terça-feira, 14 de maio de 2024

SERMÕES DO CURA D'ARS (XIX)

SOBRE A NOSSA VOCAÇÃO DE TESTEMUNHAS DE CRISTO 

'Também vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio' 
(Jo 15,27)


Quando dois reinos estão em guerra um com o outro, é fácil distinguir os soldados de cada parte por meio de suas armas, seus uniformes e suas bandeiras. Desde o princípio do mundo, tem-se travado uma luta violenta entre o Rei do Céu e da Terra e o príncipe das trevas, sobre a qual deles deve pertencer a raça humana. Cristo, o Redentor, pela sua morte e ressurreição, ganhou a vitória sobre o inferno.

Antes de entrar gloriosamente no céu como vencedor, levando consigo as almas dos justos da antiga lei, como primogênitos da sua vitória, fundou a sua Igreja na terra como o seu reino, no qual deveríamos continuar a combater contra o inferno, e pelo seu poder deveríamos e poderíamos completar a vitória.

Por isso Ele diz aos Seus Apóstolos, os generais do seu reino: 'Vós dareis testemunho de mim', e a Sagrada Escritura diz deles: 'Com grande coragem os Apóstolos deram testemunho da ressurreição de Jesus Cristo, nosso Senhor' (At 4,33.) As palavras de Cristo aplicam-se também a nós. Todos nós somos obrigados a dar testemunho dEle, não por sermões e milagres, como fizeram os Apóstolos, mas pela nossa vida, pela imitação de Jesus; pois como todos nós nos tornamos membros do seu corpo, e recebemos de Cristo o nome de 'cristãos', somos obrigados a levar uma vida digna deste Chefe, não para trazer desgraça ao seu Santo Nome, mas para viver de tal forma que, na nossa vida, o cristão possa ser distinguido do não-cristão. Este é o nosso testemunho de Cristo. Vou agora falar sobre este assunto. No Cântico dos Cânticos, o divino Esposo diz à alma que o ama: 'Põe-me como um selo no teu coração, como um selo no teu braço' (Ct 8,6). Nós trazemos este selo de Cristo quando o imitamos:

I. Em nossa vontade
II. Em nossas palavras
III. Em nossas obras

I

1. Davi exprime a vontade de nosso Redentor nestas palavras que o Espírito Santo lhe permite pronunciar (Sl. xxxix. 8-9): 'No princípio do livro está escrito a meu respeito: fazer vossa vontade, meu Deus, é o que me agrada, porque vossa Lei está no íntimo de meu coração (Sl 39, 8-9). Mas Cristo diz de si mesmo (Jo. vi. 38): 'Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou' (Jo 6,38) e 'Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou' (Jo 4,34) e o Apóstolo exalta-o, dizendo: 'Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz' (Fp 2,8). Quando desceu da glória do céu para a terra, sacrificou-se à vontade de seu Pai. 'Tu queres, ó meu Deus' - disse Ele, por assim dizer, com completa resignação - 'que eu nasça num estábulo desolado; que derrame o meu sangue na circuncisão; que fuja diante de Herodes; que suporte os fardos e os problemas desta vida terrena durante trinta e três anos. Vós quereis que eu seja traído, desprezado, cuspido, esbofeteado nas faces e flagelado, coroado de espinhos, pregado na cruz e sofra a mais cruel das mortes. Meu Deus, eu também o quero. Estou pronto a sofrer estas e outras aflições ainda maiores'.

2. Agora, caro cristão, contempla e age de acordo com este modelo nas tuas disposições. Quando mil decepções te cercarem, dize também: 'Meu Deus, eu quero!' Quando a pobreza te aflige, quando a língua do caluniador te fere, quando os falsos amigos te enganam, quando a doença te visita, quando as dores corporais te atormentam, com paciência invencível imita Cristo e diz: 'Meu Deus, eu quero!' Deveis ter estas disposições, esta vontade; então a vida de Cristo é o vosso modelo e vós dais testemunho dEle.

3. Como agiste até agora? Examina-te a ti mesmo e reconhece como as tuas disposições têm sido muitas vezes diferentes daquelas do Senhor. Ah, quantas pessoas ambiciosas existem cujos pensamentos e ações são dirigidos para a aquisição de honra, reconhecimento, cargos e dignidades! Quantas pessoas avarentas que ponderam noite e dia sobre como aumentar o seu dinheiro! Quantos mundanos que pensam continuamente nos seus prazeres! Quantas almas vingativas que não esquecem as injúrias que sofreram! É isto dar testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás?

II

1. De que tipo são as palavras de Jesus Cristo, nosso Senhor? Pedro disse uma vez: 'Tu tens palavras de vida eterna' (Jo 6,69), pois todas as suas palavras foram dirigidas para a honra de Deus, a extirpação do pecado, o crescimento da virtude e a salvação das almas. Consideremos isso nas sete últimas palavras sagradas que Ele proferiu da cruz, em meio à sua agonia de morte. Primeiro, orou ao Pai celestial: 'Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem' (Lc 23,34). Estas são palavras de misericórdia e reconciliação. Ao ladrão penitente, disse: 'Hoje estarás comigo no paraíso' (Lc 23,43)- palavras de abençoada promessa. Dirige estas palavras à sua Mãe Santíssima: 'Mulher, eis aí o teu filho!' e ao seu discípulo: 'Eis aí a tua mãe!' (Jo 19,26). Que palavras consoladoras! No momento do abandono, Ele clama, com inteira submissão e confiança em Deus: 'Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?' (Mt 37,46.) Seu desejo de sofrer ainda mais e no mais alto grau por causa de nossa salvação nos é provado por seu grito: 'Tenho sede' (Jo 19,28); 'Tudo está consumado' (Jo 19,30). Ele diz, cheio de alegria, que completou a nossa redenção, e recomenda a sua alma com resignação nas mãos do seu Pai: 'Nas tuas mãos entrego o meu espírito' (Lc 23,46.) Agora, queridos cristãos, olhai para este modelo e agi de acordo com as vossas palavras. Tudo o que falardes deve ser para a honra de Deus, e para a vossa própria salvação e a do vosso próximo. A palavra nos é dada, como diz um servo de Deus, para louvar a Deus, para a edificação do nosso próximo.

2. As tuas conversas têm sido desta natureza, amigo cristão? Ah, quão diferentes elas têm sido muitas vezes daquelas do Senhor! Se entrarmos nas casas e palácios dos ricos e poderosos, que conversa, que conversas estão em voga? Que palavras ouvimos nas salas de aula, nas assembleias dos líderes do povo? Nas ruas encontramos as indicações dos prazeres sensuais, nas lojas é a vaidade; em casa, nas oficinas, com demasiada frequência, infelizmente, apenas incredulidade e blasfêmia. Onde é que, nos nossos dias, não há um lugar em que as reputações não sejam destruídas, as calúnias, as blasfêmias, os juramentos e, sobretudo, onde as conversas impróprias não tenham encontrado um lugar? Mesmo a vida familiar já não é pura e, nos ouvidos das crianças inocentes, são lançadas palavras que envenenam as suas almas. Caros cristãos, será isto dar testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás?

III

1. Consideremos, para concluir, as obras do Senhor. São Bernardo descreve-as assim: 'Sob o nome de Jesus, imagino para mim um homem humilde e manso de coração, bondoso, temperante, casto, misericordioso, em suma, distinto em todas as virtudes e santidades'. O próprio ensinamento de Nosso Senhor é testemunha de que Ele foi perfeito na prática de todas as obras que ensinou. Ele diz: 'Bem-aventurados os pobres de espírito' e, desde o seu nascimento no estábulo até à sua morte na cruz, Ele próprio foi o mais pobre, pois não tinha onde reclinar a cabeça. 'Bem-aventurados os mansos', diz Ele, e Ele não só perdoa o mal que lhe foi feito, mas recompensa-o com o mais rico dos benefícios. 'Bem-aventurados os aflitos' - Ele expiou os nossos pecados em todo o seu corpo e chorou sobre eles lágrimas de sangue. 'Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça' - mas o seu alimento era fazer a vontade de Seu Pai. 'Bem-aventurados os misericordiosos' - Ele amontoou boas ações sobre os seus inimigos. 'Bem-aventurados os pacificadores' - Ele imprimiu a paz entre Deus e o homem. 'Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça' - Ele suportou o ódio e a perseguição por causa dos seus ensinamentos até a morte.

2. Mas como é que realizamos as nossas obras? Não amais desordenadamente o vosso corpo e o vosso conforto, e não aderis tão obstinadamente às máximas do mundo que quase vos envergonhais de ser cristãos? Ou amas o pecado, deixas que os teus vícios se tornem hábitos, e até deixaste de lado qualquer sentimento de vergonha por isso, ou só pensas no que é terreno, e vives como o animal irracional, perseguindo constantemente os prazeres e a sensualidade. Infeliz cristão, é assim que se dá testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás? Não é de admirar que os hereges e os incrédulos não se convertam quando vêem que os católicos e os cristãos são piores do que eles?

3. Portanto, meus caros cristãos, olhai e portai-vos segundo o modelo que vos é mostrado. É vosso dever imitar a doutrina e o exemplo do Redentor e praticar diligentemente a perfeição cristã. Deveis servir a Deus e refletir noite e dia sobre as suas leis; deveis crucificar vossa carne com seus desejos perversos; não deveis ser vencidos pela adversidade, nem deslumbrados pela felicidade. É vosso dever praticar de tal modo as virtudes cristãs que até os incrédulos as admirem e digam que não são capazes de chegar a tão alta perfeição. Se isto pudesse ser dito de todos os cristãos, certamente o mundo inteiro seria cristão em curto tempo!

Não demoreis, caros cristãos, a conformar a vossa vida à vida de Jesus Cristo, e a dar assim testemunho dEle. Ouvi como o Apóstolo vos exorta: 'Levemos sempre em nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo' (II Cor 4,10). Pela mortificação, deveis fazer da vossa vida uma cópia da vida de Jesus. Os vossos olhos não devem ser demasiado curiosos, nem a vossa boca sem pudor, nem os vossos desejos sensuais ingovernáveis, como o são os dos pagãos; a vossa conduta não deve corresponder à vida do rico glutão. Pelo contrário, todos os que virem o vosso exemplo e a vossaconduta possam reconhecer que sois, não só de nome, mas de fato e de verdade, um cristão, um seguidor do Crucificado e um herdeiro do Reino dos Céus. Amém.