quinta-feira, 2 de maio de 2024

A MANEIRA DE FALAR COM DEUS (III)

III. De que modo, quando e como falar com Deus

1. Em geral 

Nunca vos esqueçais então da doce presença do Senhor, como fazem a maioria dos homens. Falai-lhe o maior número de vezes que puderdes: Ele não é como os grandes da terra, não se enfadará com a vossa frequência, nem vos desprezará; e se o amais, havereis sempre com que entretê-lo. Dizei-lhe tudo o que se apresenta no tocante a vossa pessoa e interesses, como o dirias a um amigo íntimo. Não o considereis como um príncipe soberbo, que não quer tratar senão de coisas elevadas e somente com grandes personagens: o nosso Deus tem prazer em prostrar-se para tratar com cada um de nós e quer que lhe comuniquemos os nossos negócios ainda os menos importantes e os mais ordinários. 

Ele vos ama e tem cuidado por vós, como se fôsseis o único objeto dos seus pensamentos. É tão aplicado ao que vos interessa, que parece conservar a sua providência unicamente para vos socorrer; a sua onipotência para vos ajudar; a sua misericórdia e bondade para ter compaixão de vós, fazer-vos bem, e ganhar, por sinais de ternura, a vossa confiança e amor. Descobri-lhe então livremente todo o vosso interior, e pedi-lhe vos guiar ao perfeito cumprimento da sua santa vontade, e todos os vossos desejos e desígnios tenham por único fim dar-lhe agrado e contentar o seu coração: 'Descobri o vosso caminho ao Senhor' (Sl 36,5). 'Pedi-lhe faça vossos caminhos retos e que todos os vossos desígnios repousem nele' (Tb 4,20). 

Não digais: De que serve expor a Deus todas as minhas necessidades? Ele as vê e conhece melhor do que eu. Deus as conhece, não há dúvida, mas procede como se ignorasse as necessidades de que não lhe são faladas e para as quais não recorreis a Ele. O nosso Divino Salvador sabia da morte de Lázaro; entretanto, antes que fosse disso comunicado pelas irmãs do defunto, parecia ignorá-la; só depois de receber a mensagem delas é que as consolou, ressuscitando-lhes o irmão (Jo 11,1). 

2. Nos padecimentos 

Assim, quando estiverdes nas provações da enfermidade, tentação, perseguição ou outra tribulação, seja qual for, ide sem demora ao Senhor, e rogai-lhe vos estenda a mão auxiliadora. Bastante será pordes sob os seus olhos o que vos aflige, dizendo: 'Senhor, vede a minha angústia'. Ele não deixará de vos consolar, ou ao menos vos dará força para levardes com paciência a vossa cruz, o que valerá mais para vós do que se Ele a tirasse toda de vós. Comunicai-lhe todos os pensamentos que vos atormentam, os vossos sentimentos de temor ou tristeza, e dizei-lhe: 'Meu Deus, em vós ponho todas as minhas esperanças; ofereço-vos esta provação e me resigno à vossa santa vontade; mas, tende compaixão de mim'; ou 'livrai-me desta aflição ou ajudai-me a suportá-la'. Então o Senhor cumprirá certamente a sua promessa de consolar ou fortalecer todos aqueles que, nas penas, recorrem a Ele: 'Vinde todos a mim' - diz Ele no Evangelho - 'vós que sofreis e sois acabrunhados, e eu vos aliviarei' (Mt 11,28). 

Se alguma vez fordes buscar, junto aos vossos amigos, alguma consolação nas vossas penas, Deus não se ofende com isto, mas quer que de preferência recorrais a Ele. Assim, ao menos depois de ter pedido às criaturas consolações que elas não vos puderam dar, voltai-vos para o Criador, e dizei-lhe: 'Senhor, os homens não têm mais do que palavras' (Jó 16,21), palavras impotentes para consolar-me; eu não os escuto mais. 'Vós sois toda a minha esperança e todo o meu amor; só de vós espero a minha consolação; e a que eu solicito é a graça de fazer nesta ocasião o que vos é mais agradável. Eis-me pronto a sofrer esta pena durante toda a minha vida e toda a eternidade, se esta for a vossa vontade; mas, ó Deus meu, ajudai-me'. 

Não temais dar-lhe desgosto, se ousais alguma vez queixar-vos docemente a Ele nestes termos: 'Senhor, vós o sabeis eu vos amo e não desejo outra coisa que o vosso amor. Por que ficais separado de mim?' (S l9,10-11). Por piedade, vinde em meu socorro, não me abandoneis. Se a vossa desolação se prolonga e vos acabrunha, uni a vossa cruz à de Jesus afligido e moribundo na sua, e dizei implorando misericórdia do Senhor: 'Meu Deus! Meu Deus! por que me haveis abandonado?' (Mt27,46). Mas aproveitai esta ocasião de vos humilhar mais profundamente, lembrando-vos de que não se merece consolação depois de se haver ofendido a Deus e, ao mesmo tempo, reanimai a vossa confiança, pensando que o vosso Pai celeste não faz, não permite nada, que não seja para o vosso bem: 'todas as coisas' - como nos assegura São Paulo - 'cooperam para o bem dos que amam a Deus' (Rm 8,28). 

Com uma coragem tanto maior, quanto mais a confusão e desolação enchem a vossa alma, dizei a Deus: 'Senhor, a Vós pertence esclarecer-me, a Vós salvar-me; a quem temerei?' (Sl 26,1). 'Em vós confio, Senhor, não serei confundido para sempre' (Sl 30,2). Tranquilizai-vos assim, persuadida que nunca ninguém, depois de ter posto em Deus a sua confiança, se perdeu (Ec l2,11). Pensai que Deus vos ama mais do que podeis amar-vos a vós mesmo, e deixai de temer. Confortai-vos repetindo com Davi: 'O Senhor toma para si os meus interesses' (Sl 39,18). Sim, meu Deus, eu sei, e é por isso que me abandono entre os vossos braços; não quero pensar senão em vos amar e agradar; eis-me pronto a fazer tudo o que exigirdes de mim. Não somente desejais o meu bem, mas ele é objeto das vossas solicitudes paternais; eu vos deixo então o cuidado da minha salvação: 'Descanso e descansarei sempre em vós, visto como quereis que ponha em vós todas as minhas esperanças' (Sl 4,6).

'Tende sentimentos dignos da bondade de Deus' (Sb 1,1). Por estas palavras, o Sábio nos exorta a termos mais confiança na misericórdia de Deus do que temor da sua justiça, porque Ele é incomparavelmente mais propenso a fazer bem do que a punir: 'A misericórdia' - diz São Tiago - 'vence a justiça' (Tg 2,13). Daqui este aviso do Apóstolo São Pedro de que, no meio dos nossos temores, no que diz respeito aos nossos interesses, quer temporais, quer eternos, devemos nos entregar inteiramente à bondade do nosso Deus, o qual, ajunta ele, tem cuidado extremo da nossa salvação: 'Confiai-lhe todos os vossos cuidados porque Ele toma para si a vossa salvação' (IPd 5,7). 

E a este propósito, com que belo título Davi dá ao Senhor quando lhe chama 'o Deus que salva' (Sl 67,21). Segundo a explicação de Belarmino, ele nos ensina por este modo que o modo próprio do nosso Deus não é condenar, mas salvar todos os homens; porque, se Ele ameaça com a sua cólera aos que o desprezam, promete e assegura a sua misericórdia àqueles que o temem, assim como a Mãe de Deus o proclama no seu Cântico: E a sua misericórdia repousa sobre aqueles que o temem... Eu vos cito todos estes textos da Escritura, alma devota, a fim de que se alguma vez fordes tentada com inquietações a respeito da própria salvação, da vossa predestinação, vos tranquilizeis, vendo nas promessas do Senhor quanto Ele deseja vos salvar, contanto que estejais resolvida a amá-lo e servi-lo como Ele assim o quer. 

3. Nas alegrias 

Quando receberdes alguma notícia satisfatória, não façais como costumam fazer certas almas infiéis e ingratas, que recorrem a Deus no tempo da tribulação, mas na prosperidade o esquecem e o abandonam. Procedei para com Deus com a mesma fidelidade que usais com um amigo sincero que estimaria como sua a vossa felicidade; ide comunicar-lhe a vossa alegria: louvai-o e dai-lhe graças, reconhecendo que deveis tudo à sua bondade; julgai-vos feliz por lhe serdes devedora desta graça; ponde, enfim, toda a vossa alegria e consolação no Senhor: 'Eu me regozijarei em Deus meu Salvador' (Hb 3,18), e ainda, 'Cantarei os louvores do Senhor de quem me vêm estes bens' (Sl 12,10). 

Dizei-lhe: 'Meu Jesus, eu vos bendigo e bendirei sempre por todas as graças que me prodigalizais, a mim pecador, que mereceria, não favores, mas castigos'. Dizei-lhe como a esposa sagrada: 'Todos os frutos, novos e velhos, conservo para vós, ó meu bem-amado' (Ct7,13). Senhor, eu vos dou graças; conservo a lembrança de todos os vossos benefícios, passados e presentes, para vos tributar por eles honra e glória por toda a eternidade. Mas, se amais com verdade o vosso Deus, regozijar-vos-eis ainda mais com a dEle do que com a vossa felicidade. Não raro tem a gente mais satisfação com o bem da pessoa a quem muito ama do que com o seu próprio. Sede, pois, feliz, por saberdes que o vosso Deus é infinitamente feliz, dizei-lhe muitas vezes: 'Meu amadíssimo Senhor, regozijo-me mais com a vossa imensa felicidade do que com a minha, porque Vos amo mais que a mim mesmo'. 

4. Depois de uma falta 

Se após cada falta em que cairdes, não vos envergonhardes de ir lançar-vos aos pés do vosso amantíssimo Deus e pedir-lhe perdão, dar-lhe eis um sinal de confiança que lhe é singularmente agradável. Sabei-o, Deus é tão inclinado a perdoar, que geme pela perdição das almas que se separam dEle e vivem privadas da vida da graça. Ele as convida com ternura: 'Por que correr para a morte, filhos de Israel? Voltai-vos para mim e vivereis' (Ez 18,31). À alma que o abandonou Ele promete acolher logo que torne para os seus braços: 'Voltai-vos para mim e eu me voltarei para vós' (Zc 1,3). Ó se os pecadores soubessem com que bondade o Senhor os espera, para lhes perdoar! 'O Senhor' - diz Isaías - 'espera e deseja fazer misericórdia' (Is 30,18). Ó se eles pudessem compreender a que ponto, longe de querer puni-los, Ele deseja que, por uma sincera conversão, lhe permitam abraçá-los e apertá-los sobre o seu coração! 

Não é isto o que Ele afirma? 'Eu juro por mim mesmo' - diz o Senhor Deus - 'não quero a morte do ímpio, mas sim que deixe o seu mau caminho e viva' (Ez 33,11). Chega a dizer: Pecadores, arrependei-vos de me ter ofendido, depois vinde a mim; se não vos perdoar, acusai-me de mentira e infidelidade; mas não, longe de faltar à minha promessa, se vierdes, 'ainda que as vossas consciências sejam escarlates ou enegrecidas pelos vossos pecados, torná-las-ei pela minha graça brancas como a neve' (Is 1,18). Enfim, é declaração formal do Senhor; que lançará no esquecimento todos os pecados da alma que se arrepender de o ter ofendido (Ez 18,22). 

Assim, depois de uma queda erguei logo os olhos para o Senhor com um ato de amor, reconhecei humildemente a vossa falta, e, esperando com segurança o perdão, dizei-lhe: 'Senhor! Este coração que amais está enfermo' (Jo 11,3), coberto todo de chagas: 'curai-me porque pequei contra vós' (Sl 40,5). Ides atrás dos pecadores arrependidos; eis que um vem a vós, ei-lo aos vossos pés: o mal está feito, que partido tomarei? Não quereis que eu perca a confiança; ainda depois deste pecado, vós me quereis bem, e eu também vos amo ainda; sim, Deus meu, amo-vos de todo o meu coração; pesa-me de vos ter desagradado, resolvido estou a não fazê-lo mais; sois o Deus 'cheio de doçura e misericórdia' (Sl 85,5), perdoai-me, pois, dizei como à Madalena: 'os teus pecados te são perdoados' (Lc 7,48) e concedei-me a força de vos ser fiel para o futuro. 

A fim de não vos desanimardes, lançai, então principalmente, um olhar sobre Jesus Crucificado; oferecei os seus méritos ao Pai Eterno, e esperai obter assim o vosso perdão, pois que, para vos perdoar, Deus não poupou seu próprio Filho (Rm 8,32). Dizei-lhe com confiança: 'Meu Deus, olhai para a face de vosso Cristo' (Sl 83,10), vede o vosso Filho, morto por mim e, por amor deste Filho, perdoai-me. Prestai a mais séria atenção, ó alma devota, a este conselho que dão comumente os mestres da vida espiritual, de recorrer a Deus logo depois de cada infidelidade; ainda que vos aconteça a infelicidade de cair nela cem vezes ao dia, ponde-vos em paz cada vez e sem demora, voltando-vos para o Senhor; porque, se ficais desanimada e perturbada pela falta cometida, havereis de fugir do trato com Deus, a vossa confiança se diminuirá, o vosso desejo de amá-lo se esfriará, e não podereis mais progredir no caminho do Senhor. 

Ao contrário, se recorrerdes logo a Deus para lhe pedir perdão e prometer corrigir-vos, as mesmas quedas contribuirão para vos adiantar no amor divino. Quando, entre pessoas que se amam deveras, uma delas desagrada a outra, mas não tarda em desagravá-la com humilde satisfação, a amizade, em vez de acabar, não raro se estreita mais do que antes. Seja o mesmo entre Deus e vós; procedei de modo que as vossas mesmas faltas sirvam para aproximar cada vez mais os laços de amor que vos unem a Ele. 

5. Nas dúvidas

Nas dúvidas, quer vos sejam pessoais, quer alheias, fazei como os amigos fiéis, que consultam entre, si todos os seus negócios; nunca deixeis de dar a Deus esta prova de confiança: consultai-o, pedi-lhe que vos esclareça, a fim de tomardes a resolução que lhe seja mais agradável: 'Ponde a palavra nos meus lábios e aumentai a sabedoria na minha alma' (Jt 9,18); dizei-me vós mesmo, Senhor, o que quereis que eu faça ou responda; eu vos obedecerei: 'Falai, Senhor, porque o vosso servo escuta' (I Sm 3,9). 

6. Para o próximo

 Recomendai a Deus com confiança, não só as vossas próprias necessidades, mas também as dos outros. Quanto agradaríeis a Deus, se soubésseis vos esquecer algumas vezes dos vossos interesses pessoais, para lhe falar dos interesses da sua glória, das misérias do próximo e lhe recomendar em particular os infelizes que gemem sob o peso das tribulações, as almas do purgatório e os pobres pecadores que vivem na privação da sua graça. 

Em favor destes últimos podereis pedir-lhe assim: 'Senhor, todo amável sois, amor infinito mereceis; como pois sofreis que haja no mundo tantas almas que, cumuladas dos vossos benefícios, não vos querem conhecer nem amar, e até vos ofendem e desprezam? Ó meu Deus infinitamente amável, fazei que vos conheçam, fazei que vos amem. Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino; sim, oxalá seja o vosso nome adorado e amado por de todos os homens; oxalá o Vosso amor reine em todos os corações. Ah! não me despeçais de vós sem que me tenhais concedido alguma graça para essas pobres almas em cujo favor vos intercedo'. 

7. Desejo do Céu

Há no purgatório, segundo se pensa, uma pena particular, chamada languidez, à qual são condenadas as almas que, nesta vida, pouco desejaram o Paraíso. Esta opinião é fundada em razão, porque não desejar vivamente um bem tão grande, um reino eterno que nosso Redentor nos adquiriu a preço do seu sangue, é fazer muito pouco caso dele. Lembrai-vos, pois, alma devota, de suspirar frequentemente por essa morada celeste; dizei ao vosso Deus que, por causa do desejo em que ardeis de ir amá-lo contemplando-o sem véu, o vosso exílio parece de mil anos. Ansiai por deixar esta terra de pecados onde correis continuamente o risco de perder a divina graça, a fim de entrardes na pátria de amor onde amareis o Senhor com todo o vosso poder. 

Repeti-lhe muitas vezes: 'Senhor, enquanto eu aqui viver, estarei sempre em perigo de vos abandonar e renunciar ao vosso amor; quando então me será dado deixar esta terra em que vos ofendo todos os dias, ir amar-vos de todo o meu coração e unir-me a vós, sem temor de vos perder nunca mais!' Tais eram os suspiros contínuos de Santa Teresa; ela se regozijava quando ouvia o relógio dar as horas, pensando que era mais uma que se passava, uma hora de perigo de perder a Deus que havia passado; os seus desejos de morrer para ver a Deus eram tão ardentes que, de algum modo, a matavam, e tal é o assunto de sua amorosa elegia: 'Eu morro de pesar de não poder morrer'.

(Santo Afonso Maria de Ligório)