sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

'QUE FAZIA DEUS ANTES DE CRIAR O CÉU E A TERRA?'

Com certeza ainda estão cheios do erro do velho homem os que nos dizem: 'Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?' Se estava ocioso, se nada fazia, porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceu um movimento novo, uma vontade nova de dar o ser ao que ainda não tinha criado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma vontade que não existia antes? Mas a vontade de Deus não é uma criatura, ela é anterior a toda criatura; nenhuma criação seria possível se a vontade do Criador não a precedesse. A vontade, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, se na substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais com verdade chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência da criatura, por que a criatura também não é eterna? 

Os que assim falam não te compreendem ainda, ó Sabedoria de Deus, luz das inteligências; não compreendem ainda como é criado o que é criado por ti e em ti. Esforçam-se por saborear as coisas eternas, mas seu espírito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras. Quem poderá deter esse pensamento, quem o fixará por um momento, para que tenha um rápido vislumbre do esplendor da eternidade imutável, e a compare com os tempos impermanentes, para perceber que qualquer comparação é impossível? Então veria que a sucessão dos tempos não é feita senão de uma sequência infindável de instantes, que não podem ser simultâneos; que, pelo contrário, na eternidade, nada é sucessivo, tudo é presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente. Veria que todo o passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente. Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra?

Eis minha resposta à questão: 'Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?' – não responderei jocosamente como alguém para contornar a dificuldade do problema: 'Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistérios profundos'. Uma coisa é compreender e outra é brincar. Não, essa não será minha resposta. Prefiro dizer: 'Não sei' – pois de fato não sei, que ridicularizar quem faz pergunta tão profunda, ou louvar quem responde com sofismas. Mas eu digo que tu, meu Deus, és o Criador de toda criatura; e, se por céu e terra se entende toda criatura, não temo afirmar: 'Antes que Deus criasse o céu e a terra, nada fazia'. De fato, se tivesse feito alguma coisa, o que poderia ser senão uma criatura? Oxalá eu soubesse tudo o que desejo saber, como sei que nenhuma criatura foi criada antes da criação. 

Se algum espírito leviano, vagando por tempos imaginários anteriores à criação, se admirar que o Deus Todo-Poderoso, tu, que criaste e conservas todas as coisas, ó autor do céu e da terra, tenha-te mantido inativo até o dia da criação, por séculos sem conta, que esse desperte e tome consciência do erra que gera sua admiração. Como, pois, poderiam transcorrer os séculos se tu, criador, ainda não os tinha criado? E poderia o tempo fluir se não existisse? E como poderiam os séculos passar, se jamais houvessem existido? Portanto, como és o criador de todos os tempos – se é que houve algum tempo antes da criação do céu e da terra – como se pode afirmar que ficaste ocioso? 

Pois também criaste esse mesmo tempo, e este não poderia passar antes que o criasses. Se porém, antes do céu e da terra não havia tempo algum, porque perguntam o que fazias então? Não poderia haver então se não existia o tempo. Não é no tempo que és anterior ao tempo: de outro modo não precederias a todos os tempos. Precedes porém a todo o passado na altura de tua eternidade sempre presente; dominas todo o futuro porque está por vir e que, quando chegar, já será passado. Contudo, tu és sempre o mesmo, e teus anos não passam jamais. Teus anos não vão nem vêm; mas os nossos vão e vêm, para que todos possam existir. Teus anos existem simultaneamente, pois não fluem; não passam, não são expulsos pelos que vêm, porque não passam. Os nossos, ao contrário, só existirão todos quando não mais existirem. Teus anos são como um só dia, e teu dia não é uma repetição cotidiana, é um perpétuo hoje, porque teu hoje não cede o lugar ao amanhã e nem sucede ao ontem. Teu hoje é a eternidade. Por isso geraste um filho coeterno, a quem disseste: 'Hoje te gerei'. Todos os tempos são obra tua, e tu existes antes de todos os tempos; é pois inconcebível que tenha existido tempo quando o tempo ainda não existia. 

('Confissões', de Santo Agostinho)