quarta-feira, 3 de novembro de 2021

PORQUE NÃO SOMOS UM

A redenção de Cristo é uma herança da misericórdia destinada a toda a humanidade, a todos os homens, de toda raça, língua e nação. Mas, pelo atributo do livre arbítrio, grande parte desta mesma humanidade não apenas revogou contra si essa graça extraordinária, como aliou-se de corpo e alma num mergulho sem volta aos porões do abismo. E a única coisa que move toda essa gente é angariar, sufocar, escravizar e corromper ainda muita mais gente no caminho do desvario absoluto.

Perdemos as referências, o conceito do bem e do mal, a transparência das águas tranquilas. Tudo é movido agora pelo embate, pelo ódio enraizado, pela gana dos sentidos, pelo aviltamento do outro. Nada é mais relativo do que a opinião que não se omite, nada é mais afrontoso do que o pensamento de quem ousa confrontar o vazio. Não somos mais criaturas de Deus em terreno baldio nessa terra de lágrimas, somos semideuses demolidores da própria criação, incluindo nós mesmos.

Tudo isso conforma por completo o que há muito deixamos de agir como criaturas de Deus e vivemos exclusivamente sob a força dos impulsos humanos. O homem passou a querer ser apenas a obra do homem. Na verdade, do homem - tecapto, que, paradoxal em tudo, em vez de nos remeter a uma ancestralidade anêmica, projeta agora todas as suas sombras e tentáculos sobre a crença de que serão apenas névoas e fantasmas que se nutrem de vazios quando já não mais se nutrirem de vida. Respiram e procriam como homens, vivem como homens, morrem como homens - sem Deus.

Deus nos criou como criaturas e como herdeiros do Reino dos Céus. E nos dotou de uma alma - epicentro da sua graça infinita de consolação e amor eterno. A redenção de Cristo é um plano de salvação divina para os homens destinados à eternidade com Deus. Não há meio termo possível entre aquele que presta culto a Deus com aquele que se opõe a Deus; não há caminho comum possível e nem direção certa para quem anda em sentidos opostos; não há rota e nem porto seguro para quem se sustenta nas vertigens de senhores das marés; não há Deus como meta possível onde possam almejar descanso os homens que vivem apenas como homens.

Essa é a distância incomensurável sobre dois abismos - Deus e o mundo dos homens. O ecumenismo é um fantoche sem alma, a irmandade universal é uma falácia gongórica, o grito por uma humanidade única é o estertor do magma. Não somos TODOS, nunca seremos TODOS, nem TODOS serão UM. O que devemos - e como devemos crer nisso! - é que podemos ser MUITOS e, pelos frutos de um apostolado de vida inteira, ainda MUITOS de MUITOS mais.

O maior erro do cristão no mundo é querer ponderar os frutos do seu apostolado com as dimensões do mundo; essa visão anêmica e distorcida da graça divina recai comumente na tibieza, no indiferentismo e na inércia diante de uma missão gigantesca - que, na verdade, é impossível porque não existe. Deus nos pede obras humanas - simples, pequenas, inexpressivas - para fazer novos céus e nova terra. É no barro humano que se constroem as grandes maravilhas de Deus.

Que não se lamente o mal alastrante como fogo em mata seca e nem se corrompa a fé genuína na lama circundante, porque nem TODOS serão UM. A porta é estreita, mas a redenção de Cristo é e sempre será o caminho seguro para MUITOS. Caminho formado por pedras talhadas por obras humanas das criaturas de Deus - apequenadas e aparentemente inúteis. Das minhas obras, das suas obras, das obras de MUITOS.