sábado, 11 de maio de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (II)


11. Não há santo, por mais santo e inocente que seja, que não se considere verdadeiramente o maior pecador do mundo. Basta que ele se conheça como homem para reconhecer que é suscetível de cometer todos os males de que o homem é capaz. Como homem, tenho na minha natureza corrupta uma propensão para todos os males; e, no que me diz respeito, sou perfeitamente capaz de cometer todos os tipos de pecado e, se não os cometo, é por uma graça especial de Deus que me preserva e os restringe.

Uma árvore não cai quando se dobra sob seu próprio peso e isso se atribui à força de sua sustentação; e, da mesma forma, se eu não caí em todo tipo de iniquidade, isso não deve ser atribuído à minha própria virtude inerente, mas apenas à graça divina que, por sua bondade, me sustentou. Portanto, como posso estimar-me mais do que outro, se somos todos iguais na fraqueza humana? 'Pois qual é a minha força?' [Jó 6,11]. Sou um filho de Adão como qualquer outro homem, nascido em pecado, inclinado ao pecado e sempre pronto a cair em pecado. Não preciso do demônio para me tentar a pecar; a minha própria concupiscência é uma tentação demasiado grande; e se Deus retirasse de mim a sua mão protetora e auxiliadora, sei que seria precipitado de mal a pior. 

Quando Santo Agostinho fazia o seu exame de consciência, nem sempre encontrava o suficiente para excitar dentro de si a tristeza e a contrição, pelo que se detinha nos pecados que poderia ou teria cometido, se não tivesse sido preservado deles pela infinita misericórdia de Deus; e entristecia-se e acusava-se a si próprio e implorava humildemente o perdão de Deus pela inclinação que tinha de cometer toda a espécie de pecados hediondos e ímpios. Nessa prática, encontra-se o exercício da verdadeira humildade.

12. Aconteceu muitas vezes que aqueles que eram mais perfeitos do que os outros caíram vergonhosamente, e isto depois de um longo período de boas e virtuosas obras, mostrando as fragilidades de que um homem é capaz ao se abandonar a si próprio e de se deixar levar pela fraqueza do seu livre arbítrio. Deus demonstrou a sua onipotência criadora, formando-me do nada e fazendo de mim um ser humano. Se Deus retirasse de mim a sua mão onipotente e protetora, eu mostraria imediatamente do que sou capaz quando abandonado a mim mesmo, voltando imediatamente ao meu nada. E, na ordem da graça, o nada em que me consumo quando abandonado a mim mesmo é o pecado. Quantas vezes 'sou levado ao nada, e não o sabia' [Sl 72,22]. E o que é que eu posso encontrar do que me orgulhar nesse nada?

13. Dai-me a graça, ó meu Deus, de me conhecer apenas o necessário para me manter humilde! Porque, se eu me apercebesse da insignificância do meu ser e da extensão da minha maldade, capaz de vos ofender de diversas maneiras inconcebíveis, receio que ficaria tão horrorizado comigo mesmo que me entregaria ao desespero! Temos dentro de nós, na nossa própria experiência e nos nossos sentimentos, o conhecimento de como a nossa natureza frágil e decaída está inclinada para o mal. Hoje vamos e confessamos algumas de nossas faltas, tomando a resolução de não cair nelas novamente, e amanhã, apesar disso, voltamos a cometê-las.

Num momento, decidimos adquirir uma determinada virtude e, no momento seguinte, fazemos exatamente o contrário, caindo no vício oposto. No momento em que tomamos essas resoluções de emenda, imaginamos que nossa vontade é firme e forte, mas logo percebemos quão fraca e não confiável ela é, pois nos comportamos como se nunca tivéssemos proposto correção alguma. O nosso coração é como uma cana que se dobra a qualquer vento ou como um barco agitado por qualquer onda. Basta encontrar uma ocasião de pecado, um movimento de paixão, um sopro de tentação, para que a vontade ceda ao mal, mesmo quando, em certos momentos de fervor, parecemos mais firmemente enraizados no bem. Esta é uma razão forte para sermos humildes e não presumirmos nada de nós próprios, rezando continuamente a Deus para que Ele se digne confirmar nos nossos corações aquilo que opera pela sua graça: 'Confirma, ó Deus, o que tens feito em nós' [Sl 67, 29].

Alguns mestres da vida espiritual ensinam que é melhor desviar os nossos pensamentos de certas ações heróicas, nas quais a nossa fraqueza poderia levar-nos a duvidar se devemos ou não ser bem sucedidos; por exemplo: se um perseguidor viesse intimar-me a renunciar à fé ou a morrer, como deveria agir? Ou se eu recebesse um terrível insulto público, deveria praticar a paciência ou o ressentimento? Não, dizem eles, não é bom se empenhar em tais imaginações, porque a nossa fraqueza pode fazer-nos cair diante da ideia de uma tal provação.

14. Mas, se tais pensamentos surgirem, podemos transformá-los em nosso bem e usar a nossa própria fraqueza para praticar a humildade. Quando essas ideias surgem, seria bom dizer: Sei o que devo fazer em tal ou tal ocasião, mas não sei até que ponto posso confiar em mim mesmo, porque sei, por experiência própria, que 'a minha força se enfraquece com a pobreza' [Sl 30, 11] e aprendi, em várias ocasiões, como a minha razão fica cega, o meu juízo enfraquece e a minha vontade se perverte facilmente para o mal. Ó meu Deus, tudo posso, se me fortalece o vosso auxílio; mas, sem isso, nada posso e nem poderei jamais! Se tivesse de confessar-vos, negar-vos-ia miseravelmente; se tivesse de honrar-vos com paciência, daria lugar à vingança; se tivesse de obedecer-vos, ofender-vos-ia com a desobediência: Vós sois um forte ajudante; quando a minha força falhar, não me abandonets' [Sl 70, 7.9]. A vossa palavra é bem verdadeira, ó meu Deus: 'Sem mim nada podeis fazer' [Jo 15,5]. Não só sem Vós não posso fazer nenhum ato meritório de virtude, mas também não posso fazer nada; como me ensina Santo Agostinho: 'Quer algo seja pequeno ou grande, não pode ser feito sem Aquele sem o qual nada pode ser feito' [Trat 31].

15. Uma bela maneira de pedir humildade a Deus foi a seguinte, usada por um grande santo. Senhor, dizia ele, nem sequer sei o que é a humildade, mas sei que não a possuo e que não posso obtê-la por mim mesmo; e que, se não a tiver, não me salvarei; portanto, só me resta pedi-la a Vós, mas dai-me a graça de a pedir como devo. Prometestes, meu Deus, conceder-me todas as coisas que Vos pedir e que são necessárias para a minha salvação eterna; e sendo a humildade a coisa mais necessária para mim, a fé obriga-me a acreditar que Vós a concedereis a mim, se eu vos souber pedi-la. Mas aqui reside a dificuldade, porque não sei vos pedir como devo. Ensinai-me e ajudai-me para que eu vos peça como V´s quereis que eu peça e da maneira eficaz com que Vós mesmo sabeis que serei ouvido. E como Vós  me ordenastes ser humilde, estou pronto a obedecer; mas faz com que, com a vossa ajuda, eu possa na verdade tornar-me tal como Vós o desejais. Desejo ardentemente ser humilde, e de onde me vem este amor e desejo de humildade senão de Vós, que o puseste no meu coração pela vossa santa graça? Por vossa bondade, concedei-me, pois, o que me fizestes amar e desejar tanto. Espero-o e continuarei nesta confiança: 'Fortalecei-me, Senhor Deus, para que, como prometeste, eu possa realizar o que propus, acreditando que por Vós possa ser feito' [Jt 13,7].

16. Podemos persuadir-nos de que possuímos várias virtudes, porque temos dentro de nós uma prova tangível de que realmente as possuímos. Assim, podemos julgar-nos castos, porque nos sentimos realmente atraídos pela castidade; ou podemos considerar-nos abstêmios, porque o somos por natureza; ou obedientes, porque praticamos uma obediência pronta. Mas, por mais que um homem exercite a humildade, nunca poderá formar um juízo sobre o fato de ser realmente humilde, pois aquele que se julga humilde na verdade já não o é.

Da mesma forma que reconhecer que se é orgulhoso é o começo da humildade, também se lisonjear de que se é humilde é o começo do orgulho e, quanto mais humildes nos julgamos, maior é o nosso orgulho. Essa autocomplacência que o coração sente, fazendo-nos imaginar que somos humildes em consequência de algumas reflexões agradáveis que tivemos a nosso respeito, é uma espécie de vaidade; e como pode existir vaidade com a humildade que se funda unicamente na verdade? A vaidade não é senão uma mentira, e é precisamente da mentira que nasce o orgulho. Roguemos a Deus como o profeta: 'Não me calque o pé do orgulhoso' [Sl 35, 12]. Concedei-me, ó meu Deus, que eu seja humilde, mas que não saiba que sou humilde. Faz-me santo, mas ignorante da santidade; porque se eu aprendesse a saber ou mesmo a imaginar-me santo, tornar-me-ia vaidoso; e pela vaidade, perderia toda a humildade e santidade.

 17. Do que acaba de ser exposto, é possível que surja uma dúvida tormentosa no espírito de alguém que diga: 'Se me julgo carente de humildade, devo concluir que estou perdido, e tal julgamento me levaria ao desespero'. Mas não percebeis o erro? Para falar com sabedoria, deveríeis dizer: 'Sei que me falta a humildade; portanto, devo procurar obtê-la, porque sem humildade sou um réprobo, e é necessário ser humilde para estar entre os eleitos'.

De fato, seria motivo de desespero se, por um lado, a humildade fosse necessária para a salvação e, por outro, fosse inatingível. Mas nada é mais natural para nós do que a humildade, porque somos atraídos para ela pela nossa própria miséria; e nada é mais fácil, pois basta abrirmos os olhos e conhecermo-nos a nós próprios; não é uma virtude que tenhamos de ir procurar longe, pois podemos sempre encontrá-la dentro de nós, e temos uma infinidade de boas razões para o fazer. No entanto, enquanto a vida durar, devemos esforçar-nos por adquirir a humildade, sem nunca imaginar que a adquirimos; e mesmo que a tenhamos obtido em certa medida, devemos continuar a esforçar-nos como se não a possuíssemos, a fim de a podermos conservar. Tenhamos um verdadeiro desejo de sermos humildes; não deixemos de implorar a Deus que nos dê a graça de sermos humildes; e estudemos frequentemente os motivos que podem ajudar a tornar-nos humildes de coração; e não duvidemos da bondade divina, mas conformemo-nos com os conselhos que nos são dados na Sagrada Escritura: 'Pensai no Senhor com bondade'  [Sb 1,1].

18. Embora sintamos profundamente uma humilhação quando somos insultados, perseguidos ou caluniados, isso não significa que não possamos sofrer tais provações com sentimentos de verdadeira humildade, submetendo a natureza à razão e à fé e sacrificando o ressentimento do nosso amor-próprio ao amor de Deus. Não somos feitos de pedra, de modo que precisemos ser insensíveis ou insensatos para sermos humildes. De alguns mártires, lemos que se contorciam sob seus tormentos; de outros, que se alegravam mais ou menos com eles, segundo o maior ou menor grau de unção que recebiam do Espírito Santo; e todos foram recompensados com a coroa da glória, pois não é a dor ou o sentimento que faz o mártir, mas o motivo sobrenatural da virtude. Do mesmo modo, algumas pessoas humildes sentem prazer em serem humilhadas, e outras sentem tristeza, especialmente quando sobrecarregadas com calúnias; e, no entanto, todas elas pertencem à esfera dos humildes, porque não é a humilhação nem o sofrimento por si só que torna a alma humilde, mas o ato interior pelo qual essa mesma humilhação é aceita e recebida por motivos de humildade cristã e especialmente pelo desejo de se assemelhar a Jesus Cristo que, embora com direito a todas as honras que o mundo lhe podia oferecer, suportou a humilhação e o desprezo para a glória do seu Pai eterno: 'Por amor de Vós, ó Deus de Israel, suportei o opróbrio'  [Sl 68,8].

A doutrina de São Bernardo é digna de nossa atenção: uma coisa é ser humilhado, e outra é ser humilde. Acontece muitas vezes que o orgulhoso é humilhado e, no entanto, continua orgulhoso, recebendo as humilhações com raiva e desprezo, fazendo tudo o que pode para escapar delas com impaciência. Acontece também, por vezes, que o orgulhoso se torna humilde; a humilhação ensina-o a conhecer-se tal como é e, com esse conhecimento, aprende a amar essa mesma humilhação: É humilde aquele que converte todas as suas humilhações em humildade e diz a Deus: 'É bom para mim que me tenhas humilhado' [D. Bern, serm. 34, in Cant.].

19. Na vida espiritual, não posso prometer nada a mim mesmo sem a ajuda especial de Deus; e é muito verdadeiro o ensinamento do Espírito Santo: 'quem poderá te socorrer?' [Os 13,9]. De um momento para outro posso cair em pecado mortal; consequentemente, mesmo que eu tenha trabalhado muitos anos na aquisição de virtudes, posso num instante perder todo o bem que fiz, perder todo o meu mérito para a eternidade e perder até a própria eternidade abençoada. Como pode um rei governar com arrogância, quando é cercado pelos seus inimigos e corre todo dia o risco de perder o seu reino e deixar de ser rei? E um santo não tem razões de sobra para, pensando na sua própria fraqueza, viver sempre num estado de grande humildade, quando sabe que de uma hora para outra pode perder a graça de Deus e o reino dos Céus que mereceu com anos de virtudes laboriosamente adquiridas? 'Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam' [Sl 126,1].

Por mais espiritual e santo que seja um homem, ele não pode considerar-se absolutamente seguro. Os próprios anjos, enriquecidos de santidade, não estavam seguros no Paraíso. O homem, dotado de inocência, não estava seguro no seu paraíso terrestre. Que segurança pode haver, portanto, para nós, com a nossa natureza corrupta, no meio de tantos perigos e tantos inimigos, que dentro e fora de nós procuram insidiosamente minar a nossa salvação eterna? Para ser eternamente condenado, basta que eu siga os ditames da natureza, mas para ser salvo é necessário que a graça divina me previna e acompanhe, me siga e ajude, me vigie e nunca me abandone. Como estava certo São Paulo ao exortar-nos a 'trabalhar pela nossa salvação'... 'que é para toda a eternidade'... 'com temor e tremor'! [Fp 2,12].

20. Estar contente e satisfeito consigo mesmo, levar uma vida tranquila e fácil, cumprindo apenas o que o dever prescreve, não é um bom sinal. Depois de termos feito tudo o que a nossa profissão cristã exige de nós, o Senhor quer, no entanto, que nos consideremos servos inúteis da sua Igreja: 'Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei: Somos servos inúteis' [Lc 17,10]. Quanto mais inúteis nos devemos considerar, se vivemos na tibieza e na preguiça, que nos afastam da perfeição a que estamos obrigados!

Quando faço o meu exame de consciência, verifico se cumpro todos os meus deveres diante de Deus? Que virtude adquiri até agora? Pode-se dizer que adquirimos o hábito de tal ou qual virtude, quando passamos a praticá-la de boa vontade e com facilidade; mas, quando me examino, que virtude posso encontrar que habitualmente pratico com prazer e facilidade? Não encontro uma só. Sou um servo muito inútil na terra; e se eu fosse agora chamado perante o tribunal do meu Juiz eterno, temo muito que me seria dito: 'servo mau' [Mt 18,32] e não: 'muito bem, servo bom e fiel' [Mt 25, 21].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)