sexta-feira, 3 de maio de 2024

A MANEIRA DE FALAR COM DEUS (IV/Final)

4. Deus responde à alma que lhe fala

Em suma, se quereis agradar ao coração amantíssimo do vosso Deus, esforçai-vos por entreter-vos com Ele o maior número de vezes que puderdes, falar-lhe até continuamente e com toda a confiança possível; por seu lado, o Senhor não se desdenhará de responder-vos e entreter-se também convosco. Ele não vos fará ouvir a sua voz de maneira exterior e sensível, mas falar-vos-á interiormente uma linguagem que o vosso coração compreenderá bem, se souberdes vos desapegar do jugo das criaturas para tratardes a sós com o vosso Deus: 'Eu a conduzirei à solidão e aí falarei ao seu coração' (Os 2,14). Então Ele vos falará pelas inspirações, luzes interiores, testemunhos da sua bondade, toques suaves que penetram o coração, seguranças de perdão, penhores de paz, esperança de felicidade celeste, alegrias íntimas, carícias da sua graça, abraços e afagos afetuosos. Numa palavra, o Senhor vos fará entender essa linguagem de amor, perfeitamente inteligível às almas que Ele ama e que com Ele se contentam.

5. Resumo prático

Para terminar, vou recordar-vos sucintamente as coisas esparsas nos parágrafos precedentes, indicando-vos um modo prático de tornar agradáveis a Deus todas as ações do dia. De manhã ao despertardes, será o vosso primeiro pensamento elevar o vosso coração a Deus e oferecer-lhe tudo quanto fizerdes e sofrerdes durante o dia; pedir-lhe eis que vos ajude com a sua graça. Fazei em seguida os outros atos que todo cristão deve fazer pela manhã: atos de agradecimento e amor, súplica, bom propósito, resolução de passar esse dia como se fosse o último da vossa vida. 

Seguindo o conselho do padre Saint-Jure, podereis cada manhã fazer com Deus a seguinte convenção, que a toda repetição de um certo sinal, como levar a mão ao coração, levantar os olhos para o céu, olhar o crucifixo, tereis a intenção de lhe exprimir o vosso amor, o vosso desejo de vê-lo amado por todos os homens, a oferta de vós mesmos e dos outros. Após estes atos, tendo-vos colocado no Sagrado Coração de Jesus e sob o manto de Maria, pedido ao Pai eterno que vos guarde neste dia pelo amor de Jesus e Maria, procurai, logo e antes de todas as outras ações, fazer a vossa oração ou meditação ao menos durante uma meia hora. De preferência seja o vosso gosto meditar sobre a dor e desprezo que Jesus Cristo sofreu na sua Paixão; é o assunto mais caro às almas fervorosas e que melhor do que outro qualquer as abrasa com o amor divino. 

Três devoções devem, entre todas, vos ser mais do perto, se quereis progredir no caminho espiritual: a devoção à Paixão de Jesus Cristo, ao Santíssimo Sacramento e à Santíssima  Virgem Maria. Na oração, repeti muitas vezes os atos de contrição, amor de Deus, e oferenda própria. O venerável padre Caraffa, fundador dos Pios Obreiros, dizia que um ato fervoroso de amor de Deus, feito de manhã na oração, basta para conservar a alma no fervor durante o dia todo. Praticai com cuidado os outros vossos exercícios de piedade, como a confissão, a comunhão, o ofício divino e outras devoções.

Quando tiverdes de vos entregar às ocupações exteriores, ao estudo, trabalho, ou outros deveres próprios do vosso estado, não vos esqueçais, no começo de cada ação, de oferecê-la a Deus, pedindo-lhe a assistência para executá-la como convém; não deixeis de vos retirar muitas vezes, a exemplo de Santa Catarina de Sena, ao íntimo do vosso coração para vos unir a Deus. Numa palavra, tudo quanto fizerdes, fazei-o com Deus e para Deus. Saindo do vosso quarto ou casa, e em entrando nesses lugares, recomendai-vos sempre à Mãe de Deus por uma Ave-Maria. Pondo-vos à mesa, oferecei a Deus tudo o que experimentardes de desgosto e prazer no beber e comer; e no fim da comida, dai graças, dizendo: 'Senhor, quantos benefícios prestais a quem tantas vezes vos tem ofendido!' Durante o dia, não vos esqueçais da vossa leitura espiritual, nem da visita ao Santíssimo Sacramento e a Maria Santíssima.

À tarde, rezai o Rosário e fazei o exame de consciência, seguido dos atos de fé, esperança, caridade, contrição, bom propósito, com a intenção de receber, durante a vossa vida e na hora da vossa morte, os sacramentos da Igreja, e ganhar as indulgências concedidas. Ao deitar, pensai que devíeis estar no fogo do inferno; adormecei-vos tendo nos braços o crucifixo, e dizendo: 'Contando com a proteção do Senhor, dormirei e repousarei em paz' (Sl 4, 9) . A fim de que a vossa vida inteira se passe no recolhimento e união com Deus, esforçai-vos por aproveitar tudo o que vedes ou ouvis, para elevar o vosso coração a Deus ou recordar-vos as coisas da eternidade. 

... Lembrai-vos também frequentemente dos mistérios de amor que dizem respeito ao nosso divino Salvador, e quando virdes palha, manjedoura ou gruta, lembrai-vos do Menino Jesus no estábulo de Belém. Se é uma serra, um martelo, vigas, machado, pensai em Jesus trabalhando como simples operário na oficina de Nazaré. Se são cordas, espinhos, cravos, uma peça de madeira, pensai nas dores e morte do nosso Redentor. São Francisco de Assis não podia encontrar um cordeiro sem se enternecer até às lágrimas. 'O meu divino Mestre deixou-se conduzir para a morte como um cordeiro pelo amor de mim!' Enfim, vendo um altar, um cálice, uma casula, recordai-vos do grande amor que Jesus Cristo nos testemunhou, dando-se a nós no Sacramento da Eucaristia.

A exemplo de Santa Teresa oferecei-vos muitas vezes a Deus no decorrer do dia, dizendo-lhe: 'Senhor, eis-me aqui, fazei de mim o que vos aprouver; que devo fazer para o vosso serviço? Dizei-me, pronto estou a obedecer-vos'. Multiplicai, o mais que puderdes, os atos de amor de Deus. Estes atos, dizia Santa Teresa, são a lenha que entretém nosão podes amar o teu Deus'. E logo - que prodígio! - o animal se pôs a derramar lágrimas a ponto de nossos corações o fogo do santo amor. A venerável Irmã Serafina de Capri, olhando um dia o asno do seu mosteiro, pôs-se a considerar que ele não tinha a faculdade de amar a Deus, e tocada de compaixão por este pensamento, exclamou: 'Pobre animal, tu não sabes, tu não podes amar o teu Deus!' E logo - que prodígio! - o animal pôs-se a derramar lágrimas a ponto de verem que corriam em torrentes dos seus olhos. 

Segui o exemplo desta santa religiosa; a vista dos seres incapazes de conhecer a Deus e amá-lo vos excite a aproveitardes da vossa natureza inteligente para produzir numerosos atos de amor. Quando cairdes em alguma falta, não tardeis em vos humilhar, e procurai reerguer-vos por um ato de amor mais fervoroso. Quando vos acontecer alguma coisa de desgosto, oferecei logo a vossa pena ao Senhor, e conformai-vos com a sua santa vontade; habituai-vos a repetir em todas as contrariedades: 'Deus o quer assim, assim o quero eu'. Os atos de resignação são os atos de amor mais caros e agradáveis ao coração de Deus.

Tendes de tomar uma resolução, dar um conselho de certa importância? Recomendai-vos primeiro a Deus, e depois agi ou respondei. À imitação de Santa Rosa de Lima, repeti, o maior número de vezes que vos for possível, no decurso do dia, a oração: 'Senhor, vinde em meu auxílio' (Sl 60,2), enão me abandoneis à minha fraqueza. Para obter o socorro de Deus, lançai muitas vezes os olhos sobre o crucifixo ou a imagem da Santíssima Virgem, que deveis ter no vosso quarto; não vos esqueçais de invocar frequentemente os nomes de Jesus e Maria, sobretudo nas tentações. Deus, cuja bondade é infinita, deseja em extremo nos acumular dos seus favores.

O venerável padre Baltasar Álvares viu um dia a Jesus Cristo com as mãos cheias de graças, procurando a quem distribuí-las; mas quer o Senhor que as peçamos: 'Pedi e recebereis' (Jo 16,24); faltando a petição, ele retira a sua mão; ao contrário, abre-a de bom grado aos que o invocam. 'Desprezou Deus alguma vez a oração daquele que o invocar?' (Ecl 2,12) pergunta o Eclesiástico; recusou alguma vez ouvi-la? E segundo Davi, Deus não se mostra somente misericordioso mas misericordiosíssimo para com aqueles que o invocam: 'Senhor, vós sois cheio de doçura, bondade e grande misericórdia para todos os que vos chamam em seu socorro' (Sl 85,5). 'Quão bom é o Senhor para a alma que nele confia e o busca com amor' (Lm 3,25). 

Enfim, como nos fala Santa Teresa, as almas justas devem, na prática de amor, conformar-se nesta terra tal qual as almas bem-aventuradas que já estão no Céu. No Céu, os santos não tratam senão com Deus; todos os seus pensamentos se referem à sua glória, todo o seu prazer é amá-lo: assim deveis também ser. Seja Deus neste mundo a vossa única felicidade, o único objeto dos vossos afetos, o único fim de todas as vossas ações e desejos, até que chegueis ao reino eterno, onde o vosso amor será em tudo perfeito e consumado, onde os vossos desejos serão todos plenamente realizados e satisfeitos.

(Santo Afonso Maria de Ligório)