sexta-feira, 11 de maio de 2018

SOBRE A ETERNIDADE DAS PENAS DO INFERNO


Ponderação - A eternidade das dores do inferno se opõe à justiça de Deus; é injusto punir eternamente um pecado que durou apenas alguns instantes.

Refutação - Nenhum crime é punível pelo tempo que se leva para cometê-lo, mas pela gravidade intrínseca que contém. A justiça humana, às vezes, não condena à prisão perpétua e até mesmo à pena de morte, o transgressor que cometeu um crime em um instante? Levando-se em conta que o pecado - sobretudo aquele cometido contra o próprio Deus com vontade e malícia obstinada - contém uma certa malícia infinita, por causa da distância infinita que separa o infrator da vítima, é justo que ele seja punido com uma penalidade também infinita. E esta não sendo possível pela intensidade, tem que ser pelo menos em extensão. Assim, a eternidade das dores do inferno não apenas não se opõe à justiça de Deus, mas é dela uma exigência e um postulado elementar.

P. - É muito difícil para mim conceber a infinita malícia do pecado, pois uma criatura não pode realizar um ato infinito.

R. - O ato infinito relativo ao pecado não se vincula ao ato em si mesmo ou objetivamente considerado, mas da distância infinita entre o pecador e Deus. Ao pecar livre e voluntariamente, o pecador se apega a uma criatura que o distancia ou separa de Deus. E esse afastamento é, em si mesmo, infinito e naturalmente irreparável.

P. - O pecador não comete seu pecado prevendo e aceitando essa projeção eterna; a maioria dos homens peca simplesmente 'por um tempinho', esperando se arrepender mais tarde.

R. - Essa esperança em um futuro arrependimento é uma ilusão tão vã quanto imoral. Vã porque o pecador não poderá abandonar seu pecado sem a graça do arrependimento, que Deus não está obrigado a lhe conceder e que pode inclusive negá-la como castigo de tanta ingratidão. Aquele que se enfia em um poço não pode sair sem ajuda de cordas e corre o risco de lá ficar se os que se encontram do lado de fora - que não têm a obrigação de ajudar um tal desmemoriado - não o ajudarem de fato. E é também imoral, porque o pecador se apega precisamente à misericórdia de Deus para ofendê-lo com maior comodidade.

P. - De qualquer forma, o pecador peca por um tempo, por que então puni-lo na eternidade?

R. A partir do momento que o pecador coloca realmente seu fim último em uma criatura, renunciando ao seu fim sobrenatural eterno, mostra muito claramente que se entregaria ao pecado com maior consentimento se pudesse desfrutar eternamente o prazer momentâneo que este lhe oferece. Se por um momento de alegria, fugaz e passageiro, aceita a possibilidade de ficar sem o seu fim sobrenatural, quanto mais seria tentado a cometer esse pecado se pudesse permanecer nele impunemente por toda a eternidade! Neste sentido, São Tomás de Aquino disse, com muita profundidade, que o pecador, ao se separar de Deus, peca em sua eternidade subjetiva. Portanto, se o pecador ofendeu a Deus em sua eternidade, é justo que Deus o castigue na sua, como disse Santo Agostinho. Eis as palavras de São Tomás: 'Dizemos que alguém peca em sua eternidade, não somente pela continuação do ato que perdura toda a sua vida, mas porque, pelo simples fato de ter posto fim ao pecado, tem a vontade de pecar eternamente. Como disse São Gregório (Los Morales c.19: ML 76, 738), 'os ímpios querem viver para sempre para permanecer sem fim em suas iniquidades' (I-II, 87, 3 ad 1; ver Supl., 99, I).

Em sua magnífica Suma contra os Gentios, São Tomás insiste no mesmo argumento com as seguintes palavras: 'Antes do julgamento divino, a vontade é consignada pelo fato porque o homem só vê o exterior, mas Deus olha o coração (Reg 16, 7). Agora, quem em troca de um bem temporal se desviou do último fim, que se possui por toda a eternidade, antepôs o usufruto temporal do dito bem ao usufruto eterno do último fim, que teria sido muito melhor desfrutar do que um bem provisório. Então, de acordo com o julgamento de Deus, ele deve ser castigado como se tivesse pecado eternamente. E não há dúvida de que um pecado eterno deve receber uma pena eterna. Portanto, quem se desvia do fim último do homem deve receber um castigo eterno' (Suma contra os Gentios, III, 144.)

P. - Mas a malícia subjetiva do pecado não depende do grau de conhecimento e voluntariedade com que procedeu o pecador?

R. - Certamente que sim.

P. - E que pecador se dá conta, quando comete o pecado, do alcance e da transcendência do seu ato? Seria necessário para ele ter uma ideia muito clara da grandeza de Deus e da incomensurável eternidade.

R. - O pecado cometido nestas condições seria de uma malícia verdadeiramente satânica. Esse foi o pecado dos anjos rebeldes, cuja malícia foi tal que Deus negou-lhes para sempre o benefício da redenção, que ele ofereceu, porém, ao homem pecador.

P. - Então você mesmo confessa que o pecado do homem não possui a malícia satânica de demônios e, portanto, ...

R. - Portanto, Deus se compadeceu dele e lhe ofereceu o benefício da redenção, que negou os anjos rebeldes. Exatamente por isso, a reincidência voluntária do homem no pecado, mesmo depois do derramamento de sangue do Filho de Deus encarnado para a sua redenção, assume um elevado grau de ingratidão, e uma maior malícia subjetiva. E isto basta para que este pecado, cometido livre e voluntariamente, tenha força suficiente para separar o pecador eternamente de Deus como seu último fim sobrenatural.

Além disso, como disse com muita propriedade um teólogo dos  nossos dias: 'o homem que suspeita e insiste em desconhecer a grandeza misteriosa do Pai e do sacrifício incomparável do Filho em nosso favor, não se torna muito responsável por isso? Nós que conhecemos a grandeza incomensurável do nosso Deus, da sua ternura infinita e da sublimidade do sacrifício da cruz, podemos nos desculpar de que não somos responsáveis ​​diante do mistério da graça, sob o pretexto de que, no momento do pecado, nossa imaginação e nossa inteligência não tinham plenamente este conhecimento?'.

P. - Mas por que Deus então cria aqueles que Ele sabe que vão ser condenados?

R. - Entre outras razões que transcendem infinitamente a pobre inteligência humana, deve-se dizer que, de outro modo, ter-se-ia uma grande imoralidade, o que é repugnante à infinita santidade de Deus. Com efeito, se Deus, imbuído de sua infinita misericórdia, não criasse apenas os homens que haveriam de se salvar, estes poderiam zombar impunemente de Deus, conspurcando um por um todos os mandamentos da lei divina. Não seria necessário nem que eles se prestassem a arrepender pelos seus pecados, pois Deus teria que perdoá-los forçosamente mais cedo ou mais tarde. Assim, um pecador, mesmo depois de sofrer na vida após a morte um castigo temporal mais ou menos longo, poderia adentrar o Céu sem ter-se arrependido do seu pecado, sem ter pedido perdão a Deus. Quem não vê que isso seria uma monstruosidade escandalosa, mil vezes mais inconcebível do que o fato de Deus criar um homem sabendo que ele há de se condenar?

Além disso, uma coisa é bastante clara na teologia da salvação, seja qual for a escola teológica a que pertença: Deus não cria nem nunca criará qualquer pessoa para ser condenada haja o que houver, mas somente, a despeito de saber disso, que a pessoa se condene voluntariamente (como punição ao pecado voluntariamente cometido). De quem é a culpa, portanto, se o pecador é condenado? Seria o cúmulo da imoralidade pedir contas a Deus por punir com justiça um crime que foi livre e voluntariamente cometido por exclusiva culpa do pecador.

P. - Mas por que a pena do pecado deve ser eterna? Não bastaria um castigo temporário - ainda que muito duradouro - para satisfazer as exigências da justiça divina?

R. - De modo nenhum. A obstinação do pecador, perpetuamente apegado ao seu pecado, obriga a uma pena mantida eternamente. O pecador não se arrepende e nem se arrependerá jamais e, nestas condições, a punição tem que ser necessariamente eterna. Enquanto permanecer a culpa, não se pode desfazer a pena, como exposto por São Tomás de Aquino: 'A culpa permanece eternamente, uma vez que não pode ser remediada sem a graça, que homem algum pode adquirir após a morte. Portanto, a pena não deve cessar enquanto a culpa persistir' (Suppl., 99, 1).

P. - Por que aquele que morre no pecado não pode mais se arrepender?

R. - Porque, com a morte, o tempo do arrependimento termina. Tempo que o pecador teve por toda a vida e que, teimosa e obstinadamente, rejeitou até o último suspiro. A culpa é exclusivamente sua. O que Deus poderia fazer mais do que fez? Não derramou o sangue por ele na cruz e não lhe ofereceu sua graça redentora até o momento da morte?

P. - A misericórdia de Deus é infinita e, portanto, parece absurdo estabelecer um limite determinado a partir do qual ela não pode mais ser exercida.

R. - A misericórdia de Deus é infinita, certamente. Porém, a sua atuação e manifestação estão regulados pelos outros atributos de Deus, especialmente por sua santidade, sua justiça e sua sabedoria. A santidade exige que não se dê ao pecador oportunidade de continuar zombando perpetuamente da misericórdia de Deus; a justiça clama pela punição inexorável do pecador definitivamente obstinado no seu pecado. A sabedoria divina impõe um marco limite para o pecador corrigir-se de suas culpas e nenhum limite é mais oportuno que o da hora da morte.

P. - Por quê?

R. - Porque com a morte tem fim a nossa condição de peregrinos - a viagem da nossa vida - e nós penetramos no estado final da eternidade imutável. É natural que o destino final que o pecador escolheu livremente, no último segundo de sua vida de viajante, permaneça para sempre na imutável eternidade.

P. - E por que o pecador não continua sendo livre?

R. - Para escolher o seu destino, não. A morte para sempre lhe arrebatou o estado de livre arbítrio e definitivamente o fixou - o fossilizou, poderíamos dizer - no fim que ele escolheu livremente.

P. - E por que o espírito pode mover-se nesta vida entre o bem e o mal e não poderia fazê-lo no outro?

R. - Porque assim o exigem, em comum, a psicologia da alma separada do corpo e a justiça de Deus.

P. - Por favor, explique melhor esse mistério.

R. - Não é tão difícil como você pensa. A simples filosofia nos diz que a alma separada não está mais sujeita à oscilação das paixões e às impressões caprichosas do mundo material e sensível. Desligada por completo da matéria, a alma age tal como os espíritos puros, anjos e demônios. Ela não apreende nada por meio do discurso, mas pela intuição e, assim, o que o entendimento lhe apresenta como conveniente e bom, ela o quer uma vez e para sempre. Na eternidade, ninguém corrige o bem ou o mal.

P. - E por que Deus não nos coloca novamente em uma posição de poder escolher outra vez?

R. - Porque o impede sua justiça divina e sua infinita seriedade. A justiça divina estabeleceu um prazo definido para o exercício incontido e transbordante da misericórdia divina: a hora da morte. E a infinita seriedade de Deus não O faz voltar atrás e oferecer ao pecador uma nova oportunidade para se converter, depois de ter definitivamente zombado dEle.

P. - Mesmo que o pecador não mereça, não seria isso um transbordamento de amor e da misericórdia digno da grandeza soberana de Deus?

R. - De jeito nenhum. Pelo contrário, seria um grande escândalo, que deixaria sem sentido a infinita santidade de Deus.

P. - Por quê?

R. - Porque seria o mesmo que autorizar o pecador a zombar eternamente de Deus.

P. - Eu não entendo.

R. - É muito simples. Se, apesar de continuar obstinadamente no pecado e de não merecer, portanto, o perdão, o pecador fosse perdoado por Deus, ele poderia se deleitar eternamente no pecado, zombando de Deus.

P. - Houve um Santo Padre, favorável a uma bela opinião de Orígenes, que imaginou o perdão final para o próprio Satanás e todos os seus seguidores angélicos e humanos.

R. - O apocatástase [restauração final de todas as coisas em Deus] de Orígenes de Alexandria foi expressamente condenado pela Igreja (Denz., 211) e tal hipótese, além de não ser bonita, constitui uma monstruosidade inconcebível.

P. - Faça o favor de provar isso.

R. - Escute, pois, o que seria o discurso que Satanás, anunciando o perdão de Deus, pronunciaria a todos os demônios e condenados do inferno: 'Amigos: eu já sabia que este final assim teria que vir algum dia. Por isso me rebelei resolutamente contra Deus e os arrastei a todos nesta minha rebelião. E como o meu orgulho não podia sofrer a humilhação de pedir perdão a Deus, nunca o pedi e nem o farei agora. Foi Ele quem teve que se render à inflexibilidade da minha atitude. Eu não me curvei nem me prostrarei jamais diante dele; Ele é quem teve de se submeter a mim. Tenho certeza de que todos vocês, meus súditos e amigos fiéis, compartilham plenamente estes meus sentimentos. Nenhum de vocês jamais pedirá perdão a Deus ou acatará as suas ordens. Eu sou o seu único chefe. E agora - e então Satanás deixará escapar uma gargalhada sarcástica - vamos ir para o Céu e sentar sobre os tronos de glória junto à Santa Mãe de Deus, eternamente rindo dEle por nos ter acessado o Céu sem que tenhamos arrependido dos nossos pecados e sem necessidade de prostrarmos diante a sua Divina Majestade'.

P. - Baseado em que se afirmaria que Satanás pronunciaria este discurso?

R. - Na sua obstinação diabólica. Ouvi o diálogo travado entre o demônio - que falava pela boca de um energúmeno [possuído pelo demônio] de Paris - e o padre que o exorcizou em nome da Igreja:

Sacerdote: qual é o seu nome?
Energúmeno: legião, porque somos muitos.
Sacerdote: vocês gostariam de ser aniquilados por Deus?
Energúmeno: não!
Sacerdote: entendo; se Deus os aniquilassem, vocês deixariam de sofrer e isso seria um grande bem a vocês.
Energúmeno: deixaríamos de sofrer, é verdade; mas deixaríamos também de odiar a Deus e, então, preferimos continuar a odiá-lO eternamente.
[Arrighini, Credo in vitam aeternam; Turim 1935, p. 280]. 

P. - Este diálogo tem algum registro histórico?

R. - Isto é para mim completamente indiferente. Eu não a reproduzi como prova histórica, mas apenas como exemplo, para expressar uma realidade indiscutível. Seja histórica ou não, a verdade é que o ódio e a obstinação contra Deus constituem as disposições habituais de Satanás e de todos os condenados. Estes fatos são expressos categoricamente pela teologia, uma vez que incorporam uma consequência inevitável de um estado de condenação.

P. - Por que ser assim e não simplesmente aniquilar as criaturas perversas, em vez de conservá-las eternamente em existência?

R. - Este aniquilamento - como já o dissemos - implicaria uma reordenação da obra de Deus, e é a criatura culpada e não o Criador que deve se retificar. Além disso, Deus não pode estabelecer uma mesma punição para todos os condenados que pecaram, em graus muito diferentes do mal. Finalmente, o aniquilamento impediria a manifestação permanente e eterna da justiça vingativa de Deus, instrumento também da sua glória diante toda a criação.

(Excertos da obra 'Teologia da Salvação', do Pe. Royo Marín, tradução do autor do blog)