segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXIV)

Capítulo LXXIV

Alívio às Santas Almas - A Sorte Eterna dos Falecidos de Morte Súbita - O Padre Ravignan e o General Exelmans -  O Cura D'Ars e a Viúva Enlutada - Irmã Catarina de Santo Agostinho e a Mulher dos Escândalos

O Padre Ravignan, ilustre e santo pregador da Companhia de Jesus, também possuía uma grande esperança no bem estar dos pecadores levados por uma morte súbita, quando não manifestavam ódio no coração pelas coisas de Deus. Ele vivia para falar do momento supremo e parecia convencido que muitos pecadores se convertem nos seus últimos momentos, e se reconciliam com Deus, ainda que não possam manifestar qualquer sinal disso exteriormente. Em certas mortes, há mistérios de misericórdia onde o olhar do homem não vê senão golpes de justiça. Como um último lampejo de luz, Deus revela-se por vezes às almas cuja maior desgraça foi ignorá-lo e o último suspiro delas, compreendido por Aquele que sonda os corações, pode ser um gemido de perdão, ou seja, um ato de contrição perfeita. 

O general Exelmans, parente deste bom padre, foi subitamente levado ao túmulo por um acidente e, infelizmente, não tinha sido muito fiel na prática da sua religião. Tinha prometido que um dia se confessaria, mas não tinha tido oportunidade de o fazer. O Padre Ravignan, que há muito tempo rezava e pedia orações por ele, ficou consternado quando soube de tal morte. No mesmo dia, uma pessoa habituada a receber comunicações sobrenaturais julgou ouvir uma voz interior que lhe dizia: 'Quem pode medir a extensão da misericórdia de Deus? Quem conhece a profundidade do oceano ou a quantidade de água que ele contém? Muito será perdoado àqueles que pecaram por ignorância'.

O biógrafo de quem tomamos emprestado este episódio, o Padre de Ponlevoy, prossegue: 'Cristãos, colocados sob a lei da Esperança, não menos do que sob a lei da Fé e da Caridade, devemos elevar-nos continuamente do fundo dos nossos sofrimentos ao pensamento da bondade infinita de Deus. Não há limite para a graça de Deus aqui em baixo; enquanto restar uma centelha de vida, não há nada que ela não possa efetuar na alma. Por isso, devemos sempre esperar e pedir a Deus com humilde persistência. Não sabemos até que ponto podemos ser ouvidos. Grandes santos e doutores têm-se esforçado muito para exaltar a poderosa eficácia da oração em favor dos entes queridos que partiram, por mais infeliz que tenha sido o seu fim. Conheceremos um dia as maravilhas indescritíveis da misericórdia divina. Nunca devemos deixar de a implorar com a maior confiança'.

Segue-se um incidente que os nossos leitores podem ter visto no Petit Messager du Coeur de Marie, de novembro de 1880. Um religioso, que pregava uma missão às senhoras de Nancy, tinha-lhes recordado, em uma conferência, que nunca se deve desesperar da salvação de uma alma e que, por vezes, as ações de menor importância aos olhos do homem são recompensadas por Deus na hora da morte. Quando ele estava prestes a sair da igreja, uma senhora vestida de luto aproximou-se dele e disse: 'Padre, o senhor acaba de nos recomendar confiança e esperança; o que acaba de me acontecer justifica plenamente as suas palavras. Eu tinha um marido que era muito amável e afetuoso e que, apesar de levar uma vida irrepreensível, negligenciava completamente a prática da sua religião. As minhas orações e exortações ficaram sem efeito. Durante o mês de maio que precedeu a sua morte, tinha erguido no meu quarto, como era meu hábito, um pequeno altar à Virgem Maria e decorei-o com flores, que renovava de tempos a tempos. O meu marido passava o domingo no campo e, de cada vez que regressava, trazia-me algumas flores que ele próprio tinha colhido e com as quais eu enfeitava o meu oratório. Será que ele reparou nisso? Será que o fez para me agaradr ou foi por um sentimento de piedade para com a Virgem? Não sei, mas nunca deixou de me trazer as flores'.

'No início do mês seguinte, morreu subitamente, sem ter tido tempo para receber os sacramentos e bênçãos finais. Fiquei inconsolável, sobretudo porque vi desaparecerem todas as minhas esperanças de que ele se voltasse para Deus. Em consequência da minha dor, a minha saúde ficou completamente abalada, e a minha família instou-me a fazer uma viagem pelo Sul. Como tinha de passar por Lyon, desejava ver o Cura d'Ars. Escrevi-lhe, portanto, pedindo-lhe uma audiência e recomendando-lhe as orações do meu marido, que tinha morrido subitamente. Não lhe dei mais pormenores'.

'Chegando a Ars, mal entrei no quarto do venerável cura e este, para meu grande espanto, dirigiu-se a mim com estas palavras: "Senhora, está desconsolada; mas esqueceu-se dos ramos de flores que lhe eram trazidos todos os domingos do mês de maio?" É impossível exprimir o meu espanto ao ouvir o Pe. Vianney recordar-me uma circunstância de que eu não tinha falado a ninguém e que ele só podia saber por revelação. E continuou: 'Deus teve piedade daquele que honrou a sua Santa Mãe. No momento da sua morte, o vosso marido arrependeu-se; a sua alma está no Purgatório e as nossas orações e boas obras obterão a sua libertação'.

Lemos na Vida de uma santa religiosa, Irmã Catarina de Santo Agostinho (Santo Afonso, Paráfrase da Salve Regina), que no lugar onde ela vivia havia uma mulher chamada Maria, que na sua juventude se tinha entregado a uma vida muito desordenada e como a idade não lhe trouxera nenhuma emenda, tornando-a, pelo contrário, ainda mais obstinada no vício, os habitantes locais, não tolerando mais os escândalos que ela dava, expulsaram-na da cidade. Não encontrou outro asilo senão uma gruta na floresta onde, após alguns meses, morreu sem a assistência dos sacramentos. O seu corpo foi enterrado num campo, como se fosse algo contagioso. A Irmã Catarina, que tinha o piedoso costume de recomendar a Deus as almas de todos aqueles de cuja morte ouvia falar, não pensou em rezar por esta em particular, julgando, como todos os demais, que ela estaria provavelmente condenada.

Quatro meses depois, a serva de Deus ouviu uma voz que lhe dizia: 'Irmã Catarina, como sou infeliz! Tu recomendas a Deus as almas de todos; eu sou a única de quem não tens piedade!' 'Quem és tu, então?' - respondeu a irmã. 'Sou a pobre Maria, que morreu sozinha na gruta'. 'ComoMaria, estás salva?' 'Sim, pela intercessão da Divina Misericórdia, estou salva. À beira da morte, aterrorizada pela lembrança dos meus muitos pecados e vendo-me abandonada por todos, invoquei a Santíssima Virgem. Na sua terna bondade, ela me ouviu e me concedeu a graça de uma contrição perfeita, com o desejo de me confessar, se isso me fosse possível.  Recuperei, assim, a graça de Deus e fui resgatada do inferno. Mas fui obrigada a ir para o Purgatório, onde sofro terrivelmente. O meu tempo será encurtado e em breve poderei ser libertada, se me forem oferecidas algumas missas. Manda celebrá-las por mim, querida irmã, e lembrar-me-ei sempre de ti diante de Jesus e de Maria'. A Irmã Catarina apressou-se a satisfazer este pedido e, passados alguns dias, a alma apareceu de novo, brilhante como uma estrela, agradecendo a sua caridade.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.