Está escrito que 'virá uma apostasia e que o homem do pecado será revelado'. Em outras palavras, o Homem do Pecado nasce de uma apostasia, ou pelo menos chega ao poder por meio de uma apostasia, ou é precedido por uma apostasia, ou não existiria se não fosse por uma apostasia. Assim diz o texto inspirado. Observemos agora como é possível apreciar no curso da história, de que forma a ação da Providência nos permite interpretar a profecia.
Em primeiro lugar, temos uma interpretação no episódio de Antíoco anterior aos eventos contemplados na profecia. Os israelitas, ou pelo menos um grande número deles, abandonaram a sua religião sagrada e só então foi permitido ao inimigo entrar em cena. Temos também o caso do imperador apóstata Juliano, que tentou subjugar a Igreja por meio da astúcia e reintroduzir o paganismo. Há que se notar que foi precedido e inclusive criado pela heresia, por aquela primeira grande heresia que perturbou a paz e a pureza da Igreja.
Cerca de quarenta anos antes de se tornar imperador, surgiu a infame heresia ariana, que negava que Cristo fosse Deus. Perpassou como um câncer entre os chefes da Igreja, de tal forma que, pela traição de uns e pelos erros de outros, chegou a dominar o cristianismo. Os poucos homens santos e crentes, testemunhas da Verdade, gritaram com admiração e terror, em face da apostasia, que o Anticristo estava próximo. Eles o chamaram de 'o precursor do Anticristo'. E certamente a sua sombra chegou. Juliano foi educado no coração do arianismo por alguns de seus principais apoiadores. Seu tutor foi aquele Eusébio de quem seus partidários tomaram o nome; no devido tempo, ele caiu no paganismo e tornou-se um cruel perseguidor da Igreja.
Terceiro, outra heresia surgiu com consequências muito mais duradouras e de longo alcance. Era de dupla natureza, de duas cabeças, por assim dizer: nestorianismo e eutiquismo, aparentemente opostos, mais unidos em torno de um objetivo comum: negar de uma forma ou de outra a realidade da encarnação de Cristo, buscando destruir a fé dos cristãos, não menos objetivamente e ainda mais insidiosamente do que a heresia de Ário. Espalhou-se pelo Oriente e pelo Egito, corrompendo e envenenando aquelas Igrejas que haviam sido outrora as mais florescentes, as primeiras moradas e os baluartes da verdade revelada. Desta heresia, ou pelo menos por meio dela, surgiu o impostor Maomé e o seu credo. Aqui está, portanto, outra Sombra do Anticristo em particular.
Quanto ao quarto e último exemplo, que pude tirar da geração que imediatamente precedeu a nossa, limitar-me-ei a observar que, à semelhança dos exemplos citados, a Sombra do Anticristo surgiu de uma apostasia, de um abandono da fé em favor das doutrinas infiéis, de uma apostasia sem dúvida das mais iníquas e blasfemas que o mundo conheceu [refere-se à revolução Francesa].
Todos esses exemplos levantam as seguintes questões: o inimigo de Cristo e da sua Igreja surgirá em um momento de inequívoco afastamento de Deus? Não há razão para temer que essa apostasia esteja gradualmente sendo preparada, aumentando e se consolidando em nossos dias? Não há neste exato momento um esforço especial de quase todos para prescindir da religião, mais ou menos evidente neste ou naquele lugar, mas mais visível e significativamente naquelas regiões mais civilizadas e poderosas?
Não existe um consenso recente de que uma nação não tem nada mais a ver com religião, que é algo que diz respeito apenas à consciência individual? O que é o mesmo que dizer que podemos deixar a Verdade desaparecer da face da terra sem fazer nada para impedi-lo. Não existe um movimento vigoroso e unificado em todos os países, destinado a privar a Igreja de Cristo de seu poder e posição? Não há um esforço febril e permanente para se livrar da necessidade da religião nos negócios públicos, por exemplo, a tentativa de desconsiderar a necessidade de juramentos com a desculpa de que são sagrados demais para os assuntos da vida cotidiana, em vez de se buscar garantir que fossem feitos com maior reverência e cuidado? Não há uma tentativa de se educar sem religião, ou seja, colocando todas as formas de religião no mesmo nível?
Não há uma tentativa de reforçar que a temperança e todas as demais virtudes que dela decorrem persistem sem religião, por meio simplesmente de critérios sociais e naturais? De se fazer da conveniência e não da verdade o objetivo e a norma das decisões do Estado e a constituição das leis? Fazer da quantidade, e não da Verdade, o critério para sustentar ou não determinado artigo de fé, como se as palavras das Escrituras fossem sustentadas pela opinião da maioria? Privar a Bíblia do seu sentido verdadeiro e nos induzir a pensar que esse sentido pode ter cem significados, todos igualmente verdadeiros; ou seja, o que na verdade implica não ter significado algum, ser letra morta, que pode ser posta de lado? Substituir a religião como um todo, na medida em que é externa e objetiva, e expressa em leis e palavras escritas, por algo meramente subjetivo e delimitado pelos nossos próprios sentimentos e, deste modo, produzir algo tão instável e tão desordenado, que consistiria basicamente em destruir a religião por completo?
(Excertos da obra 'Cuatro sermones sobre el Anticristo', do Cardeal John Newman)