não mereço honras, mas desprezo, na terra e no inferno.

Por isso não tenhas inveja dos que têm mais talentos e aptidões, ou que são mais estimados que tu; deves antes invejar os que te superam em amor de Deus e humildade. Melhor que todas as honras e todo o aplauso do mundo é a humilhação. A ciência mais bela para ti consiste em aprenderes a te humilhar, te desprezar e a te alegrar quando não fazem nenhum caso de ti. Deus não te concedeu maiores alentos porque eles, talvez, trariam a tua ruína. Por isso, contenta-te com os poucos dotes que tens; eles te dão ocasião de exercer a humildade, que é o caminho mais seguro, ou, antes, o único para a felicidade e santidade. Se outros sabem melhor que tu conquistar a estima geral, deves, conforme o conselho do Apóstolo (Fp 2, 3), procurar sobrepujá-los na humildade. Quem é honrado corre perigo de deixar-se arrastar pelo orgulho e perder as inspirações de Deus e, como diz Davi (Sl 48, 13), assemelhar-se aos animais irracionais, que só buscam os míseros bens desta terra e não podem pensar nos bens eternos.

Segundo: Se queres conservar a humildade, não deves te irritar nas repreensões; se, quando repreendido, te inquietas, ainda não alcançaste a humildade, e deves pedir a Deus que te conceda essa virtude tão necessária para a salvação. Como observa o Pe. Rodríguez, alguns cristãos imitam o ouriço; mal se lhes toca, já apontam seus espinhos, isto é, irrompem logo em palavras impacientes, em invectivas e em queixas. 'Muitos se dão voluntariamente por pecadores, se ninguém os censura, diz São Gregório (Mor., 1. 22, c. 14); mas se forem censurados por causa de alguma falta, defendem-se com toda a veemência para não parecerem repreensíveis'. 

Assim também procedem alguns que se obrigaram a tender à perfeição; que esses tomem a peito o que diz o Espírito Santo: 'Quem aborrece a repreensão, não trilha o caminho do justo, mas o do pecador' (Ecli 21, 7), isto é, o caminho do inferno. São Bernardo dizia: 'Alguns se irritam contra quem os procura curar com uma repreensão, e não se agastam com aquele que os fere com adulações' (In Cant., s. 42). E, contudo, deveria cada um tremer ao ouvir o que diz o Sábio (Pv 1, 25-32), àqueles que não querem aceitar uma correção: 'Porque eles aborreceram as instruções, a prosperidade dos insensatos virá a perdê-los'. O aparente bem-estar dos insensatos consiste nisso, que não encontram ninguém que os repreenda ou que se importe com isso; dessa maneira se perdem miseravelmente.

São João Crisóstomo diz que o justo se entristece quando se nota nele um defeito. O pecador também se entristece se se descobre nele uma falta, não porque ele pecou, mas porque sua falta ficou notória; ele nem pensa em se arrepender, mas só em se defender, e se agasta com aquele que o repreende. Dize-me, alma cristã, procedeste também tu de semelhante modo com aqueles que foram tão caridosos em te corrigir, e queres ainda fazer o mesmo no futuro?

Não, não procedas assim, te admoesta São Bernardo; agradece antes a quem te avisou de uma falta; seria grande injustiça se te irritares com aquele que te mostra o caminho da salvação. Farias até um grande bem se, como costumava aconselhar Santa Maria Madalena Pazzi, de procurasses um amigo que te admoestasse de todas as faltas que cometeste, talvez sem o saber. Sabes que estás cheia de miséria e defeitos: o único meio contra isso consiste em te humilhares quando os descobrires ou os outros te apontarem. 'Na nossa humildade' - diz Santo Agostinho (In ps. 130) 'consiste a nossa perfeição'. Desde que tão imperfeitamente praticamos a virtude, sejamos ao menos perfeitos na prática da humildade, e alegremo-nos se os outros, por meio de suas censuras, nos dão ocasião de exercê-la.

Devemos também notar que o nosso orgulho suporta mais facilmente as correções imerecidas que as merecidas, porque o amor-próprio acha uma certa satisfação nas repreensões imerecidas. Se fores censurado com razão, apressa-te em oferecer a Deus, quanto antes a tua confusão, e em te emendar; esmaga o escorpião na própria ferida que ele te fez, isto é, utiliza-te dessa confusão para reparar a falta cometida, e podes ficar persuadido que Deus se mostrará tanto mais pronto a te perdoar as tuas faltas quanto maior for a humildade com que receberes a correção.

Resolve-te, pois, àquele grande ato de humildade, tão agradável a Deus, que consiste em não se defender nem se desculpar nas repreensões. Santa Teresa diz que uma pessoa que não se defender nem se desculpar quando é repreendida por causa de alguma falta, ganha muito mais com isso do que ouvindo dez sermões. Se, pois, te reprenderem, ainda que injustamente, por amor da santa humildade, renuncia a te justificar, exceto o caso que isso fosse necessário para evitar um escândalo.

III. Se quiseres alcançar uma humildade perfeita, alma cristã, deves te esforçar a receber com serenidade toda sorte de desprezo e maus tratos. Poderás praticar isso se creres sinceramente que em vista de teus pecados mereces todo o desprezo possível. A humilhação é a pedra de toque da santidade. O meio mais seguro para se conhecer se uma alma possui virtude, segundo São João Crisóstomo (In Gen. hom., 34), consiste em observar se ela recebe tranquilamente as humilhações. O Pe. Crasset narra, na sua história da Igreja do Japão, que um missionário agostiniano que, por causa da perseguição, trajava à secular, recebeu, uma vez, uma bofetada sem se irritar nem por um só instante; disso concluíram os pagãos que ele era um cristão e meteram-no na prisão, convencidos de que só um cristão pode praticar uma tal virtude.

Alguns colocam a santidade na recitação de muitas orações, prática de penitências, diz São Francisco de Sales, e não podem suportar uma palavra ofensiva. Esses não têm ideia do grande valor das humilhações. Mais se ganha suportando uma ofensa, que jejuando dez dias a pão e água. Vês, por exemplo, que se permite a outros o que se nega a ti; que os outros dizem è ouvido com atenção, enquanto que as tuas observações são tomadas em ridículo; outros são louvados em tudo que fazem, são elevados a cargos honrosos, enquanto que não se tem a mínima consideração para contigo e se zomba de tudo o que fazes. Em tais ocasiões, diz São Doroteu, deves mostrar se és verdadeiramente humilde. Se de boa mente recebes todos esses desprezos e recomendas a Deus com tanto maior amor aqueles que mais te maltratam, porque te curam do orgulho, dessa doença perigosa, então és verdadeiramente humilde, segundo o pensamento de São Doroteu. Porque os orgulhosos se julgam dignos de toda a espécie de honras, abusam das humilhações que encontram, para aumento de sua soberba, enquanto que os humildes, que se julgam dignos de todo o desprezo, utilizam-se das humilhações que lhes sucedem para aumento de sua humildade.

Humilhações que nos impomos a nós mesmos são boas, porém muito melhores são as que nos advêm de outros; por exemplo, repreensões, acusações, injúrias e zombarias, contanto que as aceitemos a boa mente, por amor de Jesus Cristo. O Espírito Santo diz: 'O ouro é provado no fogo, e os homens que Deus quer receber, na fornalha da humilhação' (Ecli 2, 5); como o ouro é experimentado no fogo, assim a perfeição dos homens é provada nas humilhações. 'Uma virtude sem provação' - diz Santa Maria Madalena de Pazzi - 'não é verdadeira virtude'. Quem não suporta tranquilamente o desprezo, nunca poderá alcançar a santidade. 'Meu nardo espalhou o seu cheiro' (Ct 1, 11), diz-se no Cântico dos Cânticos. O nardo é uma planta odorífera, mas que só espalha o seu cheiro agradável, quando é fendida ou moída. Oh! que cheiro agradável não difunde diante de Deus uma alma que recebe tranquilamente qualquer ultraje e se alegra vendo-se desprezada e tratada por todos como se fosse a última.

Alguns julgam-se humildes por estarem convencidos de sua miséria e se arrependerem de ter vivido mal; não querem, porém, ser humilhados e não suportam que se lhes falte com a atenção e respeito e, por isso, evitam todas as ocupações menos honrosas tudo o que não é compatível com sua soberba. Mas que humildade é essa? Confessam que são dignos de toda a ignomínia e não podem suportar uma falta sequer de atenção, até procuram honras e distinções. O Espírito Santo os caracteriza com as palavras: 'Alguns se humilham maliciosamente', isto é, dizem de boca que são os piores de todos, mas no coração desejam ser estimados e honrados mais que os outros 'e o seu interior está cheio de dolo' (Ecli 19, 23).

Espero, alma cristã, que não pertenças a essa classe. Se, pois, te julgas pior que todos os outros, deves ficar contente se te tratam pior que aos outros; deves até amar como teus maiores amigos aqueles que te auxiliam por seu trato desdenhoso à humildade e ao desprezo das honras mundanas e que contribuem para que te unas mais intimamente com Deus e nada mais busques nesta vida que o seu santo amor. Considera-te a ti mesmo como um cadáver em putrefação que, com razão, é abominado por todos, e mostra-te pronto a suportar, por amor de Deus, e em satisfação de teus pecados, todas as injúrias, sem nunca permitires uma queixa ao teu amor-próprio. Pensa que quem teve a ousadia de desprezar a Deus, merece um tratamento muito pior, a saber, ser calcado pelo demônio no inferno. 'Não conheço melhor remédio para curar as chagas do meu espírito' - diz São Bernardo - 'do que injúria e desprezo' (Ep. 280).

Alegra-te, pois, alma cristã, se fores desprezada, escarnecida e tida pela pessoa mais tola e desprezível de todas. Crê no que diz o Pe. Alvarez: 'O tempo da humilhação é o mais próprio para ficarmos livres de nossa miséria e de ajuntarmos merecimentos'. Segundo Santa Maria Madalena de Pazzi, as maiores graças que o divino Esposo dá aos seus privilegiados consiste nisso, Que lhes envia humilhações e cruzes; afirmava também que encontrava uma consolação especial podendo tratar com pessoas que eram desprezadas, por serem muito caras à Jesus Cristo. Por isso dizia às suas irmãs: 'Não procureis em outra coisa vosso gosto e satisfação senão no desprezo'.

Devemos, antes de tudo, ter sempre diante dos olhos as palavras do divino Mestre: 'Bem-aventurados sois, se os homens vos odiarem e vos excluírem e carregarem de injúrias e rejeitarem o vosso nome como mau por causa do Filho do Homem' (Lc 6, 22). O apóstolo São Pedro acrescenta: 'Bem-aventurados sois, se por causa do nome de Cristo vos insultarem, porque o que há de honra, de glória e de virtude de Deus e o espírito que é dele, repousa então sobre vós' (1 Pd 4, 14). Os santos não atingiram a santidade debaixo dos aplausos, mas sob injúrias e desprezo. Santo Inácio Mártir que, como bispo, gozava de consideração e veneração, foi arrastado como um malfeitor para Roma, para ser lançado às feras. Os guardas, durante a viagem, o cobriram de injúrias e maus tratos de toda a espécie; ele, porém, cheio de júbilo, exclamava: 'Agora é que começo a tornar-me um discípulo de Cristo, que foi tão desprezado por seu amor por mim' (Ep. ad Rm).

Os mundanos sentem menor alegria nas homenagens, que os santos nos desprezos. Quando se fazia uma injúria ao Irmão Junipero, franciscano, ele suspendia o seu hábito e estendia-o no alto, como se quisesse aparar pérolas. Meu Deus, o que entende aquele que não sabe suportar uma ofensa por Jesus Cristo! Quem não é capaz de suportar uma injúria prova que perdeu de vista a Jesus Cristo Crucificado. A venerável Maria da Encarnação disse um dia, à vista de um crucifixo, às suas irmãs: 'Será possível, queridas Irmãs, que nós recusemos sofrer desprezos, quando vemos a Jesus Cristo tão desprezado?' Nosso Senhor apareceu uma vez a São João da Cruz com a cruz às costas e a coroa de espinhos na cabeça e disse-lhe: 'João, exige de mim o que quiseres'. Ao que o santo respondeu: 'Senhor, desejo padecer e ser desprezado por amor de vós'. Com isso queria dizer: 'Ó meu Salvador, vendo-vos por meu amor tão atormentado e desprezado, que outra coisa posso desejar que padecer e ser desprezado?'

Uma outra pessoa piedosa, quando recebia uma injúria, dirigia-se ao altar do Santíssimo Sacramento e dizia: 'Ó meu Deus, sou muito pobre para oferecer alguma coisa de peso; por isso vos ofereço estas pequeninas dádivas que acabo de receber'. Ó com que amor não abraça Jesus Cristo uma alma que suportou com paciência um desprezo! Como se apressa em consolá-la e enriquecê-la de graças! O Pe. Antônio Torres foi acusado de propagador de falsas doutrinas e, em consequência disso, privado por vários anos pela jurisdição de ouvir confissões. Ele escreveu mais tarde a respeito desse tempo: enquanto duraram as calúnias, tornaram-se tão grandes as consolações, que posso afirmar nunca ter experimentado semelhantes consolações.

Quem suportar com coração alegre as injúrias, não só alcança grandes merecimentos para si mesmo, mas ganha também o próximo para Deus Nosso Senhor. São João Crisóstomo diz: 'O manso de coração, que suporta tranquilamente as ofensas, aproveita a si e a todos que o observam; pois nada é mais próprio para edificar o próximo do que a mansidão de um homem que com rosto sereno suporta ultrajes'. O Pe. Maffei conta de um padre jesuíta do Japão que, estando a pregar, recebeu de um homem vil uma escarrada no rosto; tomando o lenço com toda a tranquilidade, limpou-se e continuou a sua pregação, como se nada tivesse acontecido. Isso impressionou tanto a um dos ouvintes, que este se converteu à fé cristã, 'pois a religião que ensina uma tal humildade' - dizia ele - 'deve ser verdadeira e divina'. Assim também converteu São Francisco de Sales a muitos hereges pela mansidão com que suportava todos os insultos da parte deles.

De resto, quem quiser trilhar o caminho da perfeição deve estar pronto a ser escarnecido, caluniado, injuriado, perseguido e odiado. Isso é inevitável. 'Os ímpios abominam aqueles que se acham no caminho correto' (Pv 29, 27). A vida dos bons é, de fato, uma contínua exprobração para os pecadores; pois seu desejo é que todos vivam como eles. A fugida do mundo, o desapego dos vãos prazeres, numa palavra, todos os atos piedosos de um cristão fervoroso são qualificados como singularidade, beatice e até hipocrisia, visto que se pratica tudo isso para se passar por santo. E se uma vez tem um bom cristão a infelicidade de cair numa falta (pois não deixou de ser frágil); gritam logo: vede o santo: isso faz aquele que comunga todos os dias e passa o dia inteiro na igreja, para enganar os homens. Muitas vezes se acrescentam ainda mentiras.

Quem quer se santificar, deve estar resolvido a receber serenamente todas essas humilhações e oferecê-las a Deus, porque, se não quiser suportá-las, não poderá permanecer por muito tempo no caminho encetado; dentro em pouco deixará tudo e procederá do mesmo modo como a grande maioria. Tratei a fundo deste assunto, porque me parece impossível que um cristão faça progresso na perfeição se não se sujeita de boa vontade ao desprezo, e porque tenho por certo que, em caso contrário, não se santificará. Se queres, pois, atingir a santidade, deves ser muito humilhado e desprezado. Se estas palavras te assustarem, reanima-te pela promessa de Jesus Cristo: 'Bem-aventurados sois quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós, por causa de mim: folgai e exultai, porque vossa recompensa será copiosa nos céus' (Mt 5, 12).

(Excertos da obra 'Tratado da Humildade e da Mansidão', de Santo Afonso Maria de Ligório)

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (176/178)

176. A RECOMPENSA DA ESMOLA

Um dia apresentou-se um pobre a Santa Catarina de Sena e pediu-lhe uma esmola por amor a Deus. Encontrava-se a santa na Igreja dos Frades Pregadores e não tinha nada para dar ao mendigo. 'Vem à minha casa e te darei bastante'. Mas o pobre insistiu: 'Se tens alguma coisa, dá-me agora porque não posso esperar'.

Catarina procurou ansiosamente por alguma coisa e encontrou uma cruzinha de prata que, com gosto, passou às mãos do pobre. Na noite seguinte, Nosso Senhor apareceu à santa, tendo na mão a pequenina cruz adornada de pedras preciosas.
➖ Conheces esta cruzinha?
➖ Conheço  - respondeu Catarina - mas não era tão linda.
➖Ontem tu a deste: a virtude da caridade tornou-a tão bela. Prometo-te que, no dia do Juízo, em presença dos anjos e dos homens, mostrarei esta cruzinha para que a tua glória seja infinita.

177. SANTA TERESA E A SECURA ESPIRITUAL

Durante dois anos Santa Teresa não soube abrir a boca para rezar. Quando se punha de joelhos, apenas juntava as mãos e ficava recolhida, sentia um fastio tal que se levantava e ia fazer outra coisa. Até na comunhão sentia a sua alma vazia e não conseguia pronunciar nenhuma palavra. E, por dois anos, já que o confessor lhe ordenava que comungasse, em lugar de fazer a ação de graças, punha-se a limpar os bancos da igreja.

➖ Ó Jesus - disse uma vez com grande aflição - não é verdade que me abandonastes?
➖ Em toda a tua vida nunca fizeste tanto bem como nestes dois anos - respondeu-lhe Jesus.

Também a muitos cristãos vem a provação da secura e perdem o gosto da oração, das boas obras. Ai daqueles que se deixam vencer e não rezam, não praticam o bem, não obedecem ao confessor!

178. O SINAL DA CRUZ E AS CRUZES

Quando São Gregório Magno era secretário na corte de Constantinopla, reinava no trono do Oriente o jovem imperador Tibério II. Este, passando um dia por um corredor estreito e escuro do seu palácio, viu no mármore do piso gravada uma cruz e exclamou: 'Meu Deus! Fazemos o sinal da cruz na testa, na boca e no peito e depois a pisamos'. 

Imediatamente mandou arrancar aquela do piso; debaixo, porém, havia outra gravada com o mesmo sinal. Depois a terceira, a quarta e mais outras sempre com o sinal da cruz. Quando estavam retirando a sétima pedra, ouviu-se um murmúrio de admiração. Havia debaixo daquela pedra anéis de ouro, prata, rubis, pérolas, esmeraldas, colares, um tesouro de grandíssimo valor. 

O imperador contemplava aquelas joias a tremer de alegria e sem dizer uma palavra. O imperador do Oriente pode ser um símbolo de todo homem que passa peio corredor escuro e estreito desta vida. Apresentam-se diante de nós muitos anos dolorosos, gravados com a cruz do sofrimento. Passam-se os anos, termina a nossa carreira e, na outra vida, encontramos as cruzes transformadas em um imenso tesouro.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

domingo, 16 de outubro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Do Senhor é que me vem o meu socorro, 
do Senhor, que fez o céu e fez a terra' (Sl 120-)

 16/10/2022 - Vigésimo Nono Domingo do Tempo Comum
 
47. O JUIZ INÍQUO E A VIÚVA IMPERTINENTE


No evangelho deste domingo, Jesus nos exorta, uma vez mais, à oração frequente, confiante, perseverante e colocada no coração de infinito amor do Deus de Misericórdia. À oração despojada de contrapartidas favoráveis aos apelos intrinsecamente humanos, mas entregue aos desígnios do Pai para o bem maior de nossa alma e do nosso semelhante. E vai enfatizar, de forma cristalina, que a obscuridade e as trevas da perda de fé são engendradas na forja da falta de oração. Santo Afonso de Ligório, doutor da Igreja, já nos alertava: 'Quem reza, se salva; quem não reza, se condena'.

Na parábola do mau juiz e da viúva impertinente, deparam-se duas realidades humanas antagônicas: de um lado, o homem privilegiado pelas leis humanas e detentor do poder de decisão sobre as ações e contendas dos outros homens; de outro lado, a mulher exposta e fragilizada pela perda do marido, sob o peso de novas e doloridas realidades e indefesa pelas dramáticas circunstâncias do momento. Cabe a ela, portanto, pedir, pedir uma vez mais e muitas vezes enfim e mesmo implorar a intervenção do juiz em sua causa e defesa. Ao juiz, homem iníquo, ao qual a soberba do cargo tinha imposto sempre decisões rápidas e inquestionáveis, a insistência da viúva é ocasião de incômodo, transtorno, desvario. Eis o cenário que Jesus montou para falar do valor incomensurável da oração.

Diante de apelos tão inoportunos e persistentes, até o juiz iníquo se rendeu: 'Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!' (Lc 18, 4-5). Se até um homem iníquo e injusto é complacente com os rogos repetidos da viúva inconsolável a qual desdenha, o que Deus de infinita misericórdia não iria fazer por nós em oração confiante e perseverante nas Suas graças? E Jesus é taxativo ao dizer: 'Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa' (Lc 18,8).

E, no mesmo versículo, Jesus encerra a parábola com uma frase extremamente preocupante: 'Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?' (Lc 18, 8). Jesus não precisaria se expressar assim se não profetizasse uma terrível apostasia dos homens dos tempos da Segunda Vinda do Senhor, fomentada pela perda dos valores espirituais, submissão aos valores mundanos e, principalmente pela perda da oração confiante e perseverante aos desígnios de Deus. E, de repente, ao se ter em conta as realidades de agora, não parece que Jesus está falando para nós?

sábado, 15 de outubro de 2022

A SANTIDADE NOSSA DE CADA DIA

Contentar-se com o dever presente e colocar nele, para cumpri-lo perfeitamente, toda a sua atenção e toda a sua energia, animá-lo pela intenção do amor divino, tal é a tarefa da alma que quer chegar à santidade. Cada instante assim utilizado lhe faz alcançar, no momento preciso, toda perfeição de que ela é capaz. De então em diante, não lhe resta outro dever a cumprir senão o de continuar sem descanso, até ao fim, o seu trabalho. É aqui precisamente, porém, que as almas não advertidas encontram um grande perigo. Quase todas querem ser santas no fim de alguns anos de esforços. Se o resultado não corresponde às suas esperanças, desolam-se e correm risco de tudo abandonar.

Estas almas negligenciam na sua santificação um elemento pouco apreciado, porém indispensável, isto é, o tempo. Deus sabe o número de anos que temos a passar sobre a terra; conhece também o grau de santidade que devemos adquirir. Deixemos a Ele o cuidado de nos santificar antes de nossa morte. Contentemo-nos em servi-lo no momento presente, em amá-lo ardentemente, apaixonadamente. Coloquemos todo o nosso ardor em nossos atos. Deliciemo-nos em nos enraizar cada vez mais nEle e depois... abandonemos a Ele tudo o mais. Ele é nosso Pai e quer verdadeiramente se encarregar dos interesses dos seus filhos. A menos que Deus intervenha de modo particular, o trabalho de nossa santificação não se fará na medida de nossos impacientes desejos.

A santidade é a orientação de toda uma vida para Deus; são todas as faculdades dispersas sobre as criaturas a reconduzir para Ele; é a inclinação de todo o homem para o sensível a transformar e a mudar em uma tendência constante para Deus, que é um puro Espírito; são inumeráveis apegos secretos às criaturas e a si mesmo a romper um a um; é um domínio pacífico da vontade a estabelecer sobre paixões impacientes do jugo; é, enfim, uma infinidade de ações cotidianas a impregnar da intenção do puro amor de Deus. Semelhante metamorfose não se opera geralmente em alguns anos.

Nos momentos de fervor e de estreita união com Deus, a alma pode bem sentir-se toda dEle e crer terminada a feliz transformação de todo o seu ser, mas a triste experiência faz com que ela volte bem cedo à realidade. Depois de suas ardentes orações, ela se encontra novamente natural, apegada às suas comodidades, frouxa e pusilânime. A alma admira-se de que, sendo tão imperfeita, Deus tenha podido favorecê-la com as suas carícias; concebe indignação contra si mesma; desanima. Contudo, nada é mais natural do que a conduta de Deus.

A alma está em marcha para a santidade; no momento presente, ela põe ao serviço de Deus toda soma de boa vontade de que dispõe e, por seu lado, Deus mostra-se satisfeito com os seus esforços e a favorece com as suas comunicações. Mestre hábil na direção das almas, Ele sabe que, por momentos, elas têm necessidade de repouso durante a rude ascensão para o ideal e dá-lhes oportunidades de experimentarem, de tempos a tempos, a sua doce presença. Mais tarde, tratá-las-á como almas perfeitas, fá-las-á assentarem-se à sua mesa e introduzi-las-á definitivamente na sua intimidade.

...

Ajuntai a isto a ação incessante da graça, que trabalha esta alma, que a desapega da criatura e dela própria, que a transforma, sem ela o saber, que a orna de virtudes, que lhe instila gota a gota a divina caridade, que a enraíza sem cessar cada vez mais no Cristo, que a habilita a viver com Deus, e concordareis que a alma se acha na feliz impossibilidade de não atingir a santidade. Estes progressos contínuos escapam habitualmente ao olhar da alma. A ação que a transforma é demasiado sutil para ser perceptível.

Todavia, em certos momentos, ela nota que tal defeito, há tanto tempo combatido, desapareceu subitamente; que tal virtude, tão ardentemente desejada e pedida, veio tomar o seu lugar; que suas relações com o divino Mestre tomaram um caráter de mais franca intimidade; que as preocupações passadas não exercem mais sobre ela sua tirânica influência. São indícios verdadeiros de uma lenta, mas segura transformação. Todavia, mesmo na falta de provas palpáveis, saberíamos que a santificação deve operar-se assim. Os atos repetidos continuamente produzem em nossas faculdades hábitos sempre mais poderosos, enraízam sempre mais profundamente em nós as virtudes infusas com a divina caridade.

Possam estas poucas considerações moderar o ardor das almas inquietas, impacientes de chegar ao termo, e ensinar-lhes que nada de considerável se faz aqui na terra, mesmo na vida espiritual, sem o precioso concurso do tempo! Uma virtude demasiadamente precoce é sempre suspeita aos olhos dos diretores espirituais. Talvez bela em aparência, mas raramente sólida! Ao primeiro contato com as dificuldades reais da vida, se quebra. É um fruto antecipadamente amadurecido e muitas vezes um verme oculto o corrói.

Acompanhemos o passo de Deus e tenhamos paciência. Saibamos esperar o seu momento; chegaremos seguramente à santidade. Não nos inquietemos a respeito da parte que Deus reservou para si na obra de nossa perfeição. A nossa resume-se na fidelidade ao dever presente e no abandono ao nosso Pai celeste: Jacta super Dominum curam iuam et ipse te enutriet - 'entregue ao Senhor os teus cuidados e Ele te sustentará' (Sl 54, 23).

(Excertos da obra 'A Boa Vontade' pelo Padre José Schrijvers, 1937)

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XLI)

 

Capítulo XLI

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados Contra o Abuso da Graça - Santa Madalena de Pazzi e a Religiosa em Expiação por Abuso da Graça - Santa Margarida Maria e as Três Almas do Purgatório 

Há uma outra desordem na alma que Deus pune severamente no Purgatório, a saber, o abuso da graça. Por isso se entende a negligência em corresponder às ajudas que Deus nos dá e aos convites que Ele nos impõe à prática da virtude para a santificação de nossas almas. Esta graça que Ele nos oferece é um dom precioso, que não podemos jogar fora; é a semente da salvação e do mérito, que não se pode deixar improdutiva. Ora, esta falta é cometida quando não respondemos com generosidade ao convite divino. Recebo de Deus o meio de dar esmolas; uma voz interior me convida a fazê-lo. Mas fecho o meu coração ou a dou com mão avarenta; isso é um abuso da graça. Posso assistir a missa, ouvir o sermão ou frequentar os sacramentos; uma voz interior me incita a ir, mas não vou por frouxidão, isso é um abuso da graça. Uma pessoa religiosa deve ser obediente, humilde, mortificada e devotada aos seus deveres. Deus exige isso e lhe dá esta graça em virtude de sua vocação. Mas quando ela não se aplica a isso e não se esforça para superar a si mesma, a fim de cooperar com a assistência que Deus lhe dá; isso é um abuso da graça.

Este pecado, como dissemos, é severamente punido no Purgatório. Santa Madalena de Pazzi relata que uma das suas irmãs religiosas teve muito que sofrer depois da morte por não ter correspondido à graça por três vezes. Num certo dia de festa, sentiu-se inclinada a fazer um pouco de trabalho de pouca monta; tratava-se de uma simples peça de bordado, mas que não era absolutamente necessária e que poderia ter sido adiada convenientemente para outro momento. A inspiração da graça a alertara para se abster disso, por respeito à santidade do dia, mas ela preferiu satisfazer o desejo natural que tinha de fazer o trabalho, sob o pretexto de que era algo leve. Numa segunda ocasião, tendo notado que um ponto relevante de discussão havia passado desapercebido - e cuja menção às suas superioras teria resultado em um grande bem à comunidade - omitiu-se por mencioná-lo. A inspiração da graça a motivou para realizar esse ato de caridade, mas o respeito humano o impediu de fazê-lo. Uma terceira falta foi um apego desregulado aos seus que estavam no mundo. Como esposa de Jesus Cristo, devia todos os seus afetos a este divino Esposo; mas ela compartilhava seu coração por se importar muito com os membros de sua família. Embora pressentisse que a sua conduta a esse respeito era equivocada, ela não obedeceu ao movimento da graça e não trabalhou fervorosamente para se corrigir nesse sentido.

Quando esta irmã, aliás muito edificante, veio a falecer, Santa Madalena de Pazzi rezou em sua intenção com o seu habitual fervor. Dezesseis dias depois, ela se apresentou diante à santa, anunciando a sua libertação. Como Madalena estava espantada por ela ter estado tanto tempo em tormento, a alma revelou a ela que teve que expiar pelo abuso de graça nos três casos mencionados e acrescentou que essas faltas a teriam mantido por muito mais tempo em expiação se Deus não tivesse considerado aspectos mais positivos da sua conduta; assim, Ele abreviara suas sentenças por causa de fidelidade da alma ao cumprimento da regra, das suas boas intenções e dos frutos da sua caridade para com suas outras irmãs.

Aqueles que tiveram mais graças neste mundo e mais meios para quitar as suas dívidas espirituais serão tratados no Purgatório com menos indulgência do que outros que tiveram menos facilidade para as satisfazer durante a vida. Santa Margarida Maria, ao ser informada da morte de três pessoas recentemente falecidas, sendo duas freiras e um secular, começou imediatamente a rezar pelo descanso eterno de suas almas. Era o primeiro dia do ano. Nosso Senhor, tocado por sua caridade e usando uma inefável familiaridade, condescendeu em aparecer a ela; e, mostrando-lhes as almas dos três falecidos nas prisões de fogo onde sofriam, lhe disse: 'Minha filha, como um presente de Ano Novo, concedo-lhe a graça da libertação de uma dessas três almas, e deixo que você faça a escolha; qual delas você quer que seja libertada?' A santa respondeu então: 'Quem sou eu, Senhor, para designar aquela que merece a Vossa consolação? Façais Vós mesmo essa escolha!' Então Nosso Senhor libertou o secular, dizendo que tinha menos dificuldade em ver as religiosas sofrerem, porque elas teriam tido mais meios de expiar os seus pecados em vida.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

(Fim da Primeira Parte)