sábado, 27 de agosto de 2022

ÁGUAS DE DOWN

Quando um pequeno riacho nasce no alto da montanha, as suas águas são tranquilas e cristalinas e, ao longo dos declives e das  depressões dos terrenos a jusante, tomam vulto, assumem a dimensão dos redemoinhos, acolhem águas já não muito tranquilas e se arrebentam contra outras nem de longe cristalinas. E vira um rio. Um rio de muitas águas, um rio de incertas e tormentosas correntezas e quedas memoráveis.

A vida humana comumente é assim. Somos rios, ou melhor, ficamos rios, de tormentosas e desvairadas correntezas e abismos. Somos águas barrentas e tumultuadas, os vórtices e redemoinhos nos cumulam de realidades cotidianas, nos precipitamos em corredeiras ou cascatas com o subterfúgio ou a salvaguarda de fazer, por nós mesmos, o trajeto, o ritmo e a rebentação do rio que somos. Chamamos isso de vida e vivemos assim.

Mas nem todos somos rios, nem todos ficamos rios de correntezas descuidosas. Porque nem todos os pequenos riachos acumulam vertigens terreno abaixo; porque nem todos os riachos meandram para acolher além as suas águas mais remotas. Há riachos que permanecem riachos no alto da montanha. São e serão os riachos das grandes alturas, as surgências que se moldam pela pequenez, pela simplicidade, pela serenidade do curso, pelas águas cristalinas.

Estes pequenos riachos são as portentosas obras de Deus na vida dos homens comuns, que vivem os rios da incerteza. São aquelas crianças nascidas como especiais, são as crianças autistas, com problemas neurológicos, com síndrome de Down. Que, à nossa volta, encontram-se tão distantes de nós porque vivem no cimo das nascentes, nas fontes das águas puras das grandes montanhas. Que não falam a nossa linguagem pois se camuflaram contra os tormentos e os abismos da alma humana; que não compartilham nossas ideias e nossas crenças porque não se alimentam do desvario dos vórtices e dos redemoinhos das águas em desatino; que não vivem a nossa vida costumeira porque não são feitos de barro, cascalho e detritos.

São crianças especiais, porque são criaturas especiais de Deus, são os dons especiais de Deus. O amor humano manifestado a cada uma delas - desmedido, completo e absolutamente sem amarras ou inquietudes humanas - é um amor tão particularmente humano, que tem o sopro divino. Um amor que faz retornar rios tempestuosos à origem, que transporta mentes em redemoinho à calmaria das montanhas mais elevadas da alma. Para mergulhar as mãos em águas serenas, para beber de águas cristalinas, para ver e estar com Deus pairando sobre as águas.