sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

SERMÃO SOBRE O AMOR (III)

PARTE III/Final

E há um terceiro, meus irmãos, há um ilustre terceiro amor nas Escrituras, que devemos associar a estes dois Grandes Apóstolos quando falamos dos santos da penitência e do amor. Quem é este amor senão o de Maria Madalena, a cheia de amor? Quem é o exemplo mais perfeito do que busco mostrar-vos, senão 'a mulher que era pecadora', que lavou os pés do Senhor com as suas lágrimas, os enxugou com os seus cabelos e os ungiu de perfumes preciosos? 

E que circunstância para um tal ato de amor? Ela que havia chegado, trazida por um propósito exclusivamente profano, realiza um ato de tão perfeito arrependimento. Era um banquete como tantos outros, dado por um rico fariseu, para homenagear, e, contudo, para experimentar o Senhor. Madalena chegou, linda e jovem, 'alegre da sua juventude', 'caminhando nas vias do seu coração e no deleite dos seus olhos', chegou como um adorno para aquela festa, como era hábito as mulheres fazerem naquele tempo, para ungir com seus perfumes inebriantes e frescos a fronte dos cabelos dos convidados. E o orgulhoso fariseu suportava a sua presença, desde que soubesse guardar as distâncias; que viesse, sim, como podemos deixar que qualquer animal da casa entre nos nossos quartos, sem lhe darmos atenção; suportava-a como simples decoração necessária ao banquete, mas como se ela não tivesse uma alma ou fosse sem préstimo e destinada à perdição. 

Ele e os seus irmãos, no seu orgulho, seriam talvez capazes de galgar terras e mares para fazer um prosélito, mas quanto a escutar o seu coração, a condoer-se do seu pecado, a consolá-lo, isso não entrava no âmbito dos seus pensamentos. Não, o que lhe interessava realmente eram as necessidades do seu banquete e, por isso, a deixou entrar, cumprir a sua tarefa, indiferente ao que era a sua vida, desde que devidamente a cumprisse e a isso se limitasse. Porém, eis que aos olhos de Madalena surge uma súbita e maravilhosa visão! Teria sido uma inspiração do momento ou uma decisão amadurecida? 

Eis que aquela pobre filha do pecado, ataviada de cores garridas, aproxima-se para coroar com um perfume suave a cabeça dAquele a quem a festa era dedicada; porém, a sua mão se deteve. Ela olha e reconhece o Ancião dos Dias, o Senhor da Vida e da morte, o seu Juiz; e volta a olhar e vê na sua face e na sua expressão uma beleza e uma doçura terrível, serena e grandiosa, incomparável com a dos filhos dos homens que sombreavam o esplendor da sala do banquete. Olha uma vez ainda, tímida e sedenta, e no seu olhar presente, e no seu sorriso, descobre uma bondade feita de amor, de ternura, de compaixão e de misericórdia. Olha para si mesma e sente-se vazia e hedionda, como vazios e hediondos eram agora os seus atrativos; a sua graciosidade e frescura, mesmo a sua beleza louvada de boca em boca pelos seus admiradores, parecem subitamente murchas e ressequidas; o seu hálito, que até então julgara perfumado e cujo sabor era conhecido daqueles sete espíritos que nela haviam morado, tornou-se repugnante! 

Ali se detivera, ali se sumira, cheia de confusão, e no seu desespero, se não tivesse lançado um olhar ainda para aquele rosto, expressão absoluta de perdão e de amor. O Senhor a olha; é o Pastor que olha a ovelha perdida; e a ovelha perdida se rende, e agacha-se e se aconchega aos pés do seu Pastor. Ele nada diz, porém a olha; e ela aproxima-se mais. E os anjos se regozijam porque ela se aproxima, cega para tudo o que não seja o seu Senhor, esquecendo o desprezo dos orgulhosos e o riso maldoso dos convivas. Ela vem saber se será salva, se será recebida ou o que dela será; sabendo só que Ele é a fonte do bem e da verdade e da misericórdia; e para quem havia de ir senão para Aquele que tem as palavras da vida eterna? 

'Israel, Israel, a ti mesmo te destruíste; em mim, porém, está a salvação, volta para mim que não te voltarei o meu rosto; porque sou santo e a minha cólera não permanecerá para sempre'. 'Eis que para ti vamos, porque tu és o Senhor nosso Deus. Verdadeiramente falsas são as colinas e a multidão das montanhas; verdadeiramente o Senhor nosso Deus é a salvação de Israel'. Extraordinário encontro entre o que era mais vil e o que havia de mais puro! Aquelas mãos lascivas, aqueles lábios poluídos, tocaram e beijaram os pés do Eterno. E Ele não evitou a humilde homenagem. E quando, debruçada sobre eles, umedecendo-os com os seus olhos abundantes de lágrimas, o seu amor simples refrescou, cresceu abundante nela, acendendo uma chama que nunca mais havia de declinar desde aquele momento e para sempre! E que escândalo quando o Senhor manifestou diante de todos os homens o seu perdão e a causa do perdão! 'Muitos pecados lhe são perdoados pelo muito que amou, mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco se ama'. Depois disse-lhe: 'os teus pecados te são perdoados; a tua fé te salvou, vai em paz'.

Desde aquele momento, meus irmãos, o amor tornou-se para ela, como para Santo Agostinho, e mais tarde para Santo Inácio (grandes penitentes de sua época), como uma fenda na alma, uma ferida aberta ao amor, que o amor rasga numa doçura quase dolorosa. Ela não podia viver longe da presença dAquele em que pusera a sua alegria; e o seu espírito era saudoso dEle, quando não o via; e seguia-o em silêncio, humilde e ansiosa quando estava na sua bendita Presença. Vemo-la noutra ocasião, sentada aos seus pés, ouvindo as suas palavras; e Ele testemunhou-lhe que ela havia escolhido a melhor parte que não lhe seria tirada. E, depois da sua ressurreição, foi ela que, pela sua perseverança, mereceu vê-lo antes ainda dos Apóstolos. 

Não abandonou o sepulcro, quando Pedro e João se retiraram; mas ali ficou chorando e, quando o Senhor lhe apareceu e ela o olhou sem o reconhecer, perguntou muito triste àquele que ela supunha ser o jardineiro: 'se o levaste, dizei-me para onde, e eu irei buscá-lo'. E quando, por fim, o Senhor se deu a conhecer, ela voltou-se e correu a lançar-se-lhe aos pés, como no princípio; porém, como que para experimentar a obediência do seu amor, Ele a deteve, dizendo: 'Não me toques porque ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes que eu subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus'. E assim ficou só, suspirando pelo tempo em que voltaria a vê-lo e a ouvir a sua voz e a alegrar-se no seu sorriso e ser deixada servi-lo para sempre.

Esta é, pois, a segunda grande classe dos santos, em contraste com a primeira. O amor é a vida de ambas; porém, enquanto o amor do inocente é calmo e sereno, o amor do penitente é ardente e impetuoso, geralmente comprometido no combate com o mundo ativo nas boas obras. E este é o amor que vós, meus irmãos, deveis possuir segundo a vossa medida, se quiserdes ter uma sólida esperança de salvação. Porque fostes pecadores; quer por um desprezo ativo e voluntário, quer por uma secreta transgressão, quer por indiferença, quer por qualquer mau hábito permitido, quer por terdes posto o vosso coração em qualquer objeto deste mundo, e terdes feito a vossa vontade em vez da Vontade de Deus. 

Penso, posso dizê-lo, que precisastes ou precisais de vos reconciliar com Ele. Tivestes ou tendes necessidade de ser levados até junto dEle, e lavardes no seu Sangue os vossos pecados e deles receberdes o perdão. Que significa para vós isso senão que vos é mister arrepender-vos? E o que é o arrependimento sem o amor? Não digo que haveis de sentir o mesmo amor que os santos possuíram para que sejais perdoados, o amor de São Pedro ou de Santa Maria Madalena mas, mesmo assim, sem a vossa parte nessa graça sobrenatural, a vossa condição será bem precária e insegura. 

As vossas obras de penitência devem proceder de uma chama viva de caridade. Se fordes perseverantes até o fim, sê-lo-eis em virtude de uma contínua oração de amor, de fé e de obediência. Àquele que é o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. Se tiverdes uma boa esperança de que Ele vos aceitará no fim dos vossos dias, é ainda e só o amor que apaga o pecado. Meus irmãos, nessa hora terrível talvez não possais obter os últimos sacramentos; a morte pode vir de repente quando estiverdes longe de um sacerdote. Podeis ser abandonados a vós próprios, à vossa própria compunção, ao vosso arrependimento; à vossa decisão de vos emendardes. Podeis ter estado semanas e semanas longe de qualquer auxílio espiritual; podereis ter que ir ao encontro do vosso Deus sem a salvaguarda, o consolo, a mediação de qualquer rito sagrado; e nesse caso, o que vos poderá salvar senão a presença da 'caridade divina derramada no coração pelo Espírito Santo que nos foi dado'? 

Nesse momento, nada que não seja sólido hábito de caridade que nos preservou de pecado mortal, ou um poderoso ato de caridade capaz de o apagar, nos aproveitará de alguma coisa. Nada a não ser a caridade vos pode permitir uma vida feliz e uma morte feliz. Como podeis suportar o sono da noite, como podeis suportar partir para qualquer viagem, como podeis suportar a presença da peste ou o ataque de qualquer indisposição por mais ligeira, ou a doença, se precavidos não estiverdes com o amor, o único capaz de defender-vos no momento da terrível mudança, que sobre vós sobrevirá algum dia, embora como ou quando não saibais.

Ah! Como vos apresentareis diante do trono de Cristo, com os sentimentos imperfeitos e confusos que agora vos contentam, com uma certa fé, uma confiança relativa e temor hesitante dos Juízos de Deus, mas sem a autêntica substância da alegria, sem um comprazimento real na sua vontade, nos seus atributos, nos seus mandamentos, no seu serviço, que os santos possuíam com tal plenitude; e só eles podem conferir à alma o título seguro dos méritos da sua Paixão e Morte.

Quão diferente é o sentimento com que a alma transbordante de amor, uma vez separada do corpo, corre ao encontro de Cristo! Ela sabe quão tamanha é a dívida de castigo que impende sobre ela, embora há muitos anos se haja reconciliado com o seu Senhor, e espera o purgatório, sabe que não pode senão esperá-lo como a dor contígua à alegria eterna. Mas ver a sua face mesmo por um momento! Ouvir a sua voz, ouvi-lo falar, mesmo que venha depois o esperado castigo! Ó Salvador dos homens, venho a ti, mesmo que logo seja expulso da tua presença; venho a ti que és a minha vida e tudo quanto tenho, venho a ti que és a imagem viva que encheu o tempo da minha vida. 

A ti me dei quando, pela primeira vez, tive que tomar parte no mundo; desde muito cedo te procurei, desde cedo me ensinaste que o bem fora de ti não era bem. Quem tenho eu no céu senão Tu? Quem desejei na terra, quem tive no mundo além de ti? Quem estará comigo no meio da angústia e da saudade de não ver-te? Sim, embora desça agora à terra deserta, crestada e sedente, 'não temerei qualquer mal porque Tu estás comigo'. Hoje te vi face a face e isso me basta; vi-te Senhor e esse olhar para ti é suficiente para um século de sofrimento na terra inferior. Será meu alimento ter-te olhado conquanto não te veja agora, até que volte a ver-te, para nunca mais me separar de ti. 

Ter-te olhado será o sol límpido e o conforto da minha alma lânguida e cansada; a tua voz é a música eterna nos meus ouvidos. Nada me pode fazer mal, nada me pode perturbar; sofrerei os anos marcados, até que o meu fim chegue, com coragem e mansidão. Levantarei o meu canto num confiteor, Senhor, a ti e aos teus santos, naquele vale de inquietas sombras; a Deus onipotente e à Bem-Aventurada sempre Virgem Maria, tua Mãe e minha, concebida sem pecado, e ao Bem-Aventurado Miguel Arcanjo, criado na sua pureza pela Mãe de Deus, e ao Bem-Aventurado João Batista, santificado desde o ventre de sua mãe.

E, depois destes três, aos santos Apóstolos Pedro e Paulo, penitentes, que eram compassivos para com os pecadores segundo a sua própria experiência do pecado; a todos os santos quer tenham vivido em contemplação ou em árduos trabalhos, durante os dias da sua peregrinação, dirigirei as minhas súplicas, rogando-lhes que 'se lembrem de mim e que por mim roguem e de mim façam menção junto do Rei, para que Ele me liberte deste cativeiro'. E por fim, 'Deus enxugará cada lágrima dos meus olhos, e não haverá mais morte, nem mais luto, nem choro, nem dor nunca mais, por que as coisas antigas já passaram'.

(Excertos da obra 'Purity and Love', do Cardeal Newman)