terça-feira, 19 de setembro de 2023

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXIV)

Capítulo LXIV

Alívio às Santas Almas pelo Jejum, Penitências e Mortificações - Um Copo de Água - O Lamento de uma Religiosa a Santa Margarida Maria

Depois da oração, vem o jejum, isto é, não só o jejum propriamente dito, que consiste na abstenção de alimentos, mas também de todas as obras penitenciais, quaisquer que sejam elas. É preciso notar aqui que não se trata apenas das grandes austeridades praticadas pelos santos, mas de todas as tribulações, de todas as contradições desta vida, como também das menores mortificações, dos menores sacrifícios que nos impomos ou aceitamos por amor de Deus e que oferecemos à sua Divina Misericórdia para alívio das almas santas.

Um copo de água, que recusamos quando temos sede, é uma coisa insignificante e, se considerarmos esse ato em si mesmo, dificilmente veremos a eficácia que ele possa ter para aliviar os sofrimentos do Purgatório. Mas a bondade divina é tal que se digna aceitar esse sacrifício como sendo de grande valor. 'Se me permitem' - diz o Abade Louvet, falando sobre este assunto - 'contarei um exemplo que se deu quase sob minha própria experiência pessoal. Uma de minhas parentes era religiosa em uma comunidade que ela edificava, não por aquele heroísmo de virtude que brilhava nos santos, mas por uma virtude comum e uma grande regularidade de vida. Aconteceu que ela perdeu uma amiga que tinha conhecido no mundo e, desde que soube da sua morte, assumiu o dever de recomendar a sua alma a Deus. 

Uma noite, estando com muita sede, o seu primeiro impulso foi refrescar-se com um copo de água, o que lhe era permitido pelo regulamento; mas, lembrando-se da sua falecida amiga e, em benefício da sua alma, recusou a si própria esta pequena gratificação. Em vez de beber o copo de água que tinha na mão, deitou-o fora, pedindo a Deus que tivesse piedade da pessoa falecida. Esta boa irmã lembra-nos o rei Davi que, encontrando-se com o seu exército num lugar sem água e oprimido pela sede, recusou-se a beber a água refrescante que lhe traziam das cisternas de Belém. Em vez de a levar aos seus lábios ressequidos, derramou-a como libação ao Senhor e a Sagrada Escritura cita este ato do santo Rei como um dos mais agradáveis a Deus. Ora, esta ligeira mortificação que a nossa santa religiosa impôs a si própria, negando a si mesma este gole de água, foi tão agradável a Deus, que Ele permitiu que a alma da falecida se manifestasse por uma aparição. Na noite seguinte, apareceu à Irmã, agradecendo-lhe vivamente o alívio recebido. Aquelas poucas gotas de água que, em espírito de mortificação, ela havia negado a si mesma, transformaram-se em fonte refrescante capaz de amenizar para ela o calor do fogo do Purgatório.

Queremos observar que o que aqui dizemos não se limita aos atos de mortificação supererrogatória [além do obrigatório], mas também das mortificações obrigatórias; ou seja, de tudo que temos de padecer no cumprimento dos nossos deveres, e de todas as boas obras a que nos obrigam os nossos deveres de cristãos ou os deveres do nosso estado particular de vida. Assim, todo o cristão é obrigado, em virtude da lei de Deus, a abster-se de palavras imprudentes, de calúnias e de murmurações; assim, todo o religioso deve observar o silêncio, a caridade e a obediência, tal como prescrito na Regra. Ora, estas observâncias, embora obrigatórias, quando praticadas no verdadeiro espírito de um cristão, com o objetivo de agradar a Deus, em união com os trabalhos e sofrimentos de Jesus Cristo, podem tornar-se sufrágios e servir para aliviar as santas almas.

Naquela famosa aparição em que a bem aventurada Margarida Maria viu a falecida religiosa sofrendo intensamente pela sua tibieza, a pobre alma, depois de ter relatado em pormenores os tormentos que padecia, concluiu a sua fala com estas palavras 'Ai de mim! Uma hora de recolhimento em silêncio curaria a minha boca ressequida; outra passada na prática da caridade curaria a minha língua; outra passada sem murmurar nem desaprovar as ações da Superiora curaria o meu coração torturado'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog